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Richard Dawkins e a crise existencial do Ocidente

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Nas últimas semanas, declarações públicas de Richard Dawkins a respeito do cristianismo voltaram à baila graças ao recente fenômeno da islamização da Europa através das ondas migratórias – o que os muçulmanos conhecem como hégira (hijrah), a conquista pela imigração.

O ateu mais famoso do mundo, principal advogado do chamado neo-ateísmo, Dawkins ganhou proeminência como intelectual público. Sendo assim, desde o lançamento de sua tese revolucionária no livro O Gene Egoísta, sua atuação pública foca-se muito mais em sua atuação como polemista do que no Dawkins cientista.

Declarações públicas, ainda que numa entrevista ou num momento informal, acabam sendo tratadas com grande atenção, como se cada sílaba, interjeição, hesitação e pausa de um intelectual fosse a continuidade de sua produção acadêmica. Dawkins, recentemente, sofreu uma carrada de gozações por ter esquecido justamente o nome da “Bíblia da evolução”, o livro Origem das Espécies, de Charles Darwin – e ter soltado um belíssimo “oh, God” tentando lembrar seu subtítulo.

dawkins sustoUma frase sua na mídia ficou em voga novamente: a de que o cristianismo é um baluarte contra algo pior. Considerado um militante pelo ateísmo bem mais agressivo que seus pares Christopher Hitchens e Daniel Dennett, a frase funcionou como uma espécie de sopro de proporções sobre a onda cientificista moderna, que se acostumou a aglutinar sob a palavra “religião” uma multitude de fenômenos. Algo como a obviedade ululante que intelectuais costumam ignorar mais do que o vulgo.

Se a arte do chá de um monge budista parece ter pouco a ver com um vídeo de decapitação à faca do Estado Islâmico, os dois fatos parecem próximos pela capacidade mágica do batismo nominador em aglutiná-los sob auspícios do conceito abstrato “religião”.

Com efeito, a frase de Richard Dawkins sobre uma certa defesa do cristianismo, recentemente republicada em sites como Reddit, Breitbart, Free Republic e WND, é, na verdade, de 2010, embora tenha sido tão citada em 2016 que é preciso um trabalho de pinça no Google para encontrar referências anteriores.

Dawkins disse: “Não há cristãos, até onde eu sei, explodindo prédios. Eu não conheço nenhum ataque suicida cristão. Eu não tenho conhecimento de qualquer denominação cristã majoritária que acredite que a pena para a apostasia é a morte.”

Mas o mais revelador veio a seguir: “Eu tenho sentimentos confusos sobre o declínio do Cristianismo, na medida em que o Cristianismo pode ser um baluarte contra algo pior.”

Para o geneticista e polemista, o Cristianismo é ruim por ser uma religião com uma narrativa “mágica” a respeito do mundo físico – o que era chamado, até o século XIX, de “História Natural” -, mas seus substitutos são invariavelmente piores para o Ocidente. Sobretudo o substituto que está tomando a Europa de assalto.

jesus-stabat-mater-baciccioDesconhecedor de teorias antropológicas, sociológicas, mitológicas mais profundas (de Mircea Eliade a René Girard), o que já foi criticado em um livro dedicado a Dawkins e Hitchens vindo de outro ateu, o marxista Terry Eagleton (O debate sobre Deus), Richard Dawkins parece confuso e pouco capaz de tirar conclusões das premissas ao analisar o resultado do declínio do cristianismo, a religião que, por proximidade geográfica e cultural, mais atacou na vida (seu mais famoso livro, Deus, um Delírio, é um mistifório contra a idéia da transcendência, da necessidade de uma explicação não-material para o fenômeno da matéria – mas, ocidental como é, o inimigo que conhece melhor são os escritos cristãos).

Não se trata de uma mera dúvida de Richard Dawkins: trata-se, afinal, da própria crise fundamental do Ocidente, tão fundamentado em pilares como a religião cristã, o Direito romano e a filosofia grega. Se o resultado histórico do Ocidente ainda está razoavelmente parado no Iluminismo, uma reação com enleios de racionalismo esquemático (ver o artigo Liberté, égalité, fraternité, Allahu akbar!), ainda sofremos o mesmo conflito das luzes e “pós-luzes” francesas ao pensar em como organizar a sociedade, dissociando-se desta tradição.

romanticism(O Romantismo, reação ao Iluminismo que resgatou e revisou o passado, produziu tanto o socialismo quanto expandiu o liberalismo, foi semente tanto do nacional-socialismo quanto da moderna democracia, marcando o pensamento tanto de Edmund Burke quanto de Martin Heidegger, tanto de Leo Strauss e Thomas Mann quanto Theodor Adorno e Adam Müller; além de muito mais complexo e profundo do que seu rival mais velho, foi um movimento de cidadãos urbanos voltando-se à solidão do campo, contrário ao caipirismo tentando ser cosmopolita do Iluminismo; para entender as conseqüências românticas ao mundo contemporâneo, ver Romantismo: uma questão alemã, de Rüdiger Safranski, e sobretudo um dos livros mais importantes para o século XXI, A sagração da primavera, de Modris Eksteins.)

O Cristianismo, como as grandes religiões e o pensamento antigo, não se trata apenas de uma “teoria” a respeito do post mortem, mas de um código moral, de um método de organização social, de normas para a multiplicidade das possibilidades de ordenamento civil (não é uma tradição poligâmica, por exemplo). Como organizar todas estas questões, dissociando-se do seu legado?

O próprio Richard Dawkins prefere um método mais “racionalista”, como quando declara:

É importante incentivar a cooperação e o altruísmo, mas creio que a melhor maneira de fazer isso é por meio do ensino de princípios morais, e não pela religião. As partes boas da religião podem ser justificadas por outros meios, enquanto as partes ruins (mais numerosas) têm de ser rejeitadas.

O problema do Ocidente, com seu conhecimento fragmentado, é reunir todos os pedaços do que conseguiu saber, intuir e presumir,em um todo coerente que não permita o esfacelamento social.

Se avançamos com a genética para a teoria de que os genes, por si, agem pela pura vontade de se reproduzir, sem formar um corpo rigorosamente único com um único objetivo, ainda falta ao Ocidente entender como isto dialoga com o conceito médio de moralidade que sempre possuímos, e do qual nem mesmo os pastiches revolucionários abdicaram.

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Se a visão moderna da sociedade obtém certo progresso com a separação entre Igreja e Estado, não parece ser apenas o Estado e a Declaração Universal dos Direitos Humanos que serão capazes de formar um corpo social contínuo e coeso (o que forma um curioso paralelo com a própria teoria científica de Richard Dawkins sobre o corpo humano).

coexistSe o Estado precisa lidar com diversas moralidades públicas em nítido conflito e em ataques, mútuos ou não, umas às outras, parece ter se formado no Ocidente uma espécie de culto ao Estado para manter o corpo social coeso e harmônico com suas diferenças, em contraste com o corpus mysticum do Estado confessional anterior. Substituída a fé oficial, urge a ascensão de uma obrigação formal de todos os cidadãos em acreditar na Constituição oficial, o que nem sempre é possível – tendo como exemplos tanto os revolucionários quanto, por exemplo, as religiões minoritárias, se tornando minorias mais vultuosas com o mundo globalizado.

Basta se analisar notícias recentes, que vão da Itália cobrindo suas estátuas nuas para não “ofender” o presidente iraniano Rouhani em visita (o que se tentou negar sem convencimento) até o cancelamento do almoço com o presidente francês, que se recusou a retirar o vinho do cardápio para o mesmo fito, provocando o cancelamento do encontro.

Esta coesão social, provavelmente, não surtirá grandes efeitos se utilizarmos apenas “princípios morais” genéricos, como sugere Dawkins, sem um simbolismo forte que una os desunidos. Há excelentes documentos seculares desta coesão, como a Constituição americana e seu moto “E pluribus unum”.

Mas são raras as tentativas que conseguem isto apenas pela “lógica”. Mesmo a Constituição americana fala de Deus, e basta se perguntar, como se fez a Ben Carson, se um muçulmano pode ser presidente americano, para ver como a situação é bem mais delicada e complicada do que nossa vã filosofia permitiu-nos enxergar antes dos novos fenômenos.

A unidade de princípios de convivência exige, via de regra, símbolos anteriores ao discurso racional. Se há palavras de obediência imediata, que determinam uma reação específica tão logo sejam proferidas (pense-se em “nazismo” ou “liberdade”), elas já trabalham num nível anterior à sua estrutura frasal.

BLAKE, William 'The Soldiers casting lots for Christ's Garments' C.1800

O trabalho intelectual do conhecimento fragmentado do avanço científico, portanto, já é contaminado por sentimentalismo e tomadas de posições antes de completarmos algum silogismo, que dirá um longo tratado. São o que Mircea Eliade chama de elementos do sagrado permanentes e sobreviventes na moderna visão materialista da sociedade – basta-se refletir sobre a diferença de gestual, comportamento, vocabulário, vestimenta, tom e assuntos permitidos em um tribunal ou um velório de outros ambientes.

É óbvio que rotineiramente religião e o conhecimento secular, muitas vezes científico, entram em choque. Contudo, a tentativa de secularização extrema pós-Revolução Francesa criou símbolos de sintonia que só funcionam sob obediência ao Estado. Individualmente, uma moral razoavelmente adequada pode ser encontrada entre pessoas de culturas as mais diversas. Socialmente, o entendimento mútuo consegue ser encontrado muito mais facilmente numa sociedade com a prevalência cultural cristã do que, por exemplo, se pode esperar de uma sociedade com uma maioria muçulmana “respeitando” outras religiões, o que nunca aconteceu na história do islamismo.

De fato, a religião cristã possui já os esboços do pensamento científico, ainda que em uma linguagem parabólica e de difícil compreensão para o pensamento moderno (tal como a Odisséia ou boa parte dos filósofos gregos, dos versos de Empédocles aos Analíticos Posteriores aristotélicos, são de difícil compreensão). Como o princípio de Deus criar e apenas depois verificar se é bom. Se numa sociedade cristã é possível nascer um Newton ou um Darwin, é difícil presumir o mesmo numa sociedade muçulmana, em que Deus não é familiar, é obscuro, não possui relação de causa e conseqüência e é vontade pura, ao invés de logos (“No princípio era o Verbo”).

Dali-Christ-of-saint-john-of-the-crossIndependentemente das crenças ou descrenças contemporâneas, com suas possíveis explicações sobre o surgimento do Universo ou da vida que podem prescindir da transcendência, é de suma importância saber de onde surgem nossa visão. Ela não é feita de “verdades” que prescindem da linguagem, da cultura, da história e de noções que tratamos como naturais. Tais noções dependeram de uma cultura específica para serem criadas (até a noção de um tempo histórico, que vai para a frente ao invés de ser circular, é uma construção cultural específica, tal como não precisarmos sacrificar humanos para saciar os deuses e, assim, evitarmos tormentas).

Richard Dawkins, apesar de não compreender estas questões bem mais complexas, intui suas implicações instintivamente (o que não se coaduna bem com sua própria “filosofia” de vida). É o que Dawkins quer dizer ao afirmar: “Eu sou um cristão secular”. Ou seja: ele sabe de qual cultura faz parte, e que seu próprio método científico depende de uma cultura específica entre outras. Pode ser um ateu aguerrido contra Deus, mas sabe que a cultura que acredita neste Deus rendeu a vida, os conceitos, o método e a possibilidade de pensar o que Dawkins pensa.

O grande imbróglio para o Ocidente é o que está resumido nesta aparente confusão dawkiniana. Os conceitos da modernidade (ainda acreditamos piamente em todo o vocabulário da Revolução Francesa) são fracos para manter o mundo como sabemos que o Ocidente quer se manter. Pode ter funcionado por uns dois séculos com alguns genocídios que mataram milhões, o que nunca ocorrera antes. Mas nem mesmo este arremedo de civilização convence mais.

Richard-Dawkins-redA democracia, entendida erroneamente como voto universal e uma certa divisão formal de poderes, é incapaz de sobreviver sozinha, por exemplo, se tivermos 50% + 1 votos em nazistas. A Declaração Universal dos Direitos Humanos está preocupada com os direitos de homens que não estão preocupados com os direitos de outros homens. O Estado secular precisa de algo mais do que a mera aceitação do secularismo pela maioria dos seus cidadãos se quiser sobreviver, com as ondas migratórias islâmicas na Europa, que logo pode criar maiorias muçulmanas que não querem este mesmo Estado secular – como no distópico romance Submissão, de Michel Houellebecq. And so on.

A crise de Richard Dawkins é a crise intelectual do Ocidente, dos símbolos que criou para traduzir o mundo para si. Tais elementos culturais puderam ser úteis para um mundo ainda não globalizado, ainda protegido do contato com a expansão islâmica, com problemas maiores e mais complexos do que a Europa recortada do restante do mundo e protegida em sua civilização.

william-blake-behemoth-and-leviathanSe até a década de 90 ou 2000 o Cristianismo ainda conseguia aparecer como ultrapassado, e uma nova intelectualidade e uma nova geração já formada em tecnologia puderam usufruir de símbolos seculares em profusão, até mesmo os símbolos da Europa pré-cristã (basta ver o revival neo-pagão da estética popular destas décadas), ao menos como contra-cultura e provocação periférica, tal discussão pacífica de religião e política em fóruns de internet e letras de música popular se torna fraquíssima, inoperante, atrasada e microscópica perto de um efeito como a imigração muçulmana, o terrorismo jihadista, as burcas e a shari’ah sendo imposta com naturalidade na Europa.

Dawkins anda percebendo que sua cruzada, muitas vezes monotemática e obsessiva, recaiu no maior dos pecados para um pensador contemporâneo: se tornou brega. Cafona e fora de moda como uma pochete. E apenas a percebe por instinto, sem chegar a concluir algo pela sua lógica científica (criada antes do ateísmo).

Infelizmente para alguém tão positivistamente cientificista, a discussão sobre o futuro do Ocidente (e mesmo a garantia do ateísmo não ser punido como a apostasia entre muçulmanos), os símbolos de coesão social que garantiram até o futuro dos pescoços ateus está em um nível bastante anterior de linguagem do que sua ciência materialista pode trabalhar.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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