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Impeachment

O “golpe” de Elio Gaspari

Em sua coluna n'O Globo, Elio Gaspari diz que há golpe no impeachment contra Dilma, mas não há golpe, mas há golpe, mas não há golpe...

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Elio Gaspari é o típico especialista político moderno. Um especialista, estes convidados de telejornais para opinar, leva a sério a idéia de especialização: sabe de um assunto, e toda a realidade é comprimida a uma comparação com aquele assunto, ou dizer que tudo depende dele. Tudo é espécie, nada é gênero. E a generalização é condenada ipsto facto, como um mal em si.

No caso, a especialização de Elio Gaspari foi o magnum opus de sua vida, os livros mais “completos” sobre a ditadura militar brasileira.

Ninguém melhor do que Elio Gaspari para falar sobre a narrativa número 1 dos petistas sobre o processo de impeachment contra Dilma Rousseff: se há golpe (como houve, ou não houve, ou “houve” em 1964) ou se não há. Afinal, como historiador, é uma autoridade reconhecida pela esquerda e também pela direita – sendo inclusive criticado pela esquerda por não se associar e desculpar automaticamente tudo que venha do PT.

No artigo “Há golpe”, n’O Globo, Elio Gaspari abre com um parágrafo citando a senadora Rose de Freitas, líder do governo Temer. Segundo ela, não houve pedalada (sem nenhum argumento apresentado). O corpo técnico do Senado também afirma não encontrar “as digitais” de Dilma nas pedaladas.

Alguém sabe quem são os peritos? Alguém já ouviu falar de legista que ao invés de dizer a causa mortis, também diga quem foi que matou? Vai além da “especialização” de Elio Gaspari, sem dúvida. Alguém sabe por que ouvir um especialista em ditadura para falar de tópico no qual não é exatamente um especialista?

Elio Gaspari a seguir escreve:

Ela delinquiu ao assinar três decretos que descumpriam a meta fiscal vigente à época em que foram assinados. Juridicamente, é o que basta para que seja condenada por crime de responsabilidade. (Depois a meta foi alterada, mas essa é outra história.) Paralisia, falta de rumo e incapacidade administrativa podem ser motivos para se desejar a deposição de um governo, e milhões de pessoas foram para a rua pedindo isso, mas são insuficientes para instruir um processo de impedimento.

Traduzindo o que não é complicado: Dilma Rousseff delinquiu. Não é pouca coisa: são decretos para fechar contas arrombadas para a sua reeleição, que fizeram com que o país pagasse com juros as contas da gastança da própria Dilma e dos petistas, governistas e apaniguados.

Comentar que a população está brava com Dilma não só por isso, mas também por outros fatores, é um agravante, qualquer primeiranista sabe reconhecer, e não um atenuante. Não há advogado de defesa (nem mesmo José Eduardo Cardozo ou o jurista Tomás Turbando) que advogue de seu cliente: “Ele pode ter roubado, matado, estuprado, seqüestrado, comeu o coração da própria mãe, jogou pedra na Cruz e envenenou a maçã da Branca de Neve, mas também era mal visto pelos vizinhos e seu colega de quarto reclamava que ele não tomava banho, o que não constitui crime”. Bem, não há advogado de defesa que faça isso, exceto o escol de Cardozo e Gaspari.

Após sua típica comparação com a ditadura (do que mais Elio Gaspari falaria? sobre o tempo? sobre como a ditadura já acabou há mais tempo do que durou? sobre como não há registro histórico de ditadura menos assassina do que a ditadura militar de 1964?), Gaspari então conclui que “o que rola (sic) em Brasília não é um julgamento”, por ter alguma semelhança com algo da ditadura (mesmo país, mesma época do ano, mesma língua, mesma cor de parede etc).

Para ele, como para os petistas que ainda não entenderam a perícia, os senadores passaram “a rolo compressor em cima do pedido de perícia”. O mesmíssimo pedido que justifica a fala da própria senadora temerista que o próprio Elio Gaspari usa para afirmar, sem entender, que não se acharam “as digitais” de Dilma Rousseff nas pedaladas, poucos parágrafos antes. Espera-se que sua análise da ditadura militar tenha sido menos baião: dois passos pra lá, três pra cá, dois pra lá, um, três pra cá…

Depois de concluir, portanto, que “há golpe”, como diz seu título, Elio Gaspari solta outro parágrafo:

No caso dos três decretos assinados pela presidente, houve crime. Isso é o que basta para um impedimento, mas deve-se admitir que esse critério derrubaria todos os governantes, de Michel Temer a Tomé de Souza.

Então, que se derrube todos os outros governantes – ou, por este modelo de “lógica jurídica”, que se solte todos os estupradores, assassinos, corruptos… que tal todos os torturadores da ditadura? Ah, espere. Isso já foi feito. Chama-se lei de anistia, justamente para que os guerrilheiros terroristas de esquerda que geraram a ditadura militar, ao invés da cadeia, fossem parar no Congresso e no PT.

Então, houve crime. Então, não houve golpe. O próprio Elio Gaspari diz que “Os partidários da presidente sustentam que o seu impedimento é um golpe. Não é, porque vem sendo obedecida a Constituição”.

Mas, segundo Gaspari, “houve golpe”. Ou melhor: Não é um golpe à luz da lei, mas nele há um golpe no sentido vocabular.” Sentido vocabular é engraçado para quem estuda lingüística. Elio Gaspari invoca o Houaiss, que define golpe, entre outras, como “ato pelo qual a pessoa, utilizando-se de práticas ardilosas, obtém proveitos indevidos”.

Ou seja, tudo está no rito, tudo está seguindo a lei (embora Gaspari tenha tentado fazer como que se não estivesse, nuns parágrafos antes), mas há golpe porque… a intenção das pessoas que tirarão Dilma é ruim, e alguém sairá ganhando no caso de Dilma perder.

Elio Gaspari, tão especialista, tão especialista político, deveria saber que política é um jogo de soma zero: quem ganha, ganha algo de quem perde. Não é como a economia (em que comprador e vendedor, patrão e empregado, saem ganhando) ou o conhecimento. É como o poker ou o xadrez.

Mas, se é para justificar o esbulho das leis pelas más intenções de seus aplicantes, talvez Elio Gaspari deveria se escorar em algo melhor do que a dancinha da minhoca para justificar o injustificável e afirmar que há golpe no que não há golpe e que a Constituição está sendo seguida, mas veja bem, veja bem. Talvez fosse o caso de invocar o Cristianismo e seu desprezo pelo “reino desse mundo”, já que todos – absolutamente todos – os homens são pecadores.

Mas por que Elio Gaspari furta-se a enxergar as mesmas más intenções de “práticas ardilosas” para “obter proveitos indevidos” na senadora que cita, em José Eduardo Cardozo, em Ricardo Lewandowski? Ou então na perícia do corpo “técnico” convocado por Cardozo do Senado (quem desconfiaria destes seres angelicais, afinal?), em si próprio?

Que tal ainda em Dilma Rousseff e nas pedaladas que, supostamente sem suas digitais, só poderiam “passar a rolo compressor” sobre a lei para favorecê-la?

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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