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O Oscar, os negros e a modernidade no leito de Procrustes

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último rei da escócia

Nassim Nicholas Taleb, em seu incrível livro Antifrágil – Coisas que se beneficiam com o caos (indicação do nosso colunista Martim Vasques da Cunha), diferencia sistemas sociais frágeis – os que se desintegram com a aleatoriedade – dos robustos (que são a ela indiferentes) e dos “antifrágeis”, aqueles que até se beneficiam e se fortalecem com a complexidade multifacetada do mundo real. No primeiro caso, estão os sistemas sociais baseados em ideologia. Já um sistema antifrágil é baseado em mitologia.

Taleb não se furta à referência ao mito de Procrustes, ferreiro e estalageiro da mitologia grega que, incapaz de criar camas adequadas, prendia seus hóspedes no leito e serrava suas pernas ou os esticava com correntes, para que “coubessem” perfeitamente à sua cama.

A narrativa de Procrustes é, afinal, uma leitura já bem antiga (sabendo-se que os antigos sabiam mais do que nós em praticamente tudo) que alerta para o perigo do esquematismo, o intelectualismo oco, hoje fortemente escorado pela Academia, que busca espremer a realidade concreta e dolorosa em suas categorias de pensamento pronto, crendo que estas ideologias traduzem e apreendem à perfeição o real, e não são justamente uma distorção da concretude que não se encaixa a ela.

É um mito perfeito para explicar os perigos das ideologias e -ismos abstracionistas – Procrustes já era um homem da “igualdade” em tempos incontáveis antes de Rousseau e Marx. Basta ver o resultado de seu experimento, tratando a dor real como mero efeito colateral da busca por igualdade abstrata, para se entender os perigos da “reforma social” baseada em desejo de mesmificação.

Procrustes mostra que os gregos antigos já sabiam de todas as decadências da modernidade. Não à toa, outro dos maiores pensadores de nossa época, Erik von Kuehnelt-Leddihn, intitulou seu maior estudo sobre a era das massas como The Menace of the Herd, or Procrustes at Large. O próprio Nassim Nicholas Taleb também tem um livro chamado, justamente, The Bed of Procrustes: Philosophical and Practical Aphorisms.

A modernidade pode ser definida como o tempo em que o homem acredita que o mundo é racionalizável em equações. Mais especificamente, em que crê que o mundo e a sociedade são entendíveis, e que devem ser controlados pela mente iluminada (e iluminista) dos mais racionais (ou racionalistas). Escreve Nicholas Taleb:

Minha definição de modernidade é a dominação em larga escala do ambiente por humanos, a suavização sistemática do caráter pontiagudo do mundo e o abafamento da volatilidade e de estressores.

A modernidade corresponde à extração sistemática de huanos de sua ecologia carregada de aleatoriedade – física e social, mesmo epistemológica. A modernidade não é apenas o período histórico pós-medieval, pós-gregário e pós-feudal como definida nos livros didáticos sociológicos. É mais o espírito de uma época marcada pela racionalização (racionalização ingênua), a idéia de que a sociedade é entendível, e portanto deve ser projetada, por humanos. (…)

A modernidade é um leito de Procrustes, bom ou ruim – uma redução dos humanos ao que aparenta ser eficiente e útil. Alguns aspectos dela funcionam: leitos de Procrustes não são todos reduções negativas. Alguns podem ser benéficos, embora estes sejam raros.

Não é difícil notar como praticamente todos os nossos problemas já foram solucionados pelos antigos.

No Oscar deste ano, uma campanha de boicote se iniciou por não haver atores negros indicados. O apresentador Chris Rock, negro, que já tirou muito sarro dos estereótipos ridículos que o movimento negro imputa em todos os negros, respondeu à principal organizadora do boicote, Jada Smith, esposa de Will Smith: o boicote dela vale tanto quanto o boicote do próprio Chris Rock às calças da Rihanna: ele não foi convidado.

chris rock boycott oscar

Instintivamente, as pessoas tomaram lados. Confiar em instintos é sempre um problema: instintos também são grupais (vide-se a teoria mimética de René Girard), e podem significar simplesmente um reforçamento em relação a um bando amigo ou inimigo.

Os comportamentos grupais (e, afinal, gregários) são pré-conscientes – anteriores mesmo à linguagem. Por isso mecanismos de agrupamento como o feminismo ou o movimento negro causam tanta vozeria, sem possuir uma definição quintessencial do que falam.

Pense-se em um homem apoiando a Revolta do Shortinho das meninas de Porto Alegre para ver as pernas das garotas: ele está sendo ultra-machista ou outra-feminista? Não há um conceito claro a ser trabalhado – há apenas faniquitos marcando território de pertencimento a um grupo. Ou que tal a piada de Family Guy, quando Quagmire e Peter Griffin vão para Washington e vêem o famoso obelisco da capital americana?

Isto é “racismo” ou é justamente “anti-racismo”?

O mundo da ideologia, ao contrário do da mitologia, é frágil, e não consegue abarcar com presteza o real – pelo contrário, a aleatoriedade e o caráter multifacetado do mundo causam fraqueza nestas ideologias, no mundo dos -ismos, no terreno da racionalização sobre o que é pré-racional ou que vai além da razão, tentando amacetar a concretude procrusteanamente para que ela caiba em esquematismos prontos.

É exatamente a razão para as ideologias serem tão comuns à idade da rebeldia com pouca experiência, a adolescência. O grande problema é continuar sendo um ideólogo depois de seis meses no primeiro emprego como estagiário, ao invés de partir para a grande aventura do real e uma solidez de pensamento muito mais duradoura, só encontrada no pensamento que dialogue com a tradição.

A ideologia progressista de hoje, escorada no tripé raça-gênero-sexualidade, causa reações imediatas a qualquer coisa que possa parecer, num primeiro golpe de vista, racismo, machismo ou homofobia (exatamente as três coisas das quais sempre se xinga algum adversário atualmente). Neste esquema, tudo isto é negativo e merece qualquer resposta, a mais exagerada que seja, para se corrigir a injustiça.

Crendo-se “racional”, este racionalismo não percebe que tenta encaixar comportamentos não-refletidos e lhes imputar um valor sentimental positivo ou negativo. Pior: dá valor demais ao sentimento (inclusive ao sentimento evocado pela palavra “razão”), não percebendo que trabalha justamente com a obediência imediata e irrefletida que estas palavras provocam – aquilo que Philip Rieff chamava de “ordem sacra”.

Pode haver alguém mais obscurantista, atrasado, fanático e supersticioso do que um progressista? Quem mais conseguiu conjugar tanto o modismo com o atraso quanto eles, fora a nova onda muçulmana?

É justamente este racionalismo oco que faz com que algo aleatório da realidade, como nenhum negro ser indicado ao Oscar em um ano (algo tão comum, inócuo e vazio de sentido quanto nenhum loiro se formar em Literatura Japonesa pela Yale neste ano) ser interpretado, por estes espíritos neuróticos, como “racismo”.

Trabalhar com mais de uma camada de significância a um só tempo, como quando se é irônico, deixa qualquer engenheiro social perturbado. Para eles, a sociedade é humanamente desenhável (por eles, claro), e deve ser perfeita, se é “racional”. Tudo deve ser interpretado apenas com conceitos fáceis (e frágeis), como o tripe racismo-machismo-homofobia.

Chris Rock ele próprio deu nó na cabeça de muitos progressistas por fazer vídeos com várias camadas de significado – justamente para criticar também os clichês do movimento negro e os estereótipos que não são imputados às questões raciais, e sim praticados por muitos negros. Algo bem mais complexo de ser explicado do que apenas afirmar que é um “comediante falando mal do racismo” (nem lembrem do nosso caquético Henfil).

Para as pessoas de sistema social frágil, calcado na ideologia (e abstracionismos como “igualdade”, para que a realidade caiba procrusteanamente nesta palavra), a sociedade perfeita deverá imitar exatamente o que querem que a realidade seja.

Mesmo num país em que os negros totalizem cerca de 12% da população, querem que um Oscar sempre tenha um ator negro indicado. Como é possível falar da “opressão de negros” e causar sentimentos imediatos, tal expressão funciona e se fala e se acredita em “racismo” para explicar tal fato. A idéia de uma “cota” para asiáticos, por outro lado, já soaria ridícula – mesmo que os chineses (maioria na América) tenham fugido de campos de morte indescritivelmente piores do que os da África negra.

Se algo escapa a tal esquematismo a priori, é tratado como “erro”. A hashtag #OscarSoWhite é evocada – e, como bem disse Chris Rock, brancos ricos a tweetaram em seus telefones criados por crianças chinesas para parecerem descolados e tolerantes com culturas que nem conhecem.

Não passou pela cabeça progressista e racionalista de nenhum destes Voltaires pós-contemporâneos questionar quantas pessoas a passarem pelo recinto do Oscar em toda a última década não são eleitores do Partido Democrata (5, talvez?). Ou por que Joe Biden, vice-presidente de Barack Obama, foi a pessoa mais aplaudida da noite, de pé – muito mais do que um Ennio Morricone, que já deveria ter ganhado um Oscar há meio século pelo seu trabalho em The Good, The Bad and The Ugly.

Ao crerem em uma sociedade da “igualdade”, crêem que controlarão o acaso. Não percebem que a aleatoriedade os controla até mesmo no joguinho 102% político (e -2% cinema) que são as premiações corruptas do Oscar.

Ao esperarem que em todo ano um negro seja indicado ao Oscar, não atentam para o fato de que isto torna a estatueta um prêmio de consolação – uma esvaziação do sentido da premiação, que apenas diminui, ao invés de representar uma elevação, quem for premiado. Se o faz isso com um não-negro, o negro será mais prejudicado pela falta de sentido do Oscar do que qualquer outro ao ganhar um.

Se a modernidade não fosse essa vontade de controle absoluto do ambiente, saberia entender que num ano podem ser indicados 5 brancos, no outro, 4 negros e um branco, no outro, 3 ítalo-descendentes, um branco e um indiano, num quarto, 2 judeus, um nativo-americano e dois mexicanos, logo depois, um húngaro, um japonês, um libanês, um loiro de sobrenome nórdico e um corintiano. É assim com premiações grandiosas em qualquer lugar do mundo – sobretudo premiações que envolvem gente de todo o tal mundo.

Foi o que o negro oscarizado Jamie Foxx comentou com seu amigo, também negro e também oscarizado, Denzel Washington: qual o problema? Se não deu dessa vez, atuem melhor. Aliás, um dos indicados para este ano era um ator que fez papel de uma transexual dinamarquesa. Já não há “representação de minorias” o sobejante, se transexuais não são 1% da população – e se dinamarqueses são quase tão ou mais irrelevantes do que transexuais na população americana ou mundial?

É o desejo de um desenho esquemático se transformando em realidade que causa o faniquito com o Oscar. É a realidade multifacetada que sempre faz com que progressistas e moderninhos se choquem com seu plano de transformar seres humanos em formigas vivendo em seu maravilhoso reino de obediência a uma abstração.

Post Scriptum: Um dos outros livros de Nassim Nicholas Taleb se chama A Lógica do Cisne Negro; para mostrar como as abstrações modernosas são pré-racionais, não vamos comentá-lo, mas já sabemos o que a idéia de trabalhar a raridade de “cisnes negros” pode provocar em quem enxerga “racismo” em tudo.

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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