Digite para buscar

Crônica da semana

Minhas primeiras cartas

"Hoje, Otto, hoje, estou sozinho no meu quarto, estou sozinho em casa, estou sozinho no universo, e ao meu lado está uma garrafa de vinho"*

Compartilhar
Letter-from-Margaret-Brew-001

 

Novamente eu retorno a esse tema das cartas. Tenho uma predileção pelas coisas que não existem mais (nostalgia que chama?): máquinas de escrever, fichas telefônicas, voz ao telefone, bêbados líricos, academias analógicas, gente madura, três refeições ao dia… As cartas têm um lugar especial. Foi por uma carta que fiquei sabendo das segundas intenções de uma coleguinha que queria me dar um beijo de índio. Também foi numa carta que Fedora me disse que ia comprar cigarros: duas horas depois, os alemães invadiram a França.

E por que retomo o tema?

Eu vasculhava um antigo baú, que pertenceu ao Almirante Toalha e que foi deixado como indenização ao meu avô, quando o almirante cuspiu-lhe uma uva no ouvido esquerdo, tapando-lhe a saída e entrada de sons e impedindo, com isso, que meu avô pudesse ouvir a sonata pastoral em estéreo (sua preferida), quando achei lá no fundo um conjuntinho de cartas amarradas com barbante francês Stopyra e que pode ser adquirida na Amazon, por módicos oito dólares o metro. Eram as minhas primeiras cartas.

Cheio de curiosidade, cortei o barbante Stopyra com minha tesoura Rocheteau, mesma marca usada pelo Rabino Montcalm Schmeck, quando fazia circuncisões clandestinas na Moldávia, a cinco centavos de rublo, e desdobrei-as com muito cuidado.

O que li, cheio de lágrimas, me reconduziu um pouco ao meu eu perdido, aquele eu que se esvai, desmorona, que esmorece sem esperança a cada vez que lemos a Folha de SP ou um tuíte do Lobão.

Antes de publicar algumas das cartas, é bom adverti-los que alguns nomes foram ocultados propositalmente e outros mudados sem querer para que suas devidas personas não sofram qualquer represália. 

São diatribes cotidianas, conselhos de vida, pedidos de dinheiro, ameaças de morte… Achei que deveria, a fim de perder mais leitores, compartilhar com vocês algumas dessas cartas. Cartas de um lirismo vulcânico, temperadas com um mau humor crônico, salsa e cebolinha.

Aqui vai:

 

São Paulo, 8 de maio

 

Querido Luís,

 

Recebi seu dedo ontem mesmo e lhe informo que passaremos adiante suas exigências. Certifico-me de que não pretende enfiar a mão naquele torno novamente, certo? 

O Zé disse que tem muita esperança em você. Por favor não cometa mais a gafe de tirar dinheiro da caixinha de Natal dos seus colegas.

 

Abraço,

T.

*************

 

Mãe!

 

Descartei minha fralda no lixo lá de fora, aquele grandão de metal. Juro que fiz como a senhora me ensinou. Já tenho 3 anos e consigo assimilar bem as coisas. Tomei o leite com achocolatado enquanto lia Freud. Estava muito gostoso.

 

Beijo! Te amo! (Não no sentido freudiano)

*************

 

Lise, minha excelente querida!

 

Aqui em Bangladesh tudo é muito diferente. Daca é uma cidade apaixonante. Ontem quase tomei duas facadas e levei um tiro só porque limpei o suor da testa com meu lenço feito com a pele do tigre local e que pertenceu a antiga nobreza bengali. Mas você sabe muito bem que eu não sou de guardar mágoas. Levei na esportiva e tratei de raspar a barba para que ninguém mais me reconheça aqui.

Jogo Cricket toda quarta, mas evito tomar banho junto com os outros atletas, todos muçulmanos radicalíssimos, pois podem dar falta da minha fimose e perceber o corte do Rabino Montcalm. 

O trabalho tem evoluído. Devo voltar pra casa assim que assassinar Fedora. 

 

Um beijo longo do seu…

*************

 

20 de Novembro de 1963

 

Caro Lee,

 

Seus olhos apenas

 

Air Force 1 deve pousar às 11:40

 

Espere o presidente passar pela Elm Street

 

Encha seis bexigas com água use aquela bazuca que usamos para brincar na piscina

 

Mire na Limusine

 

Não queremos que John e Jackie se molhem muito

*************

 

Meu excelente William,

 

Sua carta me pegou de surpresa. O carteiro aqui resolveu que não gosta de mim e quando eu saio à porta o danado me atira as cartas, de modo que a sua me atingiu a testa, pegando-me totalmente desprevenido.

Fico contente que tenha trocado de boteco. O Mississippi já foi um bom lugar para bêbados como nós. Aliás, o mundo já foi mais condescendente conosco. É cada vez mais raro encontrar um bom boteco imundo onde a verdadeira dignidade humana possa se refugiar. 

Mas vamos ao que interessa.

Acho os saltos no tempo uma ótima ideia. Todo mundo vai achar Benjamin um tolo, mas nós sabemos que ele sofre de incontinência urinária e tem um terceiro mamilo. Eu recomendaria pinçar uma frase do Shakespeare e colocar como título. Aquela sobre a vida ser uma história contada por um idiota sempre nos divertiu. Está tudo muito interessante, mas eu colocaria mais uns personagens nesse conto. Vou conversar com Mildred e pedir mais uns bourbons para lhe enviar.

 

Aquele abraço,

….

  • Trecho de uma carta de Hélio Pellegrino para Otto Lara Resende

————–

Saiba o que está por trás da CPMI das Fake News, o tema mais urgente do ano, em nossa nossa revista.

O Senso Incomum agora tem uma livraria! Confira livros com até 55% de desconto exclusivo para nossos ouvintes aqui

Faça o melhor currículo para arrumar um emprego e uma promoção com a CVpraVC

Compre sua camiseta, caneca e quadro do Senso Incomum em nossa loja na Vista Direita

Conheça a loja Marbella Infantil de roupas para seus pequenos (também no Instagram)

Faça os cursos sobre linguagem e sobre Eric Voegelin (e muitos outros) no Instituto Borborema

Faça gestão de resíduos da sua empresa com a Trashin

Siga-nos no YouTube Instagram

Assuntos:
Carlos de Freitas

Carlos de Freitas é o pseudônimo de Carlos de Freitas, redator e escritor (embora nunca tenha publicado uma oração coordenada assindética conclusiva). Diretor do núcleo de projetos culturais da Panela Produtora e editor do Senso Incomum. Cutuca as pessoas pelas costas e depois finge que não foi ele. Contraiu malária numa viagem que fez aos Alpes Suiços. Não fuma. Twitter: @CFreitasR

  • 1
plugins premium WordPress