Ana Hickmann e a urgência da masculinidade
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Se tomássemos cuidado com as palavras, arte esquecida no Brasil, diríamos que a tentativa de assassinato de Ana Hickmann no fim-de-semana está sendo tratada como uma fatalidade. Ou seja, como uma inexorabilidade do destino, um determinismo, um caminho obrigatório da vida com o qual alguns, por azar, acabam por cruzar.
Apesar de discussões sobre temas como a violência serem freqüentes, assim que o chamado à realidade de um caso concreto como o que quase tirou a vida da modelo e apresentadora se deslinda diante de nossos olhos, refugiamo-nos de nossas próprias idéias, ao abrigo sagrado e onipresente da culpa no acaso inevitável. Ana Hickmann e demais vítimas de violência se tornam meras estatísticas.
Ignoramos-nos rapidamente da lição de Richard M. Weaver, de que idéias têm conseqüências, furtando-nos a encarar algum resultado inesperado de nossas tão imodestas pretensões para toda a sociedade.
Ana Hickmann foi vítima de um maníaco com claros sinais de esquizofrenia, que criou um mundo à parte em sua cabeça onde ambos viviam um romance cifrado. É uma espécie de Eldorado, Annwn ou Sião imaginária, onde tudo é perfeito e as dores da existência terrena são dissipadas. O que para um indivíduo é uma doença mental, para intelectuais é uma ideologia abraçada em massa, e os céticos desta Neverland são considerados traidores.
Esquizofrenia é uma doença séria e real, mas o tabu sobre a força tão cabal de seu nome faz com que muitos esquizofrênicos não sejam reconhecidos como tal por seus amigos e familiares. Doença perigosa não apenas pela mentira vivida pelo paciente, mas pelo risco em que coloca outras pessoas quando as alucinações, com a inevitável decepção com a realidade, passam para o mando e as soluções finais.
É um tema comum, já explorado em filmes como o blockbuster O Guarda-Costas, que imortalizou Whitney Houston, e o absolutamente incrível Bem Me Quer, Mal Me Quer. A história de Ana Hickmann é uma reprise de tais obsessões.
Antes de falar que o país está “dividido” por partidos e candidatos, uma das maiores cisões não só do país, mas do Ocidente, diz respeito à visão sobre o mal.
Desde a superstição do Iluminismo francês escorada na crença do “bom selvagem”, que enxerga o mal apenas na construção social (uma visão que põe de lados opostos dois tiranos, Rousseau e Hobbes), é comum a idéia de que o mal floresce como um “erro” no planejamento social, seja por que os homens seriam por natureza pura bondade (Rousseau) ou pura maldade (Hobbes). É um determinismo que necessita de uma sociedade de controle absoluto.
Todas as discussões atocaiadas nesta premissa enxergam num assassinato, ou estupro, ou roubo, ou qualquer forma de violência, mândria ou maledicência, apenas falhas em uma forma de organização social que precisa ser necessariamente dirigida por um comando central – comando este que deve ser governado pelos intelectuais da ideologia correta, com completo poder de mando sobre todo o tecido social.
Debates sobre violência nesta mentalidade inevitavelmente envolvem formas de controle social: controle de armas, desigualdade social, crença na educação como panacéia pública, medidas socioeducativas, coerção social através de ideologias como feminismo, ativismo de minorias, censura ao “discurso de ódio” etc. São os crentes no bom selvagem de Rousseau, que acabam pregando um controle social hobbesiano porque bons selvagens são os lobos de bons selvagens. São os chamados “homens sem peito”, como os denunciou C. S. Lewis no obrigatório A Abolição do Homem. Os discípulos diretos do Leviatã.
Por outro lado, há uma visão de que o mal não é uma obrigatoriedade dos homens que só pode ser reformada com uma nova sociedade. Pelo contrário, bem e mal são modelos pelo qual o homem transita, podendo aspirar ao primeiro a um só tempo em que pratica o segundo.
Nem sempre bem e mal se mostram claros, como mostra a tese da imaginação moral de Edmund Burke, T. S. Eliot ou Lionel Trilling, com uma profundidade muito maior do que as explicações psicanalistas, marxistas ou estruturalistas para o conflito humano.
O mal tampouco se mostra apenas socialmente, mas dividindo o próprio indivíduo – não é preciso nem correr às críticas de René Girard sobre Shakespeare com o personagem mais dramático do mundo e com uma divisão radical em suas mãos a definir seu destino, sem um norte moral perfeitamente discernível – pode-se mesmo apreendê-lo já nas primeiras obras girardianas, como Mentira Romântica, Verdade Romanesca ou A Violência e o Sagrado.
O mal é o tema da consciência do homem se elevando sobre, justamente, a fatalidade do mundo imoderado. É o que revela Louis Lavelle em O Mal e o Sofrimento, em que a consciência individual dialoga com a consciência universal, tomando posição após a consciência de si e do outro.
Nesta visão, portanto, o mal não é culpa de falha de planejamento social de uma sociedade dirigida por iluminados: bem pelo contrário, a luta do homem para praticar o bem e escapar do mal é sua grande constante, uma escolha com conseqüências, uma renúncia a um prazer ou o adiamento de um gozo. O que a esquizofrenia fez sumir da mente do homem que tentou assassinar Ana Hickmann.
Debates sobre violência amparados por esta visão de mundo se focam na delimitação de um certo e um errado para uma dada situação, e sobre as escolhas individuais e as conseqüências que a sociedade deve arquitetar e construir para impedir atos parecidos, usando exemplos do passado como tradição para evitar novos erros. Ainda que a sociedade seja corrompida, independentemente de condições materiais (da condição econômica à psicologia individual), o indivíduo deve se esforçar para tentar ser justo numa sociedade injusta, no dizer de Reinhold Niebuhr.
A despeito do que usualmente é dito sobre “a mídia” ou grandes poderes retrógrados tratados sempre por um substantivo coletivo, é fácil perceber que uma dessas visões sobre a sociedade não é apenas majoritária no Ocidente: basicamente, ela simplesmente se impôs de maneira tão hegemônica que a outra nem sequer é tratada como existente no debate, sendo considerada retrocesso e obscurantismo no mesmo momento em que é mencionada.
Ana Hickmann e o destino
Numa sociedade em que o dirigismo importa mais do que as ações individuais, um encontro com um praticante do mal – de um assaltante a um estuprador esquizofrênico crendo ter direito sobre a vida de outrem – é um mero azar que alguém sofre quando pisa em uma área não alcançada pelo iluminismo do poder de controle sobre a sociedade: o que precisa ser corrigido é apenas o mecanismo social, e não o ato individual.
Basta contemplar o que se debateu a respeito da tentativa de assassinato de Ana Hickmann, com pessoas até mesmo considerando um absurdo reagir em legítima defesa – se o mal é “social”, então a única coisa que é possível ser feita quando um assassino cruza o seu caminho é cumprir sua função social e ser assassinado. O único autorizado a corrigir ou reprovar uma ação macabra é quem controla o aparelho diretor de toda a máquina social. Mera fatalidade.
https://twitter.com/razev/status/734153200102703105
Apesar de estes sistemas de coletivização e ação em massa exigirem o controle completo da sociedade pelo Estado, a retórica mais comum é a inversão absoluta: qualquer exigência de liberdade individual e responsabilidade individual é chamada pelo nome dos coletivismos políticos de controle total da sociedade, mormente os que marcaram o século XX.
Se a visão do mal como uma desarmonia num coletivo que deveria ser homogêneo é ideologia recente, a interpretação do bem e do mal acima da sociedade e dos indivíduos é tão antiga quanto os mitos mais remotos na noite do tempo. Graças a isso, não apenas duas visões sobre o mal se deslindam diante de nossos olhos: também os conceitos fundadores de nossas mais assentadas noções de realidade desnudam-se se refletirmos sobre o caso Ana Hickmann.
Violência e virtude
O cunhado de Ana Hickmann foi quem aparentemente lutou contra o esquizofrênico que invadiu o hotel da apresentadora e conseguiu fazer com que ele não atirasse em Hickmann – um tiro atingiu sua própria esposa, internada em estado grave. Pessoas que só podem comungar de uma das duas visões de mundo acima elencadas o consideraram um herói por salvar várias vidas.
Que força maior impele alguém a lutar contra um homem armado nitidamente sem domínio de suas faculdades e salvar a vida de pessoas inocentes que não estão em situação de poder?
(de Weber e o monopólio da força a Mao e o poder no cano de um revólver, de Jouvenel e o poder crescente ao estatuto do desarmamento, direita e esquerda sabem que quem está armado é quem tem poder; um cano de um revólver é uma linguagem suficientemente universal.)
É o que os antigos chamavam de virtude da Fortaleza. Algo que hoje chamaríamos, perdendo muito da força do significado original, de “coragem”. A Fortaleza é uma das quatro virtudes cardinais do cristianismo (virtudes que ordenam e harmonizam vontade e razão, algo inexistente nas ideologias modernas). Ela “assegura a firmeza nas dificuldades e a constância na procura do bem, chegando até à capacidade do eventual sacrifício da própria vida por uma causa justa”.
Não é exatamente algo a se esperar de crentes em reducionismos do ser humano como o marxismo, a psicanálise, o estruturalismo, o feminismo e demais -ismos modernos. Menos ainda algo a ser louvado por quem comunga do dogma do Estado-Leviatã como o dirigente absoluto da humanidade e único capaz de impor a paz e harmonia entre homens excessivamente maus ou que se corrompem sem os dirigentes adequados.
Virtude é palavra que deriva de vir, a palavra latina para “varão” ou homem já preparado para a dura realidade, tendo cumprido seus ritos de passagem e aprontado (e geralmente armado) para enfrentar inimigos e as intempéries da natureza selvagem (a Eneida de Virgílio abre justamente cantando “Às armas e ao varão”, Arma virumque).
Na sociedade governada por dirigentes de modos e costumes e seus defensores entre os formadores de opinião pública, a mera defesa de algo como a virtude de enfrentar perigos até o ponto do auto-sacrifício ou a qualquer ação, comportamento ou modelo de atuação que mostre masculinidade é criticada como imposição patriarcal. Nunca se viu entre o palpitariado e os defensores de direitos democráticos algum questionamento do porquê de tais pessoas, cuja visão sobre a violência, a virtude, o bem e o mal serem tão mais antigos e tradicionais, pensarem o que pensam.
O mundo moderno permitiu um grande luxo e conforto até para o homem mais comum – favelados, hoje, possuem muitas coisas que reis há 2 séculos não podiam nem sonhar em obter. A ascensão do capitalismo (criticado justamente por permitir que a riqueza se torne comum, por crentes na doutrina de que a riqueza era o estado natural antes do capitalismo) permite que atividades essencialmente masculinas, como a caça, a proteção contra invasores, derrubar lenha ou matar ursos e outras feras fossem atividades que não mais eram universalmente necessárias, permitindo que até o mais fraco dentre os homens se alimentasse através de uma simples caminhada até a geladeira.
Com isto, papéis anteriormente definidos pelo tipo físico padrão de cada gênero (a caça ou a maternidade, a luta ou a costura) pudessem se misturar sem prejuízo do todo social – fenômeno este já observado por Ortega y Gasset ao observar o masculino e o feminino no século da Rebelião das Massas. Feministas, tão atreladas à luta de classes, deveriam em primeiro lugar defender o capitalismo com unhas e dentes.
Hoje, é fácil que uma mulher transexual raspe a cabeça, tome hormônios e passe a se chamar “Samuel”. O difícil é ter uma virtude como a Fortaleza, terçar armas com um inimigo mais poderoso e ser capaz de salvar uma família inteira, como fez o cunhado de Ana Hickmann.
Quando pessoas que enxergam bem e mal com uma raiz tão antiga quanto os mitos fundadores do Ocidente, que permitiram que o Ocidente se tornasse o que é hoje, é natural que elas ainda tragam com tal visão de mundo a tradição de organização social que traz ainda algumas tarefas esperadas para um gênero e outro. O heroísmo mitômano do cunhado de Ana Hickmann revela por que tantos religiosos podem hoje, civilmente, reconhecer direitos civis de homossexuais (que Wilhelm Reich considerava “uma perversão do capitalismo”, que desapareceriam assim que o comunismo se materializasse na Terra), mas nunca o incentivam.
Porque a sociedade que tem o mal como lugar-comum e ameaça freqüente (basta lembrar da primeira frase do Manifesto Comunista) precisa de uma virtude como a Fortaleza para combater o mal. Como já mostrou Bene Barbosa, o maior especialista em segurança pública do país, se o cunhado de Ana Hickmann não tivesse reagido a um assalto, ela agora estaria morta (e provavelmente toda a sua família). Além de revelar algo sobre as armas (a única forma de garantir que pessoas más não usem armas contra pessoas boas é permitir armas às pessoas boas), também a sociedade está mais protegida com uma virtude como a Fortaleza difundida.
Isto é uma forma de coesão social burilada por séculos. Com suas falhas como todas as idéias humanas e com seus atrasos como todos os empreendimentos sociais, mas que por séculos manteve a sociedade protegida. Obviamente que há homossexuais com mais Fortaleza do que muitos machões, mas são tão exceção como heterossexuais cursando Moda.
A religião e os sistemas sociais sãos (quase inexistentes no mundo moderno) lidam com a regra, não podendo dobrar toda a sociedade pelas exceções. Exatamente o que fazem os dirigentes modernos, apenas preocupados com direitos “de minorias” e controle social leviatânico da maioria para aceitar um novo ordenamento (aquele dos próprios dirigentes), que acham que a promoção de algo como a masculinidade não é apenas inútil: é nocivo, danoso, retrógrado, obscurantista, fanático. Em caso de assalto, telefone para Rousseau.
Atos terroristas têm se baseado na ausência de Fortaleza quase sempre (o que, aliás, é propagandeado por grupos terroristas islâmicos como a fraqueza ocidental). Os atentados às Torres Gêmeas no 11 de setembro é exemplo claro: com uma faca, terroristas conseguem jogar aviões em prédios e matar mais de 3 mil pessoas. A ação foi rápida e inesperada (do anúncio do seqüestro ao choque com a primeira torre foram cerca de 30 minutos), mas quantas pessoas tiveram a Fortaleza, a força física, a coragem de tomar facadas e talvez até morrer sob a lâmina, mas impedir um atentado terrorista que iria matá-las de toda forma e ainda milhares de outras pessoas?
Ana Hickmann teve sua vida salva graças ao contrário do que prega toda a nossa sociedade, de cabo a rabo. Tudo aquilo que é chamado de atrasado, ultrapassado, opressor e, claro, “intolerante” e “fascista” foi o que garantiu que ela hoje respirasse.
Raríssimos são os que têm coragem de falar abertamente em masculinidade hoje (como o blog The Art Of Manliness), já que a pecha de “machista” é imediata e sempre aceita, como se o cavalheirismo e a proteção fossem o mesmo que espancar a mulher, os filhos, os gays e qualquer pessoa frágil, e não justamente o contrário. Explicar que apenas se defende a força como necessária para a proteção da maioria é um dos tabus supremos da modernidade. Uma rápida visita pelas palavras de G. K. Chesterton e tantos outros aristocratas ingleses, com sua doçura, rigor e asseio tão masculinos, mostraria outro mundo a quem crê nas ideologias contemporâneas.
Não é preciso concordar com visões de mundo religiosas e nem tampouco considerar aqueles que preferem um modo de vida com muito maior fragilidade como cidadãos menores (o que todos nós somos em alguma, ou várias, medidas), mas de entender por que visões de mundo que soam tão ásperas aos ouvidos da modernidade ainda têm sua importância e poderiam muito bem dialogar com quem se julga” racional”.
Ana Hickmann está aí, literalmente, para provar a importância da masculinidade e da Fortaleza que leva até o auto-sacrifício.
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