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Não perca agora o melhor do Carnaval (sério)

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fantasia carnaval

Pelo que ouvi há pouco, estou perdendo o melhor do Carnaval. “Mas como assim o Carnaval tem um ‘melhor’?!” Ora, a única coisa que vale a pena no Carnaval é a distribuição de notas das escolas de samba.

Põem sempre aquele gordão com voz tão rouca que poderia ser substituto do Lemmy no Motörhead, e ele começa: “Estácio de Sá… Comissão de frente… Nota….. [pausa para um suspense que faz o efeito da música do Tubarão do Steven Spielberg] NOVE VÍRGULA OITO”.

O melhor, claro, não são os conceitos, tão abstratos que valem uma mistura de Os Princípios da Relatividade de Albert Einstein com Os Conceito Fundamentais da Metafísica de Martin Heidegger.

Tem nota para Harmonia, Fantasia, Alegorias e adereços (de alguma forma, separados de Fantasia – a não ser que sejam alegorias no sentido literário – como uma alegoria entre o traficante dono das bocas de fumo do morro tratado como “revolucionário impercial” [sic] em um certo Carnaval passado), Mestre-sala e porta-bandeira, Comissão de frente, Samba-enredo (o que empaca nossa teoria sobre alegorias), Bateria, Enredo (sem ser o samba-enredo, deve ser uma parte do enredo separada do samba, mysterium tremendum) e… evolução.

Evolução.

Evolução.

EVOLUÇÃO.

E. VO. LU. ÇÃO.

Sabe-se lá como se dão essas notas, ainda mais em quesitos como “evolução”. Quiçá o quanto a escola evoluiu do ano passado para este ano, a evolução do começo ao fim do desfile, ou a evolução darwinista aplicada, a vitória dos mais bem adaptados ao ambiente hostil da Sapucaí com a total aniquilação dos infelizes menos adaptados no meio da avenida, provavelmente dando-se a nota pela quantidade de mulheres (critério de “mulher” à parte) que foram devidamente engravidadas e carregarão genes estranhos entre a entrada e saída do desfile.

Não contente com isso, as notas variam de… 9,0 a 10. Não é algo que permita uma nota abaixo de 9. Inevitavelmente, é uma “evolução” em que todos já começam com nota 9, incapazes de tomar um zero em formato Tomahawk (pund intended) na caçoleta para não ofender sensibilidades.

É um ensaio sobre desigualdade social zilhões de vezes melhor (mas com música eviternalmente pior) do que O Capital no Século XXI de Thomas Piketty. É a idéia de que todos devem ser iguais e são todos vencedores e merecem um nove, mesmo que tenham sido um desastre pior do que a volta do programa do Thunderbird.

É como o Chaves quando responde ao professor Girafales com um “não”, vê que a resposta é errada, fala rapidamente “sim” e, ao ter uma confirmação, grita: “Na segunda!!!! Quer dizer que mereço pelo menos um nove, né?” Ou lembra também Lisa Simpson, quando cria o mundo de Equalia com sua amiga inglesa escritora, lembrando que é um mundo onde todos são iguais, mas afinal, alguém tem de mandar na porra toda.

fantasia bostaÉ uma máxima do Brasil, um país incapaz de admitir que faz merda. Tão verdadeira que não vale pra algo abertamente fuleiro e viciado em entorpecentes como o Carnaval: foi a norma até mesmo no Prêmio Jabuti (ok, igualmente fuleiro e viciado em entorpecentes, mas vocês pegaram a idéia).

Até a 53.ª edição do Prêmio, as notas variavam de 8 a 10, só permitindo encômios e adulação aos autores. Já na 54.ª, as notas finalmente puderam variar de 0 a 10, mas todos os “críticos” literários que julgavam as obras continuavam na margem de erro Datafolha, só elogiando. O crítico literário Rodrigo Gurgel, provavelmente o único crítico literário que é um crítico no país, contrariando a maré de pensamento óbvio, deu notas beirando o zero para a maioria dos romances em disputa, dando nota alta apenas ao romance Nihonjin, de Oscar Nakasato.

Resultado: matematicamente, só sua nota “contou” e o romance sagrou-se vencedor. Na próxima edição, claro, o Prêmio voltou a fechar-se na margem de erro elogiosa (história que conto no prefácio ao novo livro de Rodrigo Gurgel, Crítica, Literatura e Narratofobia).

No Carnaval, não contentes com uma nota que começa com 9, o melhor é ver a cara de desespero a cada nota abaixo de 10. A indignação, a chiadeira geral, a vaia em estádio (acho que é um estádio) só vencida se Dilma ou algum petista aparecesse ali diante do povo.

Há quem esteja na disputa que, ao tomar um 9,9 (um conceito engraçadíssimo: 9,9. NOVE VÍRGULA NOVE!!!!!!), xingue, apareça diante de câmeras berrando, chorando, humilhado e ofendido. “Passamos o ano inteiro tra-ba-lhan-do para recebermos um nove vírgula nove!”, uivam.

cachorros_comecou_o_carnavalNão percebem que só de tomarem um nove de graça já deveriam se considerar abençoados pelo deus da igualdade (Procrustes, talvez), o que valeria um excelente ensaio filosófico (ou sociológico, desse país viciado em Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Darcy Ribeiro e qualquer vomitório falando bobagem na Globo News desde que seja formado em curso de maconheiro na FFLCH) sobre como a premissa do nove para todo mundo implica, afinal, que aquele nove não significa porcaria nenhuma, que tudo o que importa é o micro dígito depois da vírgula, que depois de serem tornados todos iguais à força, o que seres humanos pregando o Brasil brasileiro mais vão querer é o desesperado para serem diferentes, e se estapearão (e trocarão tiros em morros dominados pelo tráfico rivalizando para formar cartéis usando pobres como escudo e peões – o motivo verdadeiro da rivalidade entre Mangueira e Salgueiro) para ver quem é melhor.

A graça do Carnaval deveria ser a zona. O paganismo anual antes do rito de disciplina cristã. Uma espécie de putaria permitida, antes de voltarmos à seriedade da vida adulta.

Mas, pelo contrário, o Carnaval institucionalizado, o Carnaval Rede Globo, o Carnaval do Ministério do Turismo só consegue ser uma festa que copia em tudo o fascismo  e não é naquele sentido mongo de “pessoa que eu não gosto porque não gosta que eu seja gay ou dê pra 8 desconhecidos em uma semana” que é usado hoje pelos acadêmicos, pelo Twitter, pela Folha de S. Paulo e pela Márcia Tiburi.

fantasia_vaca_caesTem regra pra tudo, até pra algo supostamente sem regras como sambar. Um monte de jurados com cara de mal humorados (no Carnaval) avaliando, com notas beirando o infinitesimal, o mestre sala (nunca sei se é a mesma coisa que o Rei Momo, what the fuck ever) e a porta bandeiras, se estão obedecendo corretamente o comando central, se está todo mundo uniforme.

Um coletivo que só porque tem gente pelada (ou gente com roupa que pesa uma tonelada, destrói a coluna e usa salto com o qual não dá para andar, mas está sambando e deixa os peitos de fora) cria a ilusão de não ser um desfile… militar. Um desfile de obediência. Um desfile, afinal, de igualdade.

Alguém querendo nota (e tra-ba-lhan-do o ano inteiro com tal fito) por uma escola de samba torna as brigas a pauladas de torcidas organizadas de futebol em fenômeno tão sério e de motivos tão relevantes quanto a Guerra do Peloponeso.

E em quesitos como “harmonia”. Será uma harmonia modelo Heitor Villa-Lobos ou Arnold Schönberg? Ou será a “harmonia” de todos estarem suando na avenida carregando penas em obediência irrestrita ao passo marcado pelo manda-chuva?

E enredo e samba-enredo – sendo que o único enredo de todos os carnavais brasileiros de toda a história foi algo como “o papel do negro na formação da sociedade brasileira”.

E que dizer de “bateria”? Como dar uma nota “geral” para uma bateria que são umas 300 pessoas batendo lata ao mesmo tempo, fazendo rigorosamente o mesmíssimo som? É de se pensar na famosa cena do “not in my tempo!!!” do filme Whiplash, com o professor do baterista dando um tapão na cara dele e perguntando: “Estou adiantado ou atrasado?!” Como fazer isto com centenas, talvez milhares de pessoas que desde o Big Bang fazem o mesmo som em todo samba enredo, sem variação alguma? Nem o professor saberia dizer qual a porcaria da diferença. O Dave Lombardo sozinho tocando bateria no Slayer foi mais, digamos, “evoluído” do que todas as baterias de escola de samba do Universo.

Não há nada, portanto, que justifique o Carnaval (nem mesmo o famoso “fecha na Prochaska” do Octávio Mesquita).

Ou quase nada. A maturidade para quem não está acostumado com a rigorosa auto-disciplina de se tocar bateria no Slayer (e buscar uma harmonia de liberdade e exigência individual, e não coletivismo fascistóide como para os foliões) deve surgir a cada momento em que toma uma nota mínima – um motherfucking nove – de uma voz grave latejando o destempero e falta de uniformidade militarista de sua escola de samba. É a apresentação aos foliões de algo chamado realidade.

O mundo, definitivamente, seria melhor se a cada dia pudéssemos parar para ouvir, a respeito de nós mesmos e de cada ser humano que cruza o nosso caminho, a sua nota numa voz tonitruante e ominosa:

“Para… capacidade de não empacar no lado esquerdo da escada rolante… Nota… NOVE… VÍRGULA UM!!!!”

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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