O Teatro da Inveja: Jô Soares recebe Marilena Chauí
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Em face da minha insistência em atribuir à intelectualidade brasileira a culpa principal pela tragédia do lulopetismo (com todo o seu arsenal de crimes e infâmias inomináveis), muitos leitores e amigos têm me lançado a seguinte questão: “Mas você acha que alguém dá ouvidos a esses intelectuais? Como eles poderiam influenciar nossa realidade macro-política se apenas uma centena de pessoas lêem e discutem as suas idéias?”
Pretendo nesta breve nota ensaiar uma resposta àquela pergunta. E esclareço de imediato que a influência dos intelectuais na vida política e cultural brasileira não se dá mediante a difusão de suas idéias, mas de seus desejos.
De fato, quase ninguém lê os escritos de nossos intelectuais. Em termos de relevância internacional, ademais, a produção nacional de idéias é digna de pena. Mas ler e conhecer o pensamento de nossos intelectuais é perfeitamente desnecessário para o mecanismo que vou descrever a seguir.
Lanço mão aqui da conhecida (por quem não frequenta as nossas faculdades de ciências humanas, ressalte-se, porque os que fazem costumam não conhecer coisa alguma) teoria do recentemente falecido René Girard acerca do caráter mimético dos desejos humanos. Aplicarei a teoria girardiana a um case particular, a fim de tirar daí algumas conclusões de caráter genérico sobre o mecanismo de transmissão dos desejos políticos dos intelectuais, responsável, entre outras coisas, por haver nos empurrado goela abaixo, por anos a fio, esse autêntico monstro moral que atende pelo nome de Luiz Inácio Lula da Silva.
Desde fins do século XVIII, e numa escala progressiva, os intelectuais têm encarnado o papel de guias espirituais no Ocidente secularizado. Por uma série de razões que não nos interessa no momento, eles tornaram-se paradigmas daquilo que Girard chamou de modelo. Já em seu primeiro livro, Mentira Romântica, Verdade Romanesca, publicado em 1961, o pensador francês formulou a teoria do desejo mimético, sua grande assinatura teórica.
Analisando alguns clássicos da literatura universal – notadamente de Cervantes, Flaubert, Stendhal, Dostoiévski e Proust –, ele identificou uma estrutura comum subjacente a todos eles. O homem não deseja algo ou alguém de forma autônoma, numa relação imediata e diádica entre um sujeito desejante e um objeto de desejo, diz-nos Girard. Em vez disso, o desejo possui uma estrutura triangular: se desejamos um determinado objeto é porque ele é desejado ou possuído por outrem, que se torna, assim, o modelo para o nosso desejo.
Desejando e rejeitando, o modelo nos indica o que é desejável e rejeitável. O modelo, ou mediador, pode ser de tipo externo – quando não está situado no mesmo plano do sujeito e, portanto, não pode rivalizar com ele em torno do objeto desejado (por exemplo, Amadis de Gaula em relação a Dom Quixote, na obra-prima de Cervantes) – ou interno – quando está próximo o suficiente do sujeito, tornando-se um rival.
Na bacharelesca sociedade brasileira, os intelectuais e acadêmicos, criadores de idéias, constituem-se como modelos poderosos para os nossos desejos e repulsas políticos. Quando emitem um juízo favorável a este ou aquele político, eles o estão indicando como objeto desejável. Isso tem um efeito altamente contagioso sobre os desejos alheios, não diretamente, como vou demonstrar, mas através da mediação de jornalistas, críticos, artistas, cineastas, publicitários e outros difusores de idéias, que habitam, por assim dizer, uma zona de influência acadêmica, mantendo com os scholars propriamente ditos uma relação de mediação interna.
É fato que, entre um trabalhador braçal e um acadêmico brasileiro, talvez haja mais distância do que entre Quixote – digo, Alonso Quijano – e Amadis. Contudo, através daqueles profissionais da mediação, as opiniões e vontades provenientes do gabinete acabam chegando até o povão, depois de coadas na peneira da indústria cultural de massa.
Sem o funcionamento desse mecanismo, o meliante Luiz Inácio Lula da Silva (vulgo “Brahma”) jamais teria virado um líder popular (e populista) de alcance nacional. Sem ele, jamais haveríamos conquistado este inglório pioneirismo na história das nações: o de ser governado por uma mulher patentemente débil mental, incapaz de articular uma sentença com sujeito e predicado.
Na teoria girardiana, a “mediação interna” é a grande responsável por gerar os conflitos humanos, uma vez que, no limite, ela faz desaparecer o interesse pelo objeto e a assimetria inicial entre os sujeitos, restando apenas a relação mimética entre sujeitos-modelos que rivalizam entre si, tornando-se mais e mais indistintos ao longo do processo.
É na mediação interna que constataremos a presença da inveja, da rivalidade, do ciúme, da adulação, da ira, da paixão, e de todas as demais pulsões derivadas da contiguidade. Para que a coisa fique mais clara para o leitor, darei a seguir um exemplo do mecanismo de mediação interna entre criadores e difusores de idéias, ou, em outras palavras, entre intelectuais e seus mediadores.
Há disponível no YouTube uma antiga e reveladora entrevista concedida pela filósofa uspiana Marilena Chaui ao apresentador Jô Soares, por ocasião do lançamento do livro A Nervura do Real, que a autora dedicara ao pensamento de Spinoza. Chaui, como se sabe, é aquela intelectual orgânica do PT que já manifestou seus desejos políticos em termos tais como “Quando o Lula fala, o mundo se ilumina e tudo se esclarece” ou “Uma coisa [que] nunca foi posta em dúvida, à direita, à esquerda, pelo centro, nunca, é a honestidade de um governante petista e a maneira como ele trata a coisa pública efetivamente como uma coisa pública”. Ela ficou famosa também pela exibição visceral de uma sua repulsa: “Eu odeeeeeeeeeeeeeio a classe média”.
https://www.youtube.com/watch?v=299kLlpSusM
Gostaria que, diante dessa entrevista, o leitor se imbuísse de um espírito antropológico, de observador da alma humana, como quem urgisse descobrir o que vai no coração dos homens.
O que aí se passa diante de nossos olhos é um verdadeiro teatro da inveja, para lembrar o título que Girard dedicou ao mimetismo na obra de Shakespeare. Repare nos gestos, feitos ou apenas insinuados, bem como nos reprimidos; nos olhares, nos ritos faciais, na postura corporal, no sentido e na forma das palavras ditas. Preste atenção especial à postura assumidamente “fascinada” do entrevistador. Este, logo no início, e em forma de gracejo (do tipo que, todavia, parece trair sentimentos inconfessáveis), deixa-nos entrever aqueles elementos inerentes à mediação interna.
Tendo nas mãos o volumoso livro, que ademais se fazia acompanhar de um anexo de notas explicativas, Jô Soares confessa-se “humilhado”, não, é claro, por seu conteúdo (que nem ele, nem – desconfio – ninguém, leu), mas por seu tamanho. Para o apresentador, o tamanho do livro era, evidentemente, um símbolo de status intelectual, que ele deseja e inveja. A professora da USP era o seu modelo, uma mediadora interna bem diante do seu nariz.
Quando uma mulher dessas diz que Lula é uma jóia rara e preciosa, o Jô Soares da ocasião, mesmo que não concorde integralmente com o conteúdo de sua fala, está por demais hipnotizado pela forma e pela aura do intelectual para oferecer-lhe resistência. Se a doutora Chaui está dizendo, deve haver algo de bom no Lula. Se o doutor fulano está garantindo, a dona Dilma deve ser uma mulher muito competente e séria.
Extraindo-se-lhe a forma abstrata e arquetípica, aquela cena particular ilustra perfeitamente bem o que venho de dizer sobre a relação entre acadêmicos e seus mediadores, respectivamente produtores e difusores de idéias. Imagine o leitor quantas centenas de Chauis não vêm “fascinando” e “humilhando” – entenda-se, servindo de modelo para – outros centenas e milhares de Jôs Soares espalhados pelo país, e ao longo de décadas. Isso o ajudará a compreender o mecanismo pelo qual os desejos políticos mais excêntricos dos acadêmicos brazucas (mais que suas idéias, sublinhe-se) acabaram por conformar o senso comum midiático e, de certa maneira, influenciando as decisões políticas e os debates culturais no país.
Mas, enfim, já cansei demais o leitor. Vejam no YouTube a entrevista. Trata-se de uma aula de incultura brasileira.
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