Charlie Hebdo (não) encara o islamismo
Compartilhar
Completa-se hoje um ano do primeiro grande ataque terrorista muçulmano da década de 2010, que não foi senão o arauto do que sofrerá o Ocidente nos próximos anos ou décadas – o assassinato de 12 cartunistas do jornal Charlie Hebdo, em Paris, promovido por membros do Estado Islâmico, que queriam “vingar o profeta” do islamismo, costumeiramente retratado em suas páginas.
A edição 1178 do pasquim Charlie Hebdo, de 14 de janeiro de 2015, 10 dias após o segundo atentado terrorista islâmico na sede do jornal, trazia a já famosa e paradoxalmente icônica imagem de Maomé na capa, segurando o cartaz “Je suis Charlie” e os dizeres acima: Tout est pardonné (“tudo está perdoado”).
O alvo das piadas virulentas do jornaleco de cartunistas era o de sempre. Muçulmanos? Não. É o que é preciso ainda conhecer sobre Charlie Hebdo. Não para entender o fenômeno local da história do diminuto jornal – e sim porque seu método, seu pensamento, sua atuação e seu desfecho são o de todo o Ocidente contemporâneo com as novíssimas ideologias da segunda década do século XXI.
Seguindo-se o movimento Je suis Charlie, que varreu o mundo, os sinos de sua Notre Dame natal tocaram em homenagem aos cartunistas mortos no ataque terrorista islâmico.
Qual foi o alvo das piadas virulentas do jornalzinho? A Igreja Católica, em primeiro lugar. Os escrevinhadores de editoriais explicaram que riram quando descobriram sobre a homenagem. Afinal, a Notre Dame representa tudo o que eles odeiam, e só poderiam sentir nojinho de uma homenagem aos seus mortos vinda da Igreja Católica.
Os muçulmanos também foram vítimas de ataques peçonhentos? Bem, não. Para os muçulmanos, foi reservado uma mais honrosa distinção:
Todos aqueles que dizem defender muçulmanos enquanto aceitam a retórica religiosa totalitária estão, na verdade, defendendo seus carrascos. As primeiras vítimas do fascismo islâmico são os muçulmanos.
Distinção esta que os editores não acham que mereça ser dada à Igreja Católica, ou a seus “radicais”. E, nothing new, com o vezo de afirmar que as vítimas do terrorismo islâmico não são pessoas como eles, que foram vítimas do terrorismo islâmico, e tinham um staff com 12 pessoas a menos naquele dia, tendo de trabalhar com medo após dois ataques terroristas muçulmanos e vendo companheiros de equipe e amigos de longa data assassinados a seu lado.
Para eles, a verdadeira vítima do totalitarismo islâmico são os que vivem sob o totalitarismo islâmico. Pode até fazer algum sentido superficial, se ainda enxergarmos o mundo com olhos adolescentes. É exatamente por isso que o Charlie Hebdo é paradigmático: sua visão sobre o islamismo não é o da esquerda marxista francesa, da qual fazem parte. É a visão do Ocidente quase inteiro sobre a religião de Maomé, Osama bin Laden, Mahmoud Ahmadinejad e Abu Bakr al-Baghdadi.
O difícil é entender o que é o islamismo (como, por exemplo, entender por que é chamado de “religião da paz”). E perceber que, diferentemente daqueles autoritarismos em que as pessoas sofrem com um governo que não querem (como foi, de certa forma, com o nazismo e vários governos impostos por revoluções e golpes, nomes que dizem a que veio), a tirania totalitária envolve ideologia, a crença num projeto público de poder e sociedade. E, marxistas como são, deveriam saber que uma poderosa ideologia é uma religião promovendo fanatismo.
Podemos ler em diversos historiadores, como Orlando Figes e seu chocante Sussurros: A vida privada na Rússia de Stalin, que os presos políticos no paredão soviético, condenados à morte pelas leis promovidas por Stalin, saudavam até o último segundo de vida o seu próprio tirano, gritando “Viva Stalin, viva a União Soviética!”, esperando que Stalin ele próprio telefonasse para libertá-los.
Uma ideologia religiosa como o islamismo (que não é apenas uma religião – é uma crença em leis civis, em modelos cósmicos e sociais, em formas de casamento, em hierarquias, linhagens familiares, clãs etc), mais do que isto, é capaz de fazer com que, em nome de Deus, se roubem aviões para jogá-los sobre prédios. Se o Deus desta religião é capaz de tais ordens, do que o demônio desta religião é capaz?
Fica-se então com a diferença sobre o que faz com que muçulmanos ajam assim – e entender por que alguns agem assim e outros não. É a pergunta que também deve ser feita em relação ao socialismo e ao nacional-socialismo: por que os carrascos e executores em campos de concentração, nos Gulags, nos paredões e afins agiram como agiram? Como diferenciar os mandantes de quem apenas obedece ordens?
Se gigantes do pensamento mundial deram respostas às vezes inversas (vide a banalização do mal em Hannah Arendt contra a psicopatia no poder de Andrzej Łobaczewski), é aqui em que o Charlie Hebdo, quase “representante” do pensamento ocidental (excetuando-se no máximo a direita instruída americana e israelense), se complica em sua visão simples de mundo.
Para o Charlie Hebdo, o muçulmano que vive sob a shari’ah, ou o que sofre em qualquer lugar no mundo com a tirania do modelo de governança islâmico, é por definição uma vítima (bem ao contrário de alguém que sofra, por alguma razão, com o cristianismo).
Mas ao contrário do que crêem nossos cartunistas franceses, o que os chamados “muçulmanos moderados” pensam, mesmo longe da shari’ah e dos países tirânicos governados pelo islamismo (qual não é uma tirania?), continuam a pensar coisas horríveis em sua vasta maioria.
Uma lista de pesquisas de opinião feitas com muçulmanos no Ocidente recentemente, todas com fontes, no site The Religion of Peace, por exemplo, dá conta, entre outras estatísticas, de que 45% dos muçulmanos britânicos consideram que a pregação de clérigos radicais é, de fato, o islamismo verdadeiro, que 74% dos palestinos apóiam ataques terroristas do Hamas, que 25% dos muçulmanos na América crêem que violência contra americanos nos Estados Unidos é justificada como parte de uma “jihad global”.
Algo que justifique o dogma de que quem sofre com a pregação totalitária islâmica sejam os islâmicos, e não aqueles que os muçulmanos odeiam, que querem ver dizimados e degolados, que a pregação de diversos clérigos exorta à jihad, que os chamados “muçulmanos radicais” matam e que uma parcela imensa dos chamados “muçulmanos moderados” apóia, mesmo que não pratique a jihad abertamente – como nem todos os nazistas atiravam com metralhadoras ou acionavam os botões das câmaras de gás?
O Charlie Hebdo, neste aspecto, não é apenas um pasquim comunista (tão antiquado em sua retórica igualmente violenta que ainda se auto-descreve usando esta palavra tabu para a esquerda moderna: comunista). O Charlie Hebdo é o Ocidente. Sem radicalismos: a visão do jornal sobre seus próprios carrascos é a visão de todo o Ocidente sobre os terroristas que querem ver ocidentais mortos e a religião que não aceita que o Ocidente seja o Ocidente.
Basta ver a edição “comemorativa” (numa ironia com humor negro corajosamente típica do jornal) de um ano do morticínio em sua redação. No editorial, que O Antagonista traduziu alguns trechos, vê-se a revolta dos cartunistas contra o “culpado” por tudo: Deus.
Não Alá, o Deus em nome de quem os cartunistas morreram, mas “todos” os deuses únicos, tratados com uma equanimidade artificial, que só convence quem desconhece a ciência da religião comparada ou os princípios básicos de religiões antagônicas (!) como o judaísmo e o islamismo. Aquela visão infantil que lê que uma religião acredita em “um Deus”, então presume que são todas iguais, por estudar delas apenas esta única informação.
E ainda assim, ignorando as religiões civis, como o socialismo e o nacional-socialismo. Ambos mataram cerca de 150 milhões de pessoas apenas no século XX (os jacobinos da Revolução Francesa, em suas ganas de “enforcar o último rei com as tripas do último padre”, mataram em 8 anos dezenas de vezes mais do que a Inquisição espanhola em 4 séculos). Não surpreende, novamente, que o Charlie Hebdo, marxista até o sangue derramado, defenda a mais violenta e genocida delas.
E então voltamos à Notre Dame. Alvo de ataques os mais acrimoniosos pelo jornaleco, seus sinos tocaram em homenagem àqueles que a repudiavam mortalmente.
É uma forma bonita, simbólica e concreta de se entender o emblema “dai a outra face” e “perdoai os inimigos”. A face esbofeteada era uma forma mais física de ofensa na Antigüidade do Oriente Médio – e ofensas, afinal, podem doer, mas não significam nada depois que se cura a dor. Ofensas devem ser ignoradas – e até mesmo se deve fazer o “convite” para a liberdade de ofender com a outra face (o que é bem diferente de ataques, guerras e violências afins).
Isto é perdoar os inimigos: saber que mesmo sendo alvo de malignidades e zombarias, quem perdoa ou não perdoa, quem define os destinos finais não são nossas vontades, impressões, opiniões e nem mesmo nossa razão. E não alimentar uma rixa a se prolongar para todo o sempre, com mais derramamento de sangue.
Não é preciso ser católico e nem mesmo religioso para se perceber quem é mais admirável nesta situação: a Igreja que, mesmo que provoque risos, continua a render homenagens a quem só nutre ódio por ela. E a Igreja que pode dizer, por identificação humana: Je suis Charlie, mesmo que seja por eles odiada.
É não apenas uma lição, mas um verdadeiro paradigma do Ocidente nestes tempos: os “críticos” antenados de hoje estão ultrapassados. Querendo chocar, só causam bocejos e no máximo meia dúzia de encômios de púberes imberbes. Querendo defender a liberdade cultural, acabam por defender a cultura que tem mais força, inclusive física e de terror psicológico, para se impor sobre as demais.
Querendo igualar culturas inigualáveis (historicamente, axiologicamente e mesmo ontologicamente), criticam o que chamam de “fascistas cristãos” enquanto afiançam que os muçulmanos são, antes de tudo, vítimas, se tornando vítimas exclusivas destes últimos e recebendo homenagens exclusivas dos primeiros.
Infelizmente, o Ocidente, com o politicamente correto, o multiculturalismo, o hedonismo, o relativismo e as ideologias florescentes e reflorescentes do século XXI apedreja as mãos dóceis que o afagam e cospem nas bocas que o beijam.
Que este ano seja o último ano em que esta negação da realidade seja a norma no Ocidente, mesmo entre suas vítimas mais óbvias. E que possamos defender até mesmo os mais pernósticos desfrutadores da liberdade ocidental não por concordância, mas por saber que o que defendemos é a liberdade de pensamento e expressão que eles nunca experimentariam em nenhum dos lugares que jugam ser melhores do que este.
Je suis Charlie e sei que nada do que está no Charlie Hebdo está correto.
…
Acompanhe nossas coberturas culturais e políticas curtindo nossa página no Facebook
E não deixe de seguir nosso perfil no Twitter: @sensoinc