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Devemos temer o Mein Kampf? (não espere por respostas fáceis)

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mein kampf hitler

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro proibiu a venda do livro Mein Kampf, ou “Minha Luta”, de Adolf Hitler, cujos direitos autorais expiraram neste ano. O juiz Alberto Salomão Júnior, da 33.ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, ordenou a apreensão dos exemplares que já tenham sido impressos e estejam à venda no Rio, e empresas que não cumprirem a decisão podem sofrer multa diária de R$ 5 mil.

Em sua sentença, o juiz determinou que o livro escrito por Adolf Hitler em 1925 “incentiva práticas de intolerância contra grupos sociais, étnicos e religiosos”. O magistrado argumento que livros que veiculam ideias e ideais nazistas ferem gravemente a ordem pública, pois afronta a norma penal insculpida no artigo 20 § 2º, da Lei nº 77168/89.

A Centauro Editora já havia disponibilizado exemplares à venda, desde que os direitos autorais caducaram. Já a Geração Editorial, que preparou uma edição comentada parágrafo a parágrafo, criticou a postura da promotoria quando o Ministério Público pediu à Justiça a proibição da obra. Seu estudo crítico anti-nazista usa o livro para demonstrar as idéias “abomináveis” do ditador alemão.

Postura semelhante teve Carlos Andreazza, da editora Record, que em dois textos comentou o perigo tanto da obra quanto da possibilidade de servir como estopim para a censura – e do papel do editor no mundo hodierno. No blog da editora Record, Andreazza já havia comentado que não se trata do acesso ao livro – facilmente encontrável em poucos minutos na internet. Trata-se de entender que um editor é um mediador, um intermediário. Sobre Mein Kampf, asserta:

É preciso debatê-lo, confrontá-lo, desmontá-lo; não escondê-lo, mitificá-lo – o que sempre tenderá ao efeito contrário.

 Na Gazeta do Povo, em texto detalhado que deve ser lido na íntegra, aprofunda a questão:

Cabe ao editor, do ponto de vista prático, preparar uma edição crítica, comentada, anotada, com a colaboração de historiadores, filósofos e cientistas políticos, que ofereça ao leitor também (e fundamentalmente) a história de como aquelas ideias terríveis foram aplicadas, inclusive para que tal barbárie jamais se repita. É preciso destrinçar criticamente, em detalhes, esse conteúdo, se ele fatalmente chega e chegará aos jovens – e isso é papel do editor.

E comenta a atitude do Ministério Público:

Ações como a do Ministério Público do Rio de Janeiro, que pediu e conseguiu a suspensão da comercialização de Minha luta, tampouco contribuem com alguma luz para a discussão. Ao contrário. Obscuro, o exercício do autoritarismo nunca foi eficiente em convencer. Nada se aprende por meio da interdição. E o que se tem aí é apenas mais uma cristalina demonstração daquilo em que se converteu o saudoso debate público brasileiro: uma disputa por calar o contraditório, por enterrar o dissenso.

Pode-se abusar de suas palavras para tentar uma explicação: o editor, que vai entregar uma obra preparada (e não qualquer PDF na internet), organiza as idéias até anteriores à leitura dos livros – é graças aos editores que as prateleiras das livrarias estão como estão. É uma espécie de tradutor da cultura literária e do mercado editorial. Ele dá significado aos livros além de suas palavras.

Reichsadler_der_Deutsches_ReichUm livro perigoso como Mein Kampf, portanto, exige um trabalho que não é para qualquer editor. Da escolha de uma capa que não faça propaganda aos comentários sobre o texto, tudo tem significado maior e conseqüências maiores do que em livros de outros comuns mortais. Com um assunto que parece ponto pacífico como polêmica, mas ainda não compreendido como o Terceiro Reich, tudo se torna grandioso, inquieto, incontrolável – e geralmente desastroso.

Ora, poucos leram de fato as páginas em que Adolf Hitler narra a “sua luta”. Não é um livro perigoso por ter grandes argumentações sobre a defesa do nacional-socialismo, da “superioridade” da “raça” ariana ou outras bobagens do tipo. De fato, é uma espécie de diário de um perdedor: o livro é chatíssimo, tem-se uma dificuldade enorme em agüentar mais um capítulo de um aspirante a artista justificando seu fracasso porque inferiores eram superiores a ele.

München, Adolf Hitler vor FeldherrenhalleAlgo que passa a zilhões de anos-luz de distância de nazistas que ao menos sabiam algo sobre a língua alemã para vender suas litanias ridículas, como Otto Rahn, Hanns Hörbiger ou Rudolf von Sebottendorf (de quem se diz que, ao ver um sindicalista pregar seu discurso nacionalista contra o capitalismo internacional numa cervejaria em Munique, viu ali um bode expiatório burro o suficiente e controlável o suficiente para ser o futuro Chanceler de um Partido Nazista).

O trabalho de um editor, por exemplo, é explicar, inclusive historicamente, por que um livro como Mein Kampf causou o impacto que causou. E inclusive desmistificar tal impacto: na verdade, o livro só vendeu de verdade após Hitler já estar empossado, e a campanha de perseguição a livros e a qualquer pensamento dissonante do governo estar avançada na Alemanha nazista.

Um público extremamente culto como o alemão não iria se convencer pelas palavras apalermadas de um pintor fracassado, que se prostituiu na juventude e nunca conseguiu nada a não ser pelo sindicalismo (a estratégia política de forçar um povo a lhe obedecer).

Mas em tempos pós-Darwin, de nascente cultura anti-cristã e um nacionalismo mal ajambrado depois dos delírios de grandeza de Otto von Bismarck, quem convenceu o povo alemão a adotar o sindicalismo nacional-socialista foram aqueles autores com seu misticismo gnóstico, traduzido em anti-semitismo e arianismo, em nacionalismo e na teosofia de Madame Blavatsky – a mística que conseguiu uma explicação esotérica e espiritualista capaz de unir a teoria da evolução darwiniana com um racismo crente na superioridade de uma “raça pura”.

hitler-stalinÉ trabalho hoje de um editor ser capaz de entender e traduzir tais eventos a um público leigo. É trabalho de um editor, por exemplo, ser hábil para lançar um livro (velho ou novo, comentado ou uma nova tese) capaz de explicar por que a esquerda, a partir da União Soviética e da historiografia marxista britânica (sobretudo nas vozes de E. P. Thompson e depois Eric Hobsbawm) na década de 1950, chamou o nazismo de “extrema-direita”, termo nunca usado pelos próprios nazistas, que não cansavam de explicar que eram socialistas contra o capital. E por que o anti-semitismo (e seu costumeiro nome fantasia, o “anti-sionismo”) é costumeiramente praticado pela esquerda, que adora ofender seus inimigos chamando-os de “nazistas” e “fascistas” (sem perceber que só se xinga alguém daquilo que ele não é para ofendê-lo).

É traçando tais linhas, muito além de Mein Kampf (e exigindo muito de editores, tradutores e comentadores), que é possível entendermos de fato o que foi o Terceiro Reich e evitar que seus efeitos retornem – pois hoje estão retornando exatamente entre aqueles que mais crêem lutar “contra” o fascismo.

Por exemplo, a Primavera Árabe tirou ditaduras longevas, corruptas e violentas do poder, mas cujos ditadores eram razoavelmente vigiados pelo Ocidente. No Egito, derrubou o tirano Hosni Mubarak, mas colocou em seu lugar a Irmandade Muçulmana, a entidade mais anti-Ocidente do mundo antes do Boko Haram e do Estado Islâmico. Seu fundador, Hassan al Banna, era grande admirador de Adolf Hitler e escreveu longas cartas de apoio ao seu “trabalho”.

Haj-Amin-al-Husseini-and-Adolf-HitlerJá o “Grande Mufti de Jerusalém”, Haj Amin al-Husseini, foi o grande líder do que é chamado hoje de “causa palestina”, além de o principal nome do movimento “anti-colonialismo britânico” no Egito – o que é ensinado em qualquer escola brasileira como grande verdade e justiça. Defensor do califado do Império Otomano (potência que ficou do lado alemão na Primeira Guerra), entidade desfacelada no fim da Guerra, tem como grandes reconstrutores do califado hoje o Estado Islâmico da Síria e do Iraque (exatamente por isso o Daesh é chamado de Estado Islâmico). Seu encontro com Adolf Hitler é famoso, e um grande exército de pesquisadores no mundo civilizado se debruça a produzir toneladas de páginas ano a ano mostrando as relações entre o nazismo e o islamismo.

Quantos são os acadêmicos e intelectuais capaz de mostrar a presença, as conseqüências e o rastro do nazismo hoje, vivos, alive and kicking, e não apenas a aparência de brutalidade de guerras ou de governantes de que se desgosta através de metáforas desgastadas?

mein kampf afeganistãoQuantos enxergam a conseqüência direta, distendida no tempo, da propaganda nazista, em obras como a do marxista espanhol (e amigo de FHC) Manuel Castells, que em seu livro Redes de Indignação e Esperança chega a defender a Irmandade Muçulmana afirmando que ela conseguiu provar que islamismo é compatível com democracia (pouquíssimos meses depois de o livro ser lançado, até a própria Irmandade Muçulmana foi colocada na ilegalidade por um Egito razoavelmente ocidentalizado, de tanto que ela assassinou a população egípcia) e que ela não tinha escolha (coitada!) ao embrutecer no Egito?

Quantos percebem a influência de Adolf Hitler não apenas em negadores do Holocausto declarados como o iraniano Mahmoud Ahmadinejad, mas também no Estado Islâmico com quem Dilma afirmou que é preferível o “diálogo”? E em Abdullah Yusuf Azzam, ou um dos pensadores islâmicos mais influentes do século passado, Sayyid Qutb – ambos sendo os maiores mentores intelectuais de Osama bin Laden?

Quantos, por exemplo, estão aptos a explicar a dinâmica da formação de uma nova sociedade recusando-se o corpo social da Igreja e de sua base judaica, preferindo o tribalismo germânico (desde a Kulturkampf, a luta contra a Igreja, de Bismarck) até o sindicalismo nacional-socialista?

god bless hitlerQuantos estudaram que o nazismo surge de sociedades gnósticas e místicas como a Thule Gesellschaft, que existe até hoje e possui inclusive um site? Quem, na imprensa brasileira, leu um livro para explicar por que o fundador da Thule, o supra-citado Rudolf von Sebottendorf, converteu-se ao islamismo após fundar seu grupo de estudos da antigüidade germânica? E por que os defensores de sindicalismo e os odiadores da “velha ordem” e da Igreja, mesmo sendo materialistas, são tão coniventes com o islamismo?

É fácil fazer um apanhado via Google de sites neonazistas – a estupenda maioria de verdadeiros analfabetos, quase todos com um parente alemão perdido há 5 gerações e muito sangue “impuro” correndo nas veias, usando uma simbologia de S’s, sigmas e suásticas que nem entendem. A dificuldade é ver o que de fato é a resquício nazista relevante hoje.

Mesmo tendo uma obviedade para servir de índice: aqueles que odeiam Israel. Ou de qualquer corrente política que tanto defenda a causa palestina. Basta ver a loja “Hitler”, que exibe manequins armados com facas, e faz sucesso na Faixa de Gaza.

Quantos são os acadêmicos e jornalistas brasileiros capazes de fazer uma conexão óbvia entre a “causa palestina” e a “causa do Lebensraum alemão” de Adolf Hitler? Mesmo tendo um indiscutível e evidente inimigo comum?

https://www.youtube.com/watch?v=WQA4VtUg45k

Isto tudo está além do maçante diário de Hitler. Ora, como um livro, Karl Marx, Michel Foucault, Eric Hobsbawm e tutti quanti são incrivelmente mais danosos, e são usados e defendidos por toda a escumalha acadêmica e jornalística do país e do mundo – este último, em entrevista à BBC, ao ser interpelado se os 50 milhões de mortos nos expurgos stalinistas seriam justificados se Stalin tivesse conseguido implantar o comunismo, respondeu com um simbólico e único “Yes” – além de ser um judeu que recusava aviões que ousassem fazer escala em Tel Aviv.

Com efeito, qualquer livro defendendo a bandidagem (do coitadismo penal à defesa da “corrupção pelos pobres”, tão típicas de publicações de editoras de esquerda, ou progressistas), distendido no tempo e analisando suas causas e conseqüências, pode ter efeito pior do que Mein Kampf, que sozinho nunca significou nada – ao invés de ter colocado o nazismo no poder, precisou do nazismo no poder para ser lido.

Dizem que não há maior contra-argumento a um livro ruim e perverso como a auto-biografia da “luta” de Adolf Hitler do que permitir que ele seja lido. Mas eis aí a grande encruzilhada: livros ruins como Mein Kampf (ou  um dos livros mais impactantes na história da Academia, Das Kapital) não são lidos, nem nunca foram.

muslim-nazi-youthNão é possível esperar que Gregório Duvivier, Pitty ou Tico Santa Cruz finalmente percebam a estupidez do marxismo quando enfim lerem O Capital e perceberem a impossibilidade do cálculo econômico que Ludwig von Mises percebeu naquele livro. Tais pessoas defendem o “outro mundo possível” justamente por ser outro, e não o mundo real.

E livros como Das Kapital ou Mein Kampf são exatamente isto: símbolos de outra coisa. São os livros na estante que, tal como uma bandeira de um clube de futebol, tal como um shibboleth, não são tratados pelo seu conteúdo, mas pelo sentimento de pertencimento a um grupo.

Isto não significa que a força da proibição funcione – do contrário, bastaria proibir todo o marxismo e toda a literatura pró-PT e viveríamos num país sem corrupção e sem arroubos totalitários.

O dilema do Ocidente é justamente entender as causas dos problemas atuais se quiser sonhar em desenhar uma conseqüência melhor do que o suicídio (pergunte a Angela Merkel). E o processo é incrivelmente mais lento e tortuoso.

E para tal, como define Carlos Andreazza, apenas editores sérios a cuidarem de obras que, na verdade, não têm como significado apenas as palavras que contêm – basta pensar no sentimento evocado ao se entrar na casa de alguém e dar de cara com uma suástica na parede.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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