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Coisas que só a Folha de S. Paulo faz por você

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folha de são paulo igreja

O Facebook da Folha de S. Paulo fez uma piadinha com uma tragédia ocorrida em uma igreja na América. Numa reportagem sobre um jovem espancado até a morte pela própria família para expiar seus pecados, a Folha fez a chamada no Facebook com a frase “Coisas que só as igrejas fazem por você”. Depois, apagou e trocou por um link que apenas descreve a notícia.

O humor como é conhecido no Ocidente surgiu justamente dentro de festividades religiosas, com a comédia grega. Aristófanes foi seu principal nome. Talvez sua peça mais famosa, As Nuvens, é uma sátira mordaz, sardônica e virulenta do corpo de seguidores de Sócrates, que pareciam tentar “raciocinar” sobre tudo, mas se desprendiam da realidade.

Imaginando que a realidade das coisas não poderia ser transcendente (o que não condiz com a filosofia socrática verdadeira), passam a crer que não há deuses, apenas “nuvens”. É quase impossível ler a peça, absolutamente hilária até hoje, sem pensar em nomes como Richard Dawkins ou Bill Maher.

O humor, na verdade, é algo extremamente reacionário, por reagir contra aquilo que parece inteligente, mas na verdade é ridículo, precisando apenas do distanciamento adequado para aparecer in true colours.

O humor é algo, portanto, profundamente moralista: se um tratado de moral mostra a diferença entre o dever-ser e o que é feito fora do dever-ser em termos de “certo” e “errado”, a sátira escancara esta diferença mostrando que o que está fora do dever-ser é profundamente ridículo – pela estética, mas com a ética subentendida.

monty python holy grailNão à toa, piadas sardônicas são comuns em países de maioria conservadora: o melhor humor atual, o anglo-saxão, coincide perfeitamente com os dois países mais conservadores do Ocidente, a América e o Reino Unido. Os judeus, que sabem fazer humor até de sua própria tragédia no Holocausto, seguem esta trinca.

Já países tradicionalmente revolucionários, no oxímoro tão bem denunciado por Ortega y Gasset, são contumazes em proibir o humor, como vem sendo aventado com cada vez mais violência nos tribunais brasileiros. É difícil imaginar o humor russo, o humor cubano, o humor venezuelano, o humor progressista como um todo.

Henfil possui uma frase famosa: só acha engraçado aquilo que tira sarro do opressor para salvar o oprimido. Pode funcionar como uma propaganda política, sobretudo quando não se define o que é “opressão” e pode se mirar em adversários políticos, mas é impossível encontrar algo engraçado nesta camisa-de-força conceitual.

foi-se o martelo ben lewisO melhor humor na era da primeira Revolução não foi senão de reacionários, como Rivarol, Jonathan Swift (ver a excelente análise de George Orwell sobre As Viagens de Gulliver) e Samuel Johnson. De Plauto e Juvenal a Malcolm Bradbury e Matei Vișniec, a sátira não é senão o gênero literário do dissenso, o que não combina com modelos políticos em que se busca “corrigir o pensamento” da sociedade para que todos pensem homogeneamente o mesmo, o considerado “correto” do momento. Não à toa, governos de esquerda odeiam o humor, pois precisam de um Estado total, que se confunda com a própria sociedade. Vide-se o excelente livro Foi-se o Martelo: A história do comunismo contada em piadas, de Ben Lewis.

O que não funciona mesmo é o “humor a favor” daquilo que o governo pensa. É o fracasso do “Dilma Bolada”, que apenas radicalizava quem já pensava sempre positivamente sobre nossa presidente e acabou afastando aqueles com algumas dúvidas sobre seus méritos.

É o que a Folha tentou fazer: já que as piadas com a religião cristã são as únicas permitidas pelo pensamento do politicamente correto, ou melhor, “humanizado” (já que até “politicamente correto” é algo defendido, mas não nomeado, para não soar brega ou patrulhador), numa reportagem sobre uma tragédia, achou por bem fazer proselitismo e criticar igrejas.

O que pega mal não é o humor, é a tentativa fracassada de humor. É tentar satirizar, mas quem aparece ridículo é o satirista, não o satirizado.

Ninguém defende o espancamento na igreja e estas formas bizarras de sevícias e penitências públicas praticadas por certos cultos. O problema é: o que isso tem a ver com “igrejas”, em geral? Fora a quebra de decoro, pois jornalismo nem sempre é lugar para piadinhas, é no mínimo burrice atribuir a “igrejas” algo tão incomum a elas que, quando acontece, vira notícia. Piadas com dízimo já fariam um sentido melhor, que atravessaria fronteiras de Reformas de vários séculos.

Quem soou tonto foi o jornalista, não o satirizado.

Entretanto, a coisa se agrava. Afinal, parece haver algo misterioso que impede a Folha de apresentar certas manchetes com o mesmo desprezo generalizante para com um grupo todo.

Por exemplo, no próprio UOL, do grupo Folha, lemos, há dois dias: “Ataques palestinos em ‘Dia de Fúria’ deixam 4 mortos”. Um “Dia de Fúria” (Youm al-Ghadah) é como um palestino chama os ataques terroristas e de violência desenfreada anti-semita contra todos os habitantes de Israel, para que eles se sintam inseguros diante do ataque e fujam de suas terras, já que a Palestina não tem poder de fogo o suficiente para assassinar todos os judeus, como preconiza o islamismo.

Para quem acompanha a imprensa séria americana, sabe que um dos ataques deste mês foi perpetrado por um jovem de 19 anos que escreveu: “A Terceira Intifada eclodiu”. As Intifadas foram os chamados às armas e ao terrorismo anti-semita da Palestina, que misteriosamente renderam um Nobel da Paz ao seu organizador por… interromper a segunda.

Onde está chamada da Folha “Coisas que só a Palestina faz por você”?

No iG, lemos: “Estado Islâmico crucifica sírio de 12 anos”. Para quem conhece o islamismo, sabe que, nesta religião, Jesus não morreu na cruz, perdendo seu estatuto de Salvador pelo auto-sacrifício. Cristãos podem “conviver” com muçulmanos pela shari’ah apenas se se submeterem à jizyah (جزية), um imposto para não-muçulmanos em terras muçulmanas – do contrário, devem ser escravizados ou mortos. Quando este imposto deve se tornar obrigação à conversão não fica claro no Corão, deixando à força local definir quando é de bom tom passar a degolar ou matar cristãos e outros não-muçulmanos. Uma forma clássica de assassinar cristãos é pela crucificação – punição lenta e dolorosíssima, que satiriza o seu Messias.

Onde está a chamada da Folha “Coisas que só o islamismo faz por você”?

Neste ano, vimos a continuidade de tragicômicas notícias sobre a escassez de papel higiênico na Venezuela, como hotéis precisando dizer a seus turistas: “tragam papel higiênico”. Fora, claro, a prisão, perseguição e mortes nas ruas de opositores do regime de Nicolás Maduro.

Onde está a chamada da Folha “Coisas que só o socialismo faz por você”?

O problema nem é a indecorosidade da chamada, por si só já questionável para um jornal que se pretende sério. O problema é que, nas ganas de tentar ser sacrílego e profano, tentando ganhar um público bacana, moderninho e descolado, o jornal acaba se revelando cheio de tabus invioláveis e de uma sacralidade hagiográfica.

E isto, sim, se estende a todo o jornal e a todo o público progressista que cada vez mais vê na Folha um abrigo da realidade e uma defesa de seu multiculturalismo de boteco da Vila Madalena.

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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