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Ah, look at all the lonely people

Diário de um isolado

O dia de um confinado por causa do coronavírus é mais que ler Platão e tocar as campainhas dos vizinhos. É somar os ilhós das roupas, contar o número de panelas, aprender a fazer malabarismo com mais de dois limões

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isolation

Segundo dia

Acordo às dez da manhã, depois de uma noite mal dormida, com estampidos numa caçamba em frente ao meu apartamento. Me sinto um gigantesco inseto. Domino a vontade de sair metralhando meio mundo e vejo o que está acontecendo. Um mendigo caça madeiras e as testa na caçamba para ver se são de boa qualidade. Fico mais calmo. Não quero o mal do mendigo, mas que uma dessas madeiras podia ricochetear no seu olho, podia.

Não é nem meio-dia e já escutei áudios do Fernando, da Prevent, do Fábio Jatene, do David Uip, do Roger Abdelmassih e do Joseph Mengele. Ainda não sei o que pensar dessa doença. A divisão de classe para mim parece cada dia mais absurda. A divisão humana mais plausível é de graus de desespero. Tenho uma tia que já morreu três vezes em duas semanas, que já sentiu todos os sintomas, os agravamentos, a intubação, tudo bem documentado pelo WhatsApp; e um primo que documenta seu desespero mandando um meme a cada hora. Esses são os dois extremos dessa divisão. 

Tomo, enfim, o café da manhã. Desde que deixei de tomar café com açúcar, a vida se tornou muito mais chata. Agora, quando adoço o café, ele fica horrível; quando não adoço, também. Quem me alertou pra isso foi meu amigo, Filipe Trielli. Carrego um ódio infinito por quem convenceu minha personalidade fraca de que café sem açúcar é chique. Porque bom essa coisa não é.

As informações sobre o vírus são tão desencontradas que resolvi adotar a seguinte regra: desespero absoluto terças e quintas; serenidade segundas, quartas e sextas. Aos fins de semana, descanso, por óbvio.

O Estadão já disse que o presidente tá com ciúmes do ministro da saúde. Vejam só. Eu aposto que nenhum jornalista consultou presidente, ministro ou quem quer que seja. É vontade de criar crise. O jornalismo profissional é a atividade mais asquerosa praticada no país, nos dias de hoje. Aliás, numa pandemia quem deveria assumir o protagonismo? O Galvão Bueno?

São duas da tarde. Acabei de comer. Ops. Nada disso. Só esquentei o almoço, mas ainda não comi. Tá tudo muito confuso. Daqui a pouco é o próprio Hipócrates que vai mandar um áudio falando sobre a gripe chinesa. É gripe chinesa sim. Coronavírus é brochante demais. “Centenas de mortos por causa do coronavírus!”, não dá. Parece que tomaram um Nescau estragado. Gripe chinesa é imponente, é digna. Você entra no céu, no purgatório e preenche o formulário na triagem: causa da morte? Coronavírus. Não né! Gripe chinesa.

Agora sim vou comer.

Pensando bem, gripe chinesa é foda também. Gripe chinesa deveria ser curada, sei lá, com acupuntura, massagem na clavícula. Essa não é a especialidade da medicina chinesa? Falo de ouvido, não entendo nada disso.

A gripe é chinesa, mas estou me sentindo um autêntico espanhol. Almocei e fiz a siesta. 

Comecei a ver uma série da Amazon. Uma bobagem com o Al Pacino. Tirando O Poderoso Chefão, todos os outros filmes do Al Pacino são bobagens. Mas são com o AL PACINO! A série é sobre uma fictícia caça aos nazistas que se passa nos anos 70.

Tô adorando esse isolamento. Tempo bem usado é outra coisa. Descobri coisas incríveis já. Aqui em casa tem 18 panelas, 8 sabonetes, 14 rolos de papel higiênico, 9 almofadas, 8 travesseiros, 11 pentes, 21 caça-palavras já preenchidos, só 15 tampas de panelas, 118 fitas de VHS, 1933 livros, 201 discos, 132 CD’s, 23 DVD’s, nenhuma espreguiçadeira, 8 canetas, 13 lápis, uma nota de 2 reais que achei dentro de um dos livros, 9 tênis, 3 botas.

Tudo contado e recontado. Agora tive uma idéia brilhante. Vou medir todos os tênis de mesma numeração para ver se o tamanho bate. Depois vou medir cada taco do piso.

Estou bem animado. Vou começar a ler a Montanha Mágica. Fala sobre o coronavírus daquela época. 

O fio dental tem 14 metros se esticado. Ele já foi usado, devia ter mais. Já decorei as capitais da Europa e África. Acho que vou aprender piano. 

Se o vírus não nos matar, o governador João Doria fará o possível para que a bandidagem dê conta do serviço. Foram várias fugas em vários presídios. Brasileiro sofre de todo lado. O boneco de cera que elegemos para o governo não vai sossegar até conseguir sabotar tudo o que tem sido feito de bom no país. 

Tudo o que eu queria agora era um áudio do médico Guimarães Rosa passando algumas recomendações: “De sofrer e amar, a gente não se desfaz.” Ou essa: “Esperar é reconhecer-se incompleto.” Acabei de ler o conto Desenredo. “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.”

Mais um achado: uma maleta (devia ser do meu avô) com 7 veda-roscas pela metade, uma chave philips espanada, 4 chaves de fenda, 2 alicates universais, um grifo, 3 parafusos com bucha, 2 porcas sem parafuso, um saquinho contendo 4 brocas de vídea e 9 de ferro, um chaveiro com 7 chaves Allen enferrujadas e um martelo.

Vai dando a hora do expediente acabar. Acho que com duas chaves de fenda na mão e um facão na cintura dá pra garantir mais um rolo de papel higiênico no mercado; e cerveja. Ninguém é de ferro.

Fiz uma Playlist no Spotify. Vou deixar compartilhada aqui.

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Assuntos:
Carlos de Freitas

Carlos de Freitas é o pseudônimo de Carlos de Freitas, redator e escritor (embora nunca tenha publicado uma oração coordenada assindética conclusiva). Diretor do núcleo de projetos culturais da Panela Produtora e editor do Senso Incomum. Cutuca as pessoas pelas costas e depois finge que não foi ele. Contraiu malária numa viagem que fez aos Alpes Suiços. Não fuma. Twitter: @CFreitasR

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