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Séries de TV

Game of Thrones é uma série direitista

O mundo desoladoramente belo de Game of Thrones possui violência e amoralidade, mas revela sua força em personagens com valores conservadores. #spoilerfree

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Arya Stark matando em Game of Thrones

Game of Thrones é a série mais comentada de todos os tempos. Seu mundo de fantasia medieval sombrio, com uma amoralidade absoluta e graus de violência e decadência nunca antes vistos na TV de maneira orgânica e harmoniosa, chamaram a atenção do público por um curioso misto de beleza e horror, de maldade sem redenção, que torna nossa vida mais palatável. Apesar de não termos aquele belo figurino e nem dragões.

Apesar de seu autor, o americano George R. R. Martin, ser um declarado Democrata (ao contrário de J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis ou G. K. Chesterton, todos conservadores), o mundo descrito em A Song of ice and Fire, a heptologia de Game of Thrones, representa muito bem o imaginário de valores do conservadorismo.

Game of Thrones - Stark e Lannister. Play or die.Como série, Game of Thrones pode servir de exemplo claro de como funciona um mundo sem a tradição ocidental defendida pela direita política. Grandes analistas da direita, como Eric Voegelin e sua análise de Israel & a Revelação, e como o mundo moderno se pautou pelo gnosticismo, uma teoria da transcendência baseada em divindades políticas locais e falsificações de tradições, ou René Girard, que concebe a teoria do desejo mimético para explicar por que Deus precisou se sacrificar para salvar a humanidade, deixam claro que um mundo sem essa tradição só pode descambar na violência, desespero, morticínio, guerras, disputas tribais, religiões locais gnósticas e o eterno risco de mortes violentas por inimigos pouco interessados em códigos de guerra retratados na série.

Família tradicional, aristocrática e monárquica

Podemos enxergar a série pela ótica de uma família aristocrata, os Stark, que, graças à interferência de antigos aliados, a família Lannister, acaba se esfacelando. Os Stark, honrados e representando valores admiráveis, governam Winterfell com justiça e ganham simpatia imediata do leitor ou telespectador por suas virtudes.

A família Stark deve permanecer unida, e Game of Thrones revela sempre uma sensação de injustiça quando os Stark estão separados por força de governantes que preferem a força política contra a tradição familiar.

Cersei e James Lannister, em Game of ThronesMas a família de antigos aliados Lannister revela-se uma família desfuncional. Quando os Stark visitam os Lannister em um encontro diplomático, a primeira grande tensão da série se dá entre a família honrada e admirada dos Stark, que age pensando numa continuidade de tradições e produz filhos admiráveis como futuros governantes, e a família Lannister, que vive de aparências para esconder dos súditos sua amoralidade e perversão, gerando filhos perturbados, infelizes ou verdadeiramente maléficos.

Todos os Stark começam a sofrer por descobrirem os segredos dos Lannister, que precisam mantê-los escondidos para manter seu poder de soberania de Estado, mesmo com uma família completamente falsa.

Ned Stark, o patriarca, passa a ser alvo dos Lannister ao perceber que, mesmo com a Coroa falida, o rei Robert dá suntuosas festas e não se preocupa com continuidade, com moderação, com poupança e nem mesmo com sua esposa Cersei – que, apartada da idéia de construir uma família, recai naquilo que Santo Agostinho chama de libido dominandi: uma busca desenfreada por poder e por prazeres obscuros através de sua capacidade de domínio e sedução.

Entre seus filhos, Bran Stark é empurrado de uma torre após flagrar Cersei fazendo sexo com seu próprio irmão gêmeo, Sor Ja

 

mes. O lobo de Sansa Stark é morto após atacar o filho de Cersei, o infernal Joffrey, embora seu objetivo fosse mesmo matar o lobo de sua irmã Arya Stark. E Ned, ainda por cima, descobre o que é apenas muxoxo em Porto Real (King’s Landing): que os filhos de Cersei não são de Robert, mas sim do seu próprio irmão gêmeo, Sor Jaime.

Robyn Arryn é amamentado em Game of ThronesNed é preso em uma artimanha e sua família começa a derrocada maior. Seus filhos são todos separados, e Game of Thrones tem como grande tensão toda uma guerra de todos contra todos que se desencadeia pela dinastia destruída e o vácuo de soberania gerado pela busca de poder desenfreado dos Lannister, que começam a comprar antigos aliados dos Stark para conquistar a soberania sobre o território de seus agora inimigos.

Apesar de o século XX ter sido marcado por um conflito que hoje é entendido como econômico, reduzido a Estado x mercado, esta é apenas sua externalidade. A verdadeira oposição entre esquerda e direita se dá no âmbito da família: o Estado deve ser mais poderoso do que a unidade familiar, ou a família tem real soberania, e o Estado perde seu poder completo ao confrontar-se com o poder dum pater familias?

Joffrey Baratheon, filho de Cersei LannisterMesmo a economia (seja o direito de herança ou a “igualdade de oportunidades”) ou a moralidade (um pai pode educar seu filho em oposição ao que quer um professor?), mesmo a estrutura política (escolas públicas? Estado gestor? armas disponíveis? liberdade de imprensa?) ou a sexualidade (o Estado deve reconhecer casamento gay? criar “banheiros transgêneros” e bebês sem definição de gênero?) passam pela questão de definir o poder da família anteriormente. Esquerda e direita não se definem tanto mais por Marx ou Mises, e muito mais por Foucault ou, bem, pela família.

Quando testemunhamos a dilaceração dos Stark por obra do poder meramente estatal, mundano e material dos Lannister, e toda a guerra que se avizinha em decorrência da busca de poder dos Lannister, notamos como Game of Thrones, ainda que sem consciência por parte de seu autor, não consegue quebrar as amarras instintivas de seus leitores: a justiça está do lado de uma família honrosa, enquanto o mal cresce em uma família disfuncional, anômala, problemática e perturbada.

Família Stark unidaBasta comparar os 4 filhos Stark (Robb, Arya, Sansa e Bran, além de Jon Snow) com os filhos Lannister, onde Joffrey é infernal em seus instintos assassinos, Tommen é uma platitude sem personalidade e a filha que se salva, Myrcella, tem delicadeza e beleza, sem a propensão para a crueldade de sua mãe, sem ter nenhuma virtude que a torne admirável por seus atos ou mesmo que a permita sobreviver em um mundo amoral e perigoso. Os Stark, até por seu próprio nome, agem pensando em continuidade e conservação. Os Lannister, pelo imediatismo que gera destruição.

Mesmo Ramsay Bolton, que começa se vingando de Theon Greyjoy por este trair os Stark, se mostra dominado pela libido dominandi e se torna o mais sádico mortal de apetites transviados que o Norte conhece.

O mundo de hoje volta a ter uma disputa violenta entre o Estado e a família tradicional, uma espécie de oposição entre Starks e Lannisters a nível individual. É fácil perceber de que lado está a esquerda e a direita nessa batalha. Cada política desejando uma fragmentação da família, separando filhos e irmãos, e prometendo tutela estatal, tem algo de Cersei Lannister em suas entrelinhas.

As virtudes e vicissitudes de Westeros

As virtudes, entendidas pela tradição judaico-cristã, definem justamente os bons e maus personagens de Game of Thrones, e não qualquer traço social, racial, hierárquico ou de busca por prazeres, como querem as várias ideologias esquerdistas do mundo moderno.

Robb Stark planeja a guerraÉ impossível ver um progressista da ação afirmativa e da ideologia de gênero, hoje, admirando as virtudes de cavalheirismo – da nobreza à coragem, da cortesia à fidelidade – dos cavaleiros medievais ou de Westeros. Até mesmo o esforço feito para adquirir tal glória e respeito pelos pares (o treinamento de Arya e Sam, a resistência de Jon Snow e Robb Stark contra tentações e soluções fáceis) são ignoradas pelo esquerdista moderno. Aliás, nada é mais atacado pela esquerda, hoje, do que a idéia de um hiato de esforço entre uma vontade e um objetivo.

A fé em um ideal maior, a esperança que dá forças de onde nenhuma materialidade consegue dar, a caridade com os mais fracos e mesmo com os inimigos – as virtudes teologais da tradição cristã ainda permanecem reconhecidas pelo público como o que separa amigos de inimigos. Personagens no meio do caminho, como o Cão (Hound), ficam nessa situação justamente por terem virtudes cardinais (prudência, justiça, fortaleza, temperança) sem terem virtudes teologais.

É exatamente este o tema da discussão entre Arya e Sansa no final da temporada 7: Arya reclama que a irmã, por mais que fosse uma criança, deveria ter coragem de enfrentar os Lannister ao invés de colocar toda a família em risco (e desencadear todos os eventos da trama) esperando que os mais velhos resolvessem tudo por ela, que não se esforçava para aprender a lutar, preferindo apenas a passividade de esperar reinar sem virtude ou honra nenhuma. Arya ainda frisa: nunca colocaria ninguém contra sua família. É uma declaração que a tornaria uma ultra-reacionária hoje.

Tyrion Lannister vai para a lutaMesmo uma família disfuncional como os Lannister permite personagens com algumas virtudes. O anão Tyrion, irmão de Cersei, já liderou uma guerra em nome da família, assim como já se virou contra as crueldades de seu nome e hoje é Mão (conselheiro) de Daenerys Targaryen, a grande rainha que conquistou povos e exércitos justamente pela virtude que povos primitivos não conheciam em governantes. Seu irmão Jaime, que começa como um grande vilão, se mostra curiosamente “tentado à bondade” em diversos momentos, e nos últimos momentos da série só não debanda para o lado dos mocinhos por ainda cair na velha tentação de sua irmã, Cersei.

A guerra entre o fogo e o gelo de Game of Thrones, inspirada na histórica Guerra das Duas Rosas (1455-1485) na Inglaterra, entre a casa de York e a casa de Lancaster, é na verdade uma disputa entre virtuosos e imorais, entre família e Estado, entre a moral e os degenerados. É curioso ver como alguém pode reconhecer tão bem tais valores na ficção, e atacá-los tanto na realidade, agindo completamente sem imaginação na vida concreta.

A fé metastática

Talvez o único elemento que falte a Game of Thrones que a direita factual possui é a religião. Ao menos, formalmente: Robb Stark, Jon Snow, Daenerys Targaryen, Arya Stark, Tyrion Lannister, e mesmo personagens razoavelmente secundários (Brienne de Tarth, Ygritte, Mance Rayder, Jorah Mormont, Sam Tarly) não parecem viver em um mundo de religiões locais e étnicas sob auspícios de nenhum deus.

Pelo contrário: até mesmo quando a Fé dos Sete toma Porto Real e faz ninguém menos do que Cersei Lannister fazer uma ultra-ultrajante walk of atonement (uma caminhada da vergonha), foi o único momento em que se sentiu piedade por uma das maiores vilãs da série.

Arya Stark e Syrio Forel treinam espadas em Game of ThronesTal repúdio à religião é ainda externalizado por Syrio Forel, o primeiro treinador de Arya Stark (“There is only one god, and his name is Death. And there is only one thing we say to Death: ‘Not today’), além da crítica de Daenerys Targaryen, afirmando que possui muita fé, mas apenas em si própria. Tyrion Lannister assim declara sua visão metafísica: “O Senhor da Luz quer queimar seus inimigos, o Deus Afogado quer afogá-los. Por que os deuses são esse bando de filhos da puta sádicos? Onde está o deus dos peitinhos e do vinho?” Jon Snow também não parece discordar.

Na verdade, são religiões daquilo que Eric Voegelin, o maior nome do conservadorismo mundial, chamou de seitas gnósticas. A modernidade, afinal, foi até mesmo criada por “religiões políticas”, que não possuem uma tradição, uma revelação, e buscam retirar tradições (como a dinastia dos Stark) por arremedos de “conhecimentos” esotéricos de sérias conseqüências políticas, como Shireen Baratheon sentiu na pele, ao ser queimada viva em sacrifício ao Deus da Luz por seu próprio pai.

Retirada a Revelação, sobra às novas seitas fazer arremedos com conhecimentos tradicionais e, ao invés de conceber a realidade como inferior à perfeição metafísica, usar o poder político para tentar criar uma Sião na Terra. Sem um Deus que se auto-sacrifica pelos pecados, temos como purgação dos pecados a caminhada da vergonha de Cersei Lannister ou o Senhor da Luz exigindo o sacrifício de Shireen Baratheon.

Cersei Lannister, caminhar da vergonha (walk of atonement)Apesar de a Fé dos Sete de Game of Thrones ser encarada como uma espécie de “bancada evangélica” (sendo o cristianismo uma sociedade de culpa), seus expurgos públicos em nome da vergonha pública têm mais a ver com os julgamentos islâmicos ou os expurgos comunistas (sociedades de vergonha). A alma já não é mais individual: cada culpa precisa ser expurgada em público, por toda a sociedade, pois todos são uma engrenagem de um projeto unificado e planificado de ação humana.

É o que Eric Voegelin chama de fé metastática: a crença de que é possível tirar a humanidade do entremeio de sua ligação com o bem e o mal, a dialética da Queda do homem, e construir pela força política uma sociedade livre da tensão da existência. O bem e o mal não estão mais dentro de cada homem, mas na estrutura da sociedade. Sem entender a tentação da árvore do Paraíso, movimentos modernos de massa criam religiões políticas como o nazismo e o comunismo.

Apesar de toda a nossa oca verborragia acadêmica moderna, bastaria restaurar o valor do auto-sacrifício, do Deus que se faz carne para salvar a humanidade e não ser mais preciso fazer sacrifícios para apascentar os deuses, para haver um mundo com mais paz e menos violência.

Política dos mortos

Esta questão, afinal, é metafísica. E emula a metafísica (e a mitologia nórdica) o longo inverno que está vindo, no qual poucos acreditam. Se os nórdicos tinham o Fimbulvetr, o “inverno extremo” que anunciaria o Ragnarök, o fim do mundo, Game of Thrones desde sua primeira cena mostrou qual o verdadeiro inimigo: os white walkers, os mortos que estão nas regiões ermas além da Muralha (como a Muralha de Åsgård, protegendo os deuses do mundo caótico dos gigantes de gelo).

White walkersOs mortos não são “acreditados” por todos, e enquanto testemunhamos 7 temporadas de violência, miséria, imoralidade, perversões e uma injustiça de fazer Sodoma e Gomorra parecerem uma matinê, tão somente por mesquinhas disputas políticas que vão diminuindo o número de vivos, a verdadeira batalha se avizinha enquanto ninguém a nota: a dos vivos contra os mortos, quase como um Apocalipse onde corpos e almas estarão sob risco, enquanto todos gastaram suas vidas disputando ninharias. É quase como um julgamento final sem um Juiz.

Novamente, continuidade, conservação, lei, ordem (o mundo ordenado de Westeros contra o caos sem lei das terras do sul e do norte da Muralha), honra, coragem (o que dizer de quem vive ou vai para além da Muralha? mesmo que seja um Sam Tarly?), fortaleza, fé, esperança, e mesmo família e fidelidade são os elementos fundamentais que protegerão Westeros de cair no reino do caos.

Os mortos, como os esquerdistas modernos, são seres de puro apetite sem nenhum freio de ação em Game of Thrones. Muito mais do que a respiração, o que os diferencia dos vivos, como nas tradições religiosas do Ocidente, é fazerem parte de um mundo sem lei, do caos e da força bruta. Ao invés da conservação, a destruição. Se os vivos honrados agem como criadores de civilizações, patriarcas, reis e heróis, os mortos são como gafanhotos, apenas tomando à força o que vêem pela frente. É um MST com olho azul e com cheiro melhor.

Enquanto os vilões de Game of Thrones, e a esquerda da realidade, tentam resolver tudo via política e poder do Estado (ou de soberanias degeneradas) para auferir proveitos próprios, sem um mínimo de abnegação, a direita preocupa-se com a eternidade. Não há discurso sobre “justiça social”, de imanência pura, capaz de competir com a honra necessária para manter Westeros (praticamente uma monarquia de Estado mínimo) protegida contra o exército dos mortos e do Rei da Noite.

Afinal, é a esquerda ou a direita que pensa em poupança, em comedimento, em investimento de longo prazo e abnegação de prazeres mundanos porque sabe que the winter is coming? Que esquerdista crê que seu problema é metafísico, envolve um julgamento maior do que a política, que o perigo que a humanidade enfrenta não é de imanência e que a verdadeira batalha não será vencida por Estados com fé metastática?

Jon Snow e White WalkerPor fim, resta sublinhar a frase que deixou a última temporada famosa, quando os Stark sobreviventes finalmente se reúnem e, ao invés de teorias furadas como a “culpa coletiva” da esquerda, preferem manter uma continuidade dinástica para agir em sua vida: the north remembers. O próprio Partido Republicano americano usa um elefante como símbolo por ser lento, forte e ter longa memória. Tyrion Lannister também se mostra um herói desta casa justamente por “beber e saber coisas”. Apesar de beber (e transar muito) como prazer imediato, é um bom conselheiro e homem que guia seus soberanos por virtudes e sabedoria.

Você já viu um esquerdista achar que é preciso haver comedimento, ter uma família bem estruturada e que a honra é mais importante do que a atuação do Estado? The night is dark and full of terrors, old man, but the fire burns them all away.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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