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Facebook e WhatsApp bloqueados – mas não na Roma Antiga

Não é a diferença tecnológica – é a diferença de idéias que, na Roma Antiga, impediria absurdos como o bloqueio do WhatsApp e do Facebook.

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Thomas Cole, Roma: A consumação e a maldição do Império

O WhatsApp corre risco de ser novamente bloqueado no Brasil – desta feita, levando para além da linha da censura todos os produtos do Facebook no Brasil, o que acarretaria a suspensão de sites como Facebook e Instagram. A decisão está prevista no Marco Civil da Internet.

O Ministério Público Federal do Amazonas pede o bloqueio dos sites pois o Facebook se recusa a divulgar dados envolvidos em investigação criminal.

Quizomba análoga aconteceu na América, quando a Apple se recusou a permitir que o FBI tivesse como desbloquear o iPhone do casal terrorista islâmico de imigrantes paquistaneses que assassinou 14 pessoas e feriu gravemente 22 em San Bernardino, na Califórnia. Permitir que o governo tivesse tal poder, mostrou a Apple, deixaria qualquer usuário do iPhone com a privacidade em risco. Pessoas de qualquer tendência política podem sentir o mesmo medo: basta pensar no que aconteceria se um adversário fosse eleito e despirocasse.

O Marco Civil da Internet, que permitiu tantos bloqueios do WhatsApp e agora ameaça bloquear todo o Facebook no Brasil graças a uma decisão no Amazonas, é uma espécie de “Constituição” da internet.

Protesto contra censura da internet na RússiaO invento faz parte de experimentos de países que querem controlar a rede, desmantelando sua atual base livre no poderio militar americano. Vladimir Putin, como já explicamos aqui, promove variações do “Marco Civil da Internet” para poder controlar o ICANN, a database de endereços da rede, hoje monopólio americano. Vladimir Putin pretende “dividir” o controle do ICANN com países como sua Rússia, China e aliados. Se a China não quiser que o Google mostre alguns resultados sobre “direitos humanos”, ou o partido neonazista grego Golden Dawn quiser o domínio nazi.com, voilà, serão marcos civis, dividindo o poder da internet com grupos de interesse variando do eurasianismo de Putin a terroristas islâmicos em sua marcha “anti-imperialista”.

Não se sabe até hoje o que o Marco Civil da Internet fez de bom para a internet brasileira: é uma típica “solução” governamental para um problema que não existe, e apenas gera novos problemas. E não problemas de mesmo patamar: cria-se um poder ditatorial e de censura da parte do governo, que coincidentemente estava extremamente interessado na lei.

Sua defesa, propagada por celebridades como Gregório Duvivier, Marcelo Tas, Gilberto Gil, deputados psolistas como o ex-BBB Jean Wyllys, Marcelo Freixo e Ivan Valente, e também por Marco Gomes, dono do Boo Box, afiançava que sem o Marco Civil, o acesso à internet seria “dividido” e vendido em pacotes separados – acesso ao Youtube seria mais caro do que acesso ao Gmail, por exemplo.

Propaganda da "neutralidade" da rede como Marco Civil da Internet

Assim foi a propaganda do que “ACONTECERIA” com a internet se o Marco Civil não fosse aprovado. Tal internet “dividida” nunca aconteceu em lugar nenhum do mundo – ao menos não em lugares SEM marcos.

Tal visão apocalíptica nunca se consubstanciou, mas com o Marco (o Gomes e o Civil) o acesso a determinados sites e serviços consegue ser bloqueado com freqüência. Até hoje a única celebridade a admitir o falhanço do Marco Civil e do Marco Gomes foi Rafinha Bastos. Todos os outros fogem à responsabilidade.

Se a modernidade consegue se meter com freqüência em trapalhadas que são a porta de entrada para uma “regulamentação” modelo chinês da internet, pode-se ter certeza de que tais quinquilharias nunca seriam aceitas por uma sociedade hiperdesenvolvida e beirando o grau máximo de sapiência terrena possível, como a Roma Antiga.

Os antigos, que sabiam mais do que nós a respeito de tudo, tinham línguas mais ricas e poderosas – ou seja, mais detalhistas e próximas de um sentido original, distante da nossa decadência cultural – e usavam duas palavras para o conhecimento público.

Falavam tanto da scita, o conjunto de conhecimentos políticos, econômicos, tradicionais, culturais, lingüísticos, históricos, geográficos, militares, técnicos, científicos das massas e dos políticos no poder, quanto da scienda, a quantidade de conhecimento extraído de tais conhecimentos prévios capaz de gerar conclusões lógicas e racionais. É desta palavra que se formará a scientia, a ciência.

A diferença entre a scita e a scienda já era brutal na Antigüidade: um político dificilmente saberia caçar, ou um chefe militar não saberia cozinhar um guisado para suas próprias tropas.

scienda, aquilo que já atingiu um grau de verbalização e abstração mais elevado, é por definição absurdamente menor do que a scita, o conhecimento comum. Quem vive na esfera da scienda pode até saber falar bem, como um orador ou, modernamente, um acadêmico – mas dificilmente tem qualquer conhecimento prático sobre as coisas: assim que queima o arroz, precisa ligar para a mamãe que não estudou além da quarta série.

É um dos temas do platônico Íon, gerando as situações mais hilárias quando o rapsodo Íon se esquiva de afirmar que é bom em tarefas inglórias por saber declamá-las de Homero, como lavar pés ou cuidar da faxina, mas crê-se um excelente estrategista militar tão somente por ler e declamar versos sobre tal scita.

Roma AntigaTodos os mecanismos políticos da Antigüidade civilizada ocidental, fosse o modelo de cidades-estado gregas com seus basileus (reis tribais) ou a avançadíssima república romana, evitavam que as decisões que só possuíssem scienda, todos aqueles conhecimentos ainda organizados e transformados em filosofia ou discurso lógico, ficassem nas mãos de quem não tivesse contato com tais atividades – o famoso saber apenas por ouvir falar. Por isso, exatamente ao contrário de hoje, um príncipe era o primeiro a comandar seu exército, à frente até da infantaria: apenas com o conhecimento da guerra com espadas perto de seu pescoço ele poderia comandar um exército. E assim por diante.

Hoje, vivemos o tempo da burocracia. Tudo é decidido por gabinete, por engravatados em repartições públicas abarrotados de conhecimento sobre sua própria burocracia, cada vez mais apartados da scita, o conhecimento real, da coisa prática.  A scienda, ao invés de ser uma racionalização sobre a prática, já é uma racionalização sobre a própria racionalização.

O que um doutor, um especialista, um comunicador ou acadêmico hoje sabe diz mais respeito à forma de como manter e justificar sua própria profissão do que a algum problema concreto e real das pessoas que ele julga representar ou defender. É uma scienda sem scita. Algo chique, com aparência de elevação, mas sem referência nenhuma.

Erik von Kuehnelt-Leddihn (autor de um famoso ensaio chamado, justamente, Scita Et Scienda: The Dwarfing of Modern Man), em seu livro The Menace of the Herd, responde a H. L. Mencken, que advoga que cada nova invenção tecnológica mata um deus. Kuehnelt-Leddihn pode concordar com os deuses não-revelados, mas lembra que cada invenção também cria uma regulação, uma proibição, uma lei, um agente policial para aplicá-la.

O mundo moderno e os modernosos que ganham com ele ignorando o passado se desenha com clareza de meio-dia observando-o com tal panorama.

Acaso alguém com tais noções no vocabulário corrente, como os gênios políticos eternos da saudosa Roma da era ecumênica, permitiria que uma excrescência à inteligência como o Marco Civil da Internet existisse?

Faz algum remoto sentido racional inventar uma lei, uma “regulamentação” para algo que funciona muito bem sem regulações arbitrárias – algo tão inteligente quanto regular as plantações, os ventos, a chuva ou a felicidade humana – na suposição de que o poder físico do Estado – a potestas – consertará uma quantidade de conhecimentos divididos por agentes tão numerosos e distintos quanto o total de usuários de internet de um país?

Será mesmo que quem entende dos problemas da internet é uma meia dúzia de celebridades com conhecimento jurídico nulo, noção beirando um buraco negro sobre como funciona a internet e onde estão os computadores que armazenam suas informações, mas que propõem “soluções” para problemas inexistentes falando palavras bonitinhas de significado oco, como “neutralidade”?

Se é praticamente impossível crer que Cícero, Marco Antônio, Júlio César – ou Virgílio, Sêneca, Ovídio e Juvenal – soubessem mais do que queremos e do que precisamos ao usar a internet do que nós mesmos – cada um de nós, usuários –, que dirá algum promotor no Amazonas. Ou o Marcelo Tas ou um ex-BBB.

O mundo moderno, ensinou Kuehnelt-Leddihn, possui um abismo cada vez maior entre scita scienda, e é uma crença matematicamente infalível para a tragédia crer no democratismo rebanhista para controlar, pela força da maioria através do poder do Estado, controlar cada aspecto de nossas vidas pela política. A scienda é muito menor do que a scita, e não podemos abdicar da quantidade colossal de conhecimento que não cabe em palavras. Basta pensar em promotores destruindo a comunicação de todo um país por acreditar que é uma punição adequada ao Facebook.

Ignoram algo próximo do que Friedrich von Hayek, ao demonstrar a impossibilidade do socialismo conhecer a necessidade de seu povo, chamou de conhecimento tácito: aquilo que não pode ser colocado em discurso lógico, de trocar a marcha do carro ao segredo do bolo da vovó. Esperar que promotores do Amazonas saibam de nossas necessidades básicas concentrando todo o poder em suas mãos com apoio de Gregório Duvivier, como se eles soubessem mais de comunicação e justiça do que toda a sociedade, é a grande religião da modernidade.

Se um Marco Civil da Internet regulado por Cícero, Catão, Pompeu, Júlio César e Marco Antônio já é uma idéia tão panaca que tais gênios só a aventariam para destruir seus inimigos – e tomando extremo cuidado para a censura não se voltar contra eles próprios –, que dirá um Marco Civil da Internet cujos “conhecedores” dos problemas e soluções da internet são uma escumalha do escol de Gregório Duvivier, Gilberto Gil ou Jean Wyllys.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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