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Crônica da semana

A árdua trajetória da história: começos

Nel mezzo del cammin di nostra vita

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Nunca foi segredo, embora ninguém saiba, que tenho uma predileção pelo início das histórias. Talvez seja porque minha atenção é mesmo limitada, dando-me apenas alguns minutos de foco. Ou talvez seja outro o motivo. As histórias dependem de bons começos. É o laço procurando o pescoço certo.  

O único autor com licença para começar mal seus textos é Dostoievski, apesar de que o começo de Memórias do Subsolo, “sou um homem doente, um homem mau”, é a própria voz do sangue, como disse Nietzsche. Será que alguém daria alguma atenção à metamorfose de Gregor Samsa se Kafka, logo de cara, não tivesse nos dito que certa manhã, após sonhos intranquilos, nosso herói encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso?

Carrego com carinho o começo de muitas histórias. Robert Musil e seu Homem Sem Qualidades, desatando o nó costumeiro do tradicional começo das histórias; O Estrangeiro, de Albert Camus, “hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”. Perturbador! Que tipo de filho tem essa reação ao receber a notícia de que a mãe morreu? Mesmo que não tenha amor por ela. O início de Nas Trevas Exteriores, do Cormac McCarthy; Hermann Broch e A Morte de Virgílio; o doce e familiar início de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust: 

“Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: ‘adormeço’.” 

 

Joyce e seu majestoso gorducho Bucky Mulligan aparecendo no topo da escada. A beleza das imagens de Euclides da Cunha descrevendo o planalto central do Brasil. O temeroso Brás Cubas que, pedindo auxílio a Stendhal, Laurence Sterne e Xavier de Maistre, calcula quantos leitores terá. 

São muitas boas histórias com muitos bons começos. Nem entrarei nos contos, pois aí a coisa viraria um oceano. Ficaremos com os mares pacatos das obras maestras do mundo.

 

“O Nellie, um iate de cruzeiro, girou em torno da âncora sem o menor estremecimento das velas e imobilizou-se. A maré estava cheia, o vento quase parado e, tendo por destino descer o rio, só lhe restava ficar ancorado e esperar pela virada da maré.”

Joseph Conrad, O Coração das Trevas

 

O nostálgico começo de O Grande Gatsby, “Em meus anos mais vulneráveis de juventude, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci”. E o conselho nem importa tanto. Tem os que preferem se apresentar logo de cara, como Dickens faz em Grandes Esperanças. “Me chame de Ismael”, diz o narrador de Moby Dick. Luis Fernando Veríssimo começa o seu O Jardim do Diabo explicando que ele não se chama Ismael. 

A literatura é uma longa conversa. Borges nem deveria entrar aqui, mas seu prólogos são tão belos que é impossível não citar ao menos alguns momentos: 

“(…)Tento intervir o menos possível na evolução da obra. Não quero que seja torcida por minhas opiniões, que são o que temos de mais frívolo. O conceito de arte engajada é uma ingenuidade, porque ninguém sabe exatamente o que executa.(…)”

A inscrição de A Cifra:

“Da série de fatos inexplicáveis que são o universo ou o tempo, a dedicatória de um livro não é, certamente, o menos arcano. É definida como um dom, um presente. Salvo no caso da indiferente moeda que a caridade cristã deixa cair na palma do pobre, todo presente verdadeiro é recíproco. Quem dá não se priva daquilo que dá. Dar e receber são a mesma coisa.

Como todos os atos do universo, a dedicatória de um livro é um ato mágico. Caberia, ainda, defini-la como o modo mais grato e mais sensível de pronunciar um nome. Pronuncio agora seu nome, Maria Kodama. Quantas manhãs, quantos mares, quantos jardins do oriente e do ocidente, quanto Virgílio.”

“(…) Não há um único homem que não seja um descobridor. Começa descobrindo o amargo, o salgado, o côncavo, o liso, o áspero, as sete cores do arco e as vinte e tantas letras do alfabeto; passa pelos rostos, pelos mapas, pelos animais e pelos astros.”

 

Por falar em prólogos, como esquecer da advertência de Rabelais aos “bebedores ilustres e preciosíssimos bexiguentos”. Eu, de cara, obedeço. Como obedeço a Cervantes me chamando de desocupado. 

Gosto muito das primeiras estrofes da Odisséia: 

“Fala-me, musa, do homem astuto que tanto vagueou, 

depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada”

 

E Dante que no inferno se encontra perdido numa selva escura bem no meio do caminho da vida. 

Há tanta civilização aí!

Temos aqueles começos explicativos, como em A Montanha Mágica:

“Queremos narrar a vida de Hans Castorp – não por ele, a quem o leitor em breve conhecerá como um jovem singelo, ainda que simpático, mas por amor a esta narrativa, que nos parece em alto grau digna de ser relatada.” 

 

Campos de Carvalho começa A Lua vem da Ásia de um jeito simples, sem querer causar qualquer rompante de estranhamento no leitor:

“Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Invocando a legítima defesa– e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por 5 votos contra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.”

 

As primeiras linhas são fundamentais. Resolvi recolher algumas das menos conhecidas, aquelas que nos dão a medida da genialidade inútil de grandes homens. Também a literatura invisível tem grandes começos:

“O silenciador produzido pelas indústrias Bevilaqua abafou o som do tiro dado por Alípio Carmine, que, talvez por esse motivo ou pela ótima vedação acústica feita pelo Grupo Randolphe, não ecoou na entrada do salão principal do teatro municipal de Nielhsburg, na noite de quarta-feira, dia da estreia da famosa ópera O Ingrato, de Ferdinand Grappa, matando o ilustre tenor Armandinho Pileque.”

Hiroshi Kuhn, Quem Matou Armandinho Pileque?

 

“Existem momentos na vida em que nos sentimos iluminados, em que tudo se revela cristalino e nossa percepção recebe, como um milagre, toda a compreensão e juízo do mundo. O sol inunda de vida os ossos, a carne. Os reflexos, tão perfeitamente ajustados ao momento. Enquanto caminhava, Evgeni Mastrochenko sentia o todo divino atravessar sua carne, o chão era como as tábuas do assoalho de uma casa familiar. 

– Vai tomar no cu! Aqui é faixa de pedestre, seu viado! – disse Evgeni, sentindo ainda todo o peso do universo rondando sua consciência, enquanto observava o carro virar abruptamente a esquina. – Tomara que morra!, pensou por fim.”

Lao Bukowski Tse, A Garganta Mística

 

“(Três pontinhos) Como eu dizia, em Tegucigalpa, longe da vista do chefe, tomei um caminho estreito por uma ruela de pouca luz e muito calada, estando sempre de antenas atentas ao menor ruído que explodisse por ali. Era já sobretarde quando avistei meu destino. Bati com a ponta da bota Ferretti, comprada em Geneve por meros 800 talentos, duas vezes no primeiro dos cinco degraus da entrada da Igreja dos Santinhos Cegos (Iglesia de los Santitos Ciegos, na língua local, ou pelo menos na minha língua local). O padre Elói pôs para fora da janela seu focinho e em braile, para não fazer sequer ruído, mandou que eu pulasse a cerca lateral e subisse pela escada da sacristia, evitando o terceiro degrau, apodrecido pelo constante pisar, depois virasse o corredor defronte e entrasse direto na terceira porta do lado direito. Saltei cerca fora, alisei a parede até a escada e subi quase como uma bailarina lituana, saltitando degrau a degrau, menos o terceiro, até o corredor defronte e entrei terceira porta a direita adentro. (?)

Ibn Khaduz Pereira, O Padre Elói

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Carlos de Freitas

Carlos de Freitas é o pseudônimo de Carlos de Freitas, redator e escritor (embora nunca tenha publicado uma oração coordenada assindética conclusiva). Diretor do núcleo de projetos culturais da Panela Produtora e editor do Senso Incomum. Cutuca as pessoas pelas costas e depois finge que não foi ele. Contraiu malária numa viagem que fez aos Alpes Suiços. Não fuma. Twitter: @CFreitasR

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