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História

Há 101 anos acabava a Primeira Guerra Mundial – e uma parte importante do mundo

Na 11.ª hora do 11.º dia do 11.º mês acabava a “Guerra para acabar com todas as guerras” – e quatro impérios, a nobreza, os Estados cristãos e o espírito europeu

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Primeira Guerra Mundial

O imaginário histórico que nos foi impingido trata a Segunda Guerra Mundial como o grande evento a ser estudado no século XX. De fato, o Holocausto e o horror do Terceiro Reich de Hitler – sem contar o número de mortes até hoje felizmente não atingido – tornam a Segunda Guerra no assunto dos assuntos para se entender minimamente a história.

Porém, se quisermos entender o que foi, afinal, o “curto século XX”, nas palavras de Eric Hobsbawm (que, curiosamente, teve uma das visões mais desastradas sobre este século entre todos os historiadores), precisamos voltar nossos olhos para antes, a Primeira Guerra Mundial, o conflito mais importante da história mundial, encontrando como rival talvez apenas a Guerra do Peloponeso (que vai definir o que é o Ocidente, no século V antes de Cristo).

Geralmente estudada de maneira atabalhoada, como um resumo grotesco (assassinam o arquiduque da Áustria em Sarajevo; todo mundo começa a se invadir; Alemanha perde, cria o nazismo 20 anos depois), é a Primeira Guerra que vai causar um choque mais assustador sobre um viajante no tempo que olhe para o que era o mundo antes dela e como seus quatro anos de batalhas criaram um mundo praticamente irreconhecível.

O efeito mais óbvio é a monarquia: a ordem política da Europa, noves fora a França e a isolacionista Suíça (que não participou de nenhum dos dois grandes conflitos), estava de pé há cerca de 14 séculos. Uma ordem internacionalista por si: reis, até hoje, casam com rainhas de outros países, criando laços de sangue que devem – e, na maior parte do tempo, conseguem – suplantar elos políticos mais temporários, que variam ao sabor das circunstâncias. Nicolau II da Rússia falava com sua mulher, a belíssima Alexandra Feodorovna, em inglês, pois a imperatriz consorte era alemã e nem sequer falava russo.

A bem da verdade, os conceitos de “direita” e “esquerda” funcionam mesmo em repúblicas: a ordem monárquica está antes e acima disso. Era uma ordem internacionalista em que famílias reais formavam governantes extremamente preparados, em um nível que parece irreal hoje – até no Brasil, há registros afiançando que o imperador D. Pedro II falava 23 línguas, sendo fluente em 17 (foi o primeiro a traduzir “As Mil e Uma Noites” do árabe arcaico para o português brasileiro).

Nas famílias reais é fácil encontrar os melhores cientistas de seu tempo, os maiores poetas, os mais dedicados intelectuais, e nenhuma instituição produziu tantos santos além da própria Igreja. Sua conduta era averiguada nos mínimos detalhes desde o berço, e a condução da família era encarada como a própria condução do país.

Depois da Revolução Francesa, foi uma idéia surgida na Alemanha que iria colocar o apreço pela monarquia em xeque: o nacionalismo incentivado pelos românticos, que começava a ofuscar a ordem internacionalista monárquica e querer dar valor a tradições locais – curiosamente, em um país que ainda… não era um país em fins do século XVIII. Os revolucionários românticos começam a sonhar tanto com reis de um passado idílico e irreal quanto com democracia e socialismo, com paganismo e ideais raciais emprestados da moderna ciência (e, logo, do darwinismo).

É o fim da Primeira Guerra que permite que belas lendas e tradições orais sejam inspiradoras da pior máquina de matar já construída pelo homem – justamente quando a monarquia sai e entra em seu lugar o reino da democracia e do socialismo. E, hoje, nem sequer estudamos algo sobre a estrutura da monarquia.

A Primeira Guerra é a consubstanciação deste ideal que iria destruir o mundo antigo e que, hoje, está sendo retomado sem que ninguém o entenda: o nacionalismo. Dos quatro principais partícipes iniciais, três eram primos: Nicolau II da Rússia, Wilhelm II da Alemanha e George V da Inglaterra. Nicolau e Wilhelm, que logo estariam em lados opostos das trincheiras, se comunicavam em telegramas se chamando de “Willi” e “Nikki”. Apenas Francisco José (Franz Joseph I) do Império Austro-Húngaro tinha ligações com Wilhelm por uma noção de povo – a língua em comum, sendo que suas dinastias, Habsburg e Hohenzollern, já tinham sido inimigas em um passado bem próximo.

Ao contrário da Segunda, que tem um inimigo claro e capitalistas e comunistas unidos contra o horror nazista, a Primeira Guerra é um pesadelo de personagens importantes (só de marechais com decisões importantíssimas a serem compreendidas no alemão são 5 em 4 anos), sem uma clareza sobre um lado “certo”.

Se por um lado os alemães se mostraram cruéis e selvagens já nos primeiros dias de guerra, sobretudo na Bélgica (aonde foram se meter por um erro de cálculo grotesco: a crença de que o diminuto país simplesmente iria “abrir passagem” para seu poderoso e temido exército, sem resistência), muito se questiona hoje sobre o envolvimento da Inglaterra, que nunca teve boas relações com a França para querer ajudá-la (e sua aliança com o país continental era considerado pouco mais do que um aperto de mão). A Inglaterra via com horror a ascensão industrial alemã, e acabou lucrando muito ao destruir sua rival.

A questão econômica, por sinal, também é um componente complexo e cheio de sutilezas na Primeira Grande Guerra. Foi a primeira guerra após a ascensão dos Bancos Centrais (com pesado envolvimento da família Rothschild, que logo criaria a nova ordem econômica mundial e uma das maiores financiadoras do que chamamos hoje de “globalismo”). De fato, parece mesmo que os Bancos Centrais existiram justamente parafinanciar a guerra: impressão de moeda é liquidez rápida para compra de armamentos, com pesadíssima inflação (sobretudo para o lado perdedor) logo depois.

Além de ter efeitos em uma mentalidade anti-capitalista que, por conta disso, logo descambaria para o anti-semitismo, há ainda outro complexo fator: os pesados empréstimos da guerra foram tão vultosos que, se um banco geralmente espera que seus clientes enriqueçam para pagar suas divinas, logo a conta ficaria invertida e bancos lucravam com famílias inteiras deixando seus bens sem haver sobreviventes para virem buscar o que emprestaram. A entrada da América na Guerra (e os poderosos bancos de Nova York) também criaria a nova ordem econômica internacional que conhecemos hoje.

Foi o presidente americano Woodrow Wilson, o Democrata maior inspirador do neoconservador George W. Bush, quem acabou determinando os rumos da Guerra, chamando-a de “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Ao contrário da Segunda, que praticamente já estava definida em fins de 1941 (a Alemanha perderia, restava saber em quanto tempo), a Primeira Guerra estava em certo “empate técnico” até, literalmente, a última batalha. Já deixava de ser uma guerra por campos de batalha, já que, desde o princípio, não era uma guerra por território, e sim apenas para subjugar o exército inimigo, com uma tecnologia militar que havia avançado um absurdo com metralhadoras de maior alcance, tanques (com participação do próprio Winston Churchill em seu protótipo) e aviões. Restava apenas saber quem conseguiria matar mais soldados adversários: uma guerra definida pelo maior número da contagem de cadáveres.

Após uma gigantesca artimanha da Inglaterra e uma imprudência alemã imperdoável, a América abandona seu isolacionismo definido desde a Doutrina Monroe no século XIX (“A América para os americanos”) e vai combater os poderes centrais, comandados pela Alemanha, na Europa. A era do intervencionismo americano começava, além da pax americana definida por ação militar, empréstimos financeiros, ocupação em busca de paz e o espalhamento de uma estranha doutrina que logo viraria moda entre europeus: a democratização do território vencido (da Alemanha ao Iraque, o padrão se manteria).

A guerra, em si, conseguiu ser mais chocante do que a Segunda, com suas “mortes mais rápidas” na BlitzKrieg e nos bombardeios em massa (inclusive nucleares). Foi a famosa “guerra de trincheiras”, em que soldados tinham praticamente um tiro a disparar, depois correr com uma baioneta sob fogo de metralhadoras na “zona de ninguém” (no man’s land) e, muitas vezes, matar o inimigo a golpes de faca, sob pesada lama, chuva e um clima intermitente que marcou os 4 anos (até uma divina aurora boreal surgiu no céu da Itália um dia antes do conflito, para avisar que boa parte do mundo estava acabando). O uso do gás mostarda, explosões de montanhas (!), florestas que foram literalmente metralhadas e outras ações que parecem saídas de filme de ficção foram testemunhadas por soldados.

Além do mundo novo em conflito com o mundo antigo na política (enquanto Wilson pensava em reeleição, Nicolau II usava um curandeiro da Sibéria com “poderes mágicos” para tentar curar seu herdeiro da hemofilia), também se dava o mesmo em campo de batalha: tanques e cavalos dividiam o mesmo batalhão, tal como aviões e baionetas, facões e máscaras de gás. O pesadíssimo arame farpado na no man’s land matava tanto quanto granadas.

Ainda mais significativo para o mundo das idéias, foram os quatro anos da Primeira Guerra que popularizariam algumas das ideologias que vão dominar o mundo até hoje: o ateísmo (pense na dificuldade de encontrar um pensador ateu antes da Guerra, e na dificuldade de encontrar um pensador cristão depois dela), que nasce com o fim do Estado confessional. A psicanálise, substituindo a confissão religiosa. O nacionalismo, o socialismo marxista (com a Revolução Russa de 1917 tendo nítido caráter internacional), a democracia não apenas como “bem absoluto”, mas como única alternativa permitida de organização política. O coletivismo e o pensamento de classes sociais, até hoje quase o pensamento único das humanidades.

Também o globalismo: uma guerra supostamente “nacionalista” só poderia ter como solução uma nova liga internacional a substituir a monarquia – ou seja, um sistema de governança transnacional, a Liga das Nações (futura ONU), que surge dos escombros das trincheiras para impor sanções pesadíssimas à Alemanha no Tratado de Versalhes. O Direito Internacional não poderia ficar mais irreconhecível: todos os grandes conflitos mundiais agora teriam um terceiro elemento, multilateral e fazendo lobby internacional, presumindo sempre uma intervenção armada de diversos atores poderosos.

Isto para não falar do modernismo nas artes: se o romantismo alemão buscava, ainda que idilicamente, um passado, a trincheira abandonou o “gênio” individual e o expressionismo logo trataria a multidão de corpos como o objeto que pode causar o sentimento mais forte no espectador. A abolição dos padrões, o relativismo, o ódio pela técnica (a arte “feia”), uma busca desesperada de sentido e de alguma consciência esfacelada pelo horror de morrer por uma causa que não é sua.

O que chama tanto a atenção na Primeira Guerra a seus estudiosos, além de sua complexidade intrigante (quem estava certo? quem estava errado? quem foi o culpado? como poderia ter sido diferente?), é como alguns de seus princípios estão em conflito.

Países tinham obrigações com seus aliados por laços diplomáticos. Ao mesmo tempo, uma pressão nacionalista (não raro, revolucionária, como nos casos de Rússia e Sérvia) interna. Laços de família (como no caso de Nicolau e Wilhelm) em conflitos com laços patrióticos (Wilhelm e Franz Joseph), mesmo com posições econômicas causando um terceiro desentendimento (Nicolau e George).

De fato, apesar da linguagem política atual fazer sempre referência ao nazismo e ao fascismo (curiosamente, fenômenos anti-clericais e anti-monárquicos em sua essência), são justamente estes conflitos internos entre “ismos” aparentemente contraditórios, como o nacionalismo e a família, os acordos com dois aliados que logo brigarão entre si, cada um exigindo o seu apoio, ou a crise extrema de representatividade de um povo que não sabe por que está lutando e morrendo que vão tornar a Primeira Guerra tão próxima aos dias atuais.

Da religião à democratização, do Oriente Médio à invasão da China, da destruição do colonialismo ao chamado “imperialismo”, foram quatro Impérios destruídos – Russo, Otomano, Austro-Húngaro, Alemão – até divisão de países, seja por etnia (como a criação da Iugoslávia e da Tchecoslováquia), seja por modelo político, com a primeira divisão da Alemanha em uma ditadura militar de um lado e uma ditadura socialista de outro.

É quase impossível pensar em algo, do socialismo internacional ao nacionalismo étnico, do relativismo ao liberalismo beligerante, do ateísmo à nova composição da família, do feminismo à revolução, do neo-paganismo ao positivismo, do cientificismo ao modernismo, que não tenha sido criado na Primeira Guerra ou incrivelmente aprimorado nestes horríveis quatro anos de conflito.

Isto, é claro, é apenas nosso tira-gosto, nosso esquenta: em mais alguns meses, nossos leitores logo terão o mais aprofundado e rigoroso acompanhamento que a internet já viu sobre a Primeira Guerra Mundial. Afinal, ela é quem define o mundo em que estamos hoje, como a Guerra do Peloponeso determinou o Ocidente. Stay tuned e continuem nos seguindo.

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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