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Crônica da semana

Excertos da vida literária como ela não é

De Ovídio a Nico Fidenco: a palavra enquanto espaguete ao sugo

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Luís de Camões apresentou a poesia de língua portuguesa ao mundo; Gregório Duduvier fez o mundo ter ódio dela. A literatura produz universos pela ação transcendente da imaginação e é capaz de destruí-los também. É pela literatura que captamos o detalhe da vida, aquilo que as regras gerais não alcançam. A alta literatura é cheia de significados, mas não é esse amontoado de frases vazias acima. Não pretendo aqui buscar uma chave, mas apenas contemplar algumas das mais belas e (por que não?) elucidativas fofocas literárias. Um pouco de análise séria de quem largou a auto-ajuda para dedicar-se ao auto-desespero.

I

Há uma íntima relação entre o fazer literário e aquela cochilada após o almoço. Nos cadernos de receita da senhora Mann, está essa bela observação sobre o marido: 

“Thomy receava soltar puns depois do almoço, por isso pedia que eu maneirasse no tempero.”

Os estudos literários esquecem de investigar esses pormenores da vida dos grandes mestres. Uma miríade de detalhes que, se investigados a fundo, dariam uma chave crucial de interpretação. Dickens cutucava o nariz todas as manhãs; Faulkner lambia os bico da chaleira antes de preparar seu chá; Buckowski esmurrava sua amante, dizendo: “você não é a Doris!”. O mundo da política também investe nas miudezas. Stalin foi o primeiro líder a impor que os membros do Politburo cutucassem uns aos outros e depois dissimulassem sua conduta. Hitler, talvez enciumado, obrigou que seus ministros fizessem chifrinhos uns nos outros nas fotos oficiais. Não está provado, mas dizem por aí que Fidel Castro limpava os ombros de membros da sua equipe e, quando viravam a cabeça para o lado, levavam um sonora bolacha. O biógrafo oficial que observou essa atitude desapareceu, restando apenas a lenda.

II

Dentre os mais relevantes estudos literários acadêmicos está o que pretende reconstruir o primeiro parágrafo de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Não é segredo pra ninguém que, narrado em primeira pessoa, o próprio Marcel deitou-se cedo, durante muito tempo. Os estudos linguísticos e cabalísticos modernos, com uma profunda sensibilidade para com o que é contemporâneo, tentam obter a chave que faria, hoje, Proust dormir mais tarde. No excelente estudo dedicado às fronhas e lençóis de cama que aparecem no primeiro volume da grande obra Proustiana, Everardo Gomes Y Prates, pergunta-se, investigando a conduta modernista de Proust, se o grande escritor teria refeito o primeiro parágrafo do seu livro, dizendo: “durante muito tempo, costumava checar os e-mails antes de deitar-me cedo.” Gomes Y Prates, com agudeza e síntese raras, analisa ao longo de 765 páginas (a primeira parte do seu estudo) as possíveis tarefas que o personagem principal faria antes de se deitar cedo. “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo”, não parecia suficiente para a academia. Como o estudo é de 2001,antes da epidemia das redes sociais, Prates não conseguiu averiguar a procedência das fronhas usadas.

Foi Nelson Pederneiras, o autor de Métodos Kantianos na Elaboração de uma Festa Infantil, quem respondeu da melhor forma, a meu ver, a essa indagação sobre as ocupações do personagem-narrador antes de ir cedo se deitar: “Durante muito tempo, após xingar muito no Twitter, costumava deitar-me cedo.” Nelsinho saboreou a fama acadêmica com esse achado. Citando Hegel e sua visão da história, Pederneiras compreendeu que se Proust vivesse hoje, jamais dormiria cedo e, por conseguinte, seu personagem-narrador, antes de dormir, acessaria o Twitter e o Tinder. Talvez até desprezasse o beijo da mãe. Embora seu estudo tenha sido publicado há pouco tempo, já figura entre os mais notáveis feitos do homem neste planeta. 

III

Os grandes homens também amparam suas existências em grandes palavras ou cenas literárias. Churchill, em momentos de profunda tristeza, lia Dickens na esperança de amansar seu refluxo. Nietzsche esmagava enfurecido biscoitos egípcios toda vez que lia um autor russo. Camus, na puberdade, usava as imagens rupestres de Zola para descabelar o palhacito. A literatura é essa longa conversa, às vezes entediante, mas sempre propícia para se acender um charuto. Exupery tinha tara por anões: o fundo psicológico de O Pequeno Príncipe é um grito de desejo desesperado: me cative, gnomo, me cative! Xuxa escreveu seu primeiro livro de máximas lendo São Tomás de Aquino enquanto brincava de índio. O humor irrita a vida, segundo Zé do Caixão. Nas páginas de O Eco do Mudo: Elucidações de um Crime Amarelo, Zé retrata a vida como um pé de moleque e não toca mais no assunto. Nós também não tocaremos. 

IV

Roger Scruton não diz, mas no livro Beleza, está implícito o seguinte argumento: só compreende a beleza quem já dormiu com uma garçonete grande e gorda na beira de uma estrada. Talvez daí se dê a chave da compreensão do porquê as mulheres casem-se com homens sem nenhum atributo estético, fora a orelha. “A alma humana é esse treliçado de palha”. A famosa máxima pertence a Sidney Rebusqueta, ortodontista e glutão, que viveu no século XVII. Muito se especula se sua vida profissional era bem-sucedida. Rebu, como ficou conhecido no Círculo de Boston, viveu trinta e oito anos e deixou sete máximas, das quais só essa chegou até nós. 

V

Foi Quevedo quem o encontrou numa biblioteca de Madrid. Achou entre os tomos da Suma de Santo Tomás. Foi Everardo Gomes Y Prates quem o transcreveu. É uma ode de amor à leitura.

A leitura, como todos sabem, é um hábito dos mais saudáveis. Só comparado talvez aquelas atividades intelectuais refinadas, porém distantes da maioria de nós, tais como: não deixar um pudim desmanchar, assoviar e chupar cana, correr num saco de batatas ou equilibrando um ovo numa colher. E foi pensando nisso que resolvi, também eu, contribuir com pais, tios, assassinos em série e madrastas, irmãos, filhos, tutores legais, carcereiros… Enfim, todos aqueles e aquelas que sempre se desesperam ao ver alguém que amamos derramado no sofá vendo alguma série medonha ou uma novelinha grosseira, para não citar aqueles documentários de mau gosto da tevê paga. Pensei em cinco regrinhas básicas que os ajudará a manter a literatura no seu tão merecido pedestal.

Vamos lá:

Comece cedo se for possível. Inicie a criança em algo simples e de fácil compreensão. Aos três anos, por exemplo, Kant é uma excelente pedida.

Acorrente a pessoa a uma cadeira confortável. Ajeite numa posição na altura dos olhos um tomo da Enciclopédia Britânica de George Ellison.

Leve a pessoa para passear no zoológico. Se ela insistir em comer churros, atire-a na jaula dos suricatos.

Grite algo em árabe toda vez que a pessoa que você quer instruir se aproximar do controle remoto e a ameace com duas pilhas AA.

Abandone os hipermercados. Utilize apenas as vendinhas locais.

(continua)

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Carlos de Freitas

Carlos de Freitas é o pseudônimo de Carlos de Freitas, redator e escritor (embora nunca tenha publicado uma oração coordenada assindética conclusiva). Diretor do núcleo de projetos culturais da Panela Produtora e editor do Senso Incomum. Cutuca as pessoas pelas costas e depois finge que não foi ele. Contraiu malária numa viagem que fez aos Alpes Suiços. Não fuma. Twitter: @CFreitasR

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