O poder da imaginação
Na era das desilusões políticas, não é nas notícias que encontraremos uma âncora para a salvação, mas na imaginação da grande literatura.
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Entre as maiores influências intelectuais dos conservadores contemporâneos, indubitavelmente, se destaca o historiador norte-americano Russell Kirk (1918-1994). Utilizando a metodologia fornecida por outros estudiosos, podemos analisar a cultura popular, e as produções tradicionais de Hollywood, em especial, para compreender, assim, a própria ideia kirkiana de imaginação moral.
Poucos autores ao longo do século XX estiveram tão aptos para compreender o desafio de expor o drama humano de modo adequado quanto Russell Kirk. Ao longo de uma vasta carreira intelectual, Kirk demonstrou que o pensamento conservador é a negação de todas as concepções ideológicas, visto que seu objetivo é preservar os princípios morais e as instituições sociais fundamentais da civilização, pautados nos ideais de ordem, liberdade e justiça.
Mais do que uma proposta política, o conservadorismo kirkiano é um estilo de vida. Uma disposição forjada pela educação e pela cultura. Um modo de vida expresso num tipo de humanismo cristão sustentado pela concepção sacramental da realidade em que a moral e as instituições sociais não são meros acidentes históricos, mas desenvolvimentos necessários da própria natureza humana.
Um dos temas mais relevantes desenvolvidos por Kirk é a noção de imaginação moral. No livro A Era de T. S. Eliot, tal ideia foi definida pelo próprio autor como “o poder de percepção ética que atravessa as barreiras da experiência individual e de eventos momentâneos”, ao aspirar a “apreensão da ordem correta da alma e da ordem correta da comunidade política” e, simultaneamente, informar “sobre a dignidade da natureza humana”.
Nesse sentido, a imaginação moral pode ser entendida como parte de um processo individual para a revelação do sentido e do propósito da vida que transcende à necessidade natural, pois não é um mero instinto; ao mesmo tempo, é atributo e expressão de liberdade, paixão e razão. Presente em mitos, fábulas, alegorias e parábolas e expressa em diferentes tipos de criações artísticas, a imaginação moral transmite para as gerações vindouras as normas apreendidas pelo senso comum e pelos costumes tradicionais, que “são expressões práticas do que a humanidade aprendeu na escola das quedas e tropeços”.
No atual contexto cultural do mundo ocidental, definido pelo literato peruano Mário Vargas Llosa como “a civilização do espetáculo”, algumas produções cinematográficas e séries de televisão ocupam uma posição de grande destaque na formação da imaginação moral, e assumem um papel mais impactante do que os romances e poemas, as peças de teatro ou a ópera.
Do ponto de vista artístico, os filmes, mesmo os mais populares destinados ao público massificado, não devem ser subestimados como gênero de categoria inferior, pois, como ressaltou o crítico literário canadense Northrop Frye (1912-1991), essas películas cinematográficas, assim como as tragédias de William Shakespeare (1564-1616) e as óperas de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) são as produções culturais que, de certo modo, respondem melhor aos anseios de individualidade característicos do ethos burguês moderno.
Na defesa das tradições de nossa civilização, os conservadores devem ser prudentes, evitando posturas elitistas semelhantes à de Theodor W. Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973). Os dois filósofos marxistas da Escola de Frankfurt não reconheciam nenhum valor artístico nas obras elaboradas pela chamada indústria cultural.
Em muitos aspectos, a visão da crítica de arte norte-americana Camille Paglia oferece uma percepção mais equilibrada sobre o papel educador da cultura de massa nas sociedades ocidentais. Podemos constatar esta visão de Paglia, por exemplo, na esclarecedora análise do filme A Vingança dos Sith de George Lucas, no seu livro Imagens Cintilantes: Uma Viagem Através da Arte Desde o Egito a Star Wars.
I – O Desafio da Cultura de Massa
Um dos maiores especialistas da atualidade na obra de Shakespeare e de outros importantes clássicos da literatura inglesa, o professor norte-americano Paul A. Cantor escreveu duas obras fundamentais para o entendimento da imaginação moral presente nas produções da cultura de massa, os livros Gilligan Unbound: Pop Culture in the Age of Globalization e The Invisible Hand in Popular Culture: Liberty vs. Authority in American Film and TV. No aclamado Gilligan Unbound, são apresentadas com vasta erudição e impressionante capacidade argumentativa dois momentos distintos na representação das relações entre os indivíduos e a autoridade governamental.
Ao abordar os seriados A Ilha dos Birutas e Jornada nas Estrelas, ambos produzidos na década de 1960, o professor Cantor demonstra como as duas produções televisivas reafirmam a ideologia democrática da comodista mentalidade expressa pelo ideal autoindulgente do “american way of life”. Diferente das errôneas percepções sobre a natureza do conservadorismo, na defesa da verdadeira noção de tradição cabe aos conservadores assumir uma posição crítica diante da homogeneização subserviente geradora de uma espécie de religião civil.
Em Gilligan Unbound, nos capítulos sobre a animação Os Simpsons e o seriado Arquivo X, o professor Cantor demonstra como, no contexto após o final da Guerra Fria, as produções culturais de massa tendem a expressar uma desconfiança em relação à autoridade dos Estados Nacionais e aos verdadeiros interesses de seus governantes.
Uma parte significativa dos conservadores nos Estados Unidos não nutre mais a ingênua visão dos liberais clássicos ou dos socialdemocratas que costumavam conferir ao Estado o papel de principal agente de manutenção da ordem, da liberdade e da justiça.
Assim como os libertários individualistas, e dentre eles podemos incluir o próprio Cantor, uma boa parcela da nova geração de conservadores norte-americanos acredita que os princípios morais judaico-cristãos e a tradição de liberdade ordenada que forjaram a identidade nacional dos Estados Unidos se encontram ameaçados pelo avanço da centralização estatal.
No livro A Política da Prudência, Russell Kirk ressaltou a necessidade de lutar contra o agigantamento estatal e evocou a coragem e imaginação dos conservadores “para impedir o triunfo dos centralizadores; pois tal triunfo seria seguido, bem rapidamente, pela decadência da república”.
A dramática obsolescência da comunidade política histórica tanto como um propósito civilizacional quanto como um hábito mental está diretamente relacionado ao crepúsculo da autoridade, que, cada vez mais, é substituída pela atuação centralizadora do poder discricionário, tal como percebida pelo sociólogo e historiador norte-americano Robert Nisbet (1913-1996).
O fundamento último da natureza dessa crise – em que a verdadeira autoridade é substituída pela vontade de poder – se encontra na famosa sentença de Lord Acton (1844-1902) ao afirmar que:
“O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Grandes homens são quase sempre os homens maus, mesmo quando exercem influência e não autoridade, e, ainda mais, quando se acrescenta a tendência ou a certeza de corrupção pela autoridade”.
II – O Valor das Alegorias
Mais uma vez, as alegorias fornecidas pela imaginação moral nos ajudam a compreender melhor os riscos da corrupção pelo desejo desenfreado de adquirir ou de manter o poder. As clássicas advertências de William Shakespeare apresentadas em Macbeth e em Ricardo III ainda ecoam vividamente em inúmeras obras mais populares, como, por exemplo, na famosa série House of Cards. Na mesma linha, em O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien (1892-1973), bem como na versão cinematográfica de Peter Jackson, fica explícita a impossibilidade de tentar lutar contra o poder utilizando o próprio poder. Em carta, o famoso autor afirma que “‘poder’ é uma palavra agourenta e sinistra em todos esses contos, exceto quando aplicada aos deuses”.
No universo fantástico criado por Tolkien, a sedução da criatura em busca do poder é um tema recorrente que encontra sua melhor representação na própria ideia do “Um Anel”, artefato criado pelo maléfico Sauron com o objetivo de controlar de forma absoluta a vontade de todas as demais criaturas, de modo a se tornar um Rei-Deus. A sedução pelo poder temporal é um dos maiores problemas morais que tem de ser enfrentado, pois o desejo e a busca pelo poder de controlar a existência dos semelhantes é uma das marcas distintivas do pecado original na natureza humana, que, como nos demonstra o famoso dito de Lord Acton, afeta principalmente os chamados “grandes homens”.
As justificativas para o avanço do poder costumam ser sustentadas pelas deformadoras visões ideológicas, tanto de direita quanto de esquerda, que almejam aperfeiçoar a natureza humana e a dinâmica da sociedade por meios seculares e artificiais que sempre implicam em uma violenta revolução social. Ao apontar os erros das ideologias, o conservadorismo de Russell Kirk faz eco de profundas reflexões sobre a temática elaboradas por importantes pensadores desde a Revolução Francesa até os nossos dias. Tal análise inclui nomes como Edmund Burke (1729-1797) e Alexis de Tocqueville (1805-1859), além de pensadores mais contemporâneos como Irving Babbitt (1865-1933), José Ortega y Gasset (1883-1955), Eric Voegelin (1901-1985), Raymond Aron (1905-1983), Gerhart Niemeyer (1907-1997) e Thomas Molnar (1921-2010).
III – A Importância de Eliot
Sem querer reduzir a grande importância das reflexões dos autores supracitados, nenhum tratado filosófico ou sociológico apresentou com tanta profundidade a luta entre a consciência individual e as demoníacas forças ideológicas de nossa época quanto a peça de teatro Assassínio na Catedral de T. S. Eliot (1888-1965). De acordo com a análise de Kirk no livro A Era de T. S. Eliot, a peça de teatro escrita em versos utiliza a narrativa histórica do assassinato do arcebispo Thomas Beckett (1118-1170) pelos cavaleiros do rei Henry II (1133-1189), em 1170, como uma representação da moderna contenda entre a alma e o Estado.
Após ser tentado pela prudência egoísta, pela oferta de poder secular e por alianças temerárias, o único caminho possível, na maioria das vezes, é “seguir em frente até o fim”, que em alguns casos, levará à coroa do martírio. Em uma passagem de Assassínio na Catedral, o segundo tentador afirma que “o poder sobre o homem tudo justifica”, completando mais adiante que “o poder é de quem o souber manejar”. Na peça de Eliot o arcebispo Beckett rechaça esse tentador concluindo que:
“Aqueles que põem fé na lei do mundo não controlada pela lei de Deus, em sua altiva ignorância provocam desordem, tornando-a mais rápida, procriam doenças fatais, degradam aquilo que exaltam”.
Um dos melhores exemplos na cultura popular do modo como o herói pode ser seduzido por um tentador que promete o poder ilimitado, fazendo que este se torne o vilão da história, aparece no filme A Vingança dos Sith, terceiro episódio da saga Star Wars. O relacionamento entre as personagens Palpatine e Anakin Skywalker se assemelha ao relacionamento entre Mefistófeles e Fausto, tal como apresentado, em especial, nas versões de Christopher Marlowe (1564-1593) e de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).
Ao sustentar que “todos que adquirem o poder têm medo de perdê-lo”, o ambicioso e manipulador Palpatine, de certo modo, comunga da mesma visão política do sofista Trasímaco (459-400 a.C.), que, tal como apresentado no debate com Sócrates (469-399 a.C.) no diálogo A República de Platão (427-347 a.C.), defendia que “o justo nada mais é do que a vantagem do mais forte”.
Com a oferta tentadora de poderes para salvar a esposa da morte e, ao mesmo tempo, restaurar a ordem na sociedade assolada pela corrupção e pela guerra, o tentador Palpatine seduz e corrompe Anakin, ao propor uma espécie de pacto satânico que acaba por transformá-lo em Darth Vader, um servo do Lado Negro da Força. Darth Vader destrói a Ordem dos Cavaleiros Jedi, os guardiões da paz e da justiça na República, e permite a implantação do despótico Império de Palpatine como imperador.
A narrativa da queda de Anakin pode ser utilizada como uma metáfora para explicar as concepções de Eric Voegelin e de Russell Kirk, de acordo com as quais as desordens externas da sociedade não passam de reflexo das desordens internas das almas dos indivíduos integrantes da comunidade política.
Além de possuir as máculas inerentes ao arquétipo do herói trágico, o principal fator que acarretou a queda de Anakin foi a escolha de meios errados para atingir os fins aparentemente corretos. Na maioria das vezes o aumento do poder estatal e a centralização governamental são o resultado da crença da população de que essas medidas ampliarão o bem-estar dos membros da sociedade. Essa visão faz com que a liberdade seja sacrificada em nome da segurança.
IV – A Luta contra o Controle e a Decadência
Nos últimos anos, inúmeras medidas estatais, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, tentaram aumentar o controle governamental, por exemplo, sobre a informação. A justificativa dessa atitude encontra-se na luta contra o terrorismo ou nas demandas do politicamente correto. Interessante notar que dois filmes lançados recentemente nos permitem analisar esse problema com bastante clareza.
O primeiro é 007 Contra Spectre, última película do espião britânico James Bond de Ian Fleming (1908-1964). Comparado aos filmes anteriores estrelados por Daniel Craig, este pode ser considerado o melhor e mais fiel ao espírito original da série, pois recupera a virilidade da personagem. A imaginação moral da narrativa se manifesta no senso de dever, na obsessiva busca da verdade, na fidelidade às promessas feitas até aos inimigos e na proteção da amada e dos amigos – virtudes que são levadas pelo agente secreto até o autossacrifício por aquilo que é correto.
O segundo filme é Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 2, a segunda metade da parte final da versão para as telas da trilogia de livros de Suzanne Collins. O papel da protagonista Katniss Everdeen, interpretado pela bela e talentosa Jennifer Lawrence, mais uma vez consegue apresentar os dramas psicológicos e morais que marcam a ação da rebelde heroína.
Seguindo a tradição dos romances distópicos, a narrativa de Collins apresenta diversas questões filosóficas sobre a importância das escolhas morais e a liberdade individual, tangenciando discussões sobre família, religião, controle social, centralização política, violência governamental, planejamento econômico, manipulação genética e destruição do meio ambiente. A simbologia católica apresentada no decorrer da trama, menor nos filmes se comparada aos livros, é um dos fatores que faz de Jogos Vorazes a obra com o maior grau de imaginação moral entre as distopias dos últimos anos.
Existe um ponto em comum importante nos dois filmes que merece ser tratado, visto que é um alerta para a conjuntura política supracitada. Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 2 e 007 Contra Spectre lidam diretamente com a tentativa governamental de monopolizar e manipular a informação, além de ressaltar que, muitas vezes, os aparentes aliados são criminosos tão perigosos quanto os adversários políticos.
Na luta contra a decadência que assola a Civilização Ocidental o conservador prudente não poderá contar com a centralização governamental como um instrumento de restauração da ordem, da liberdade e da justiça. A solução para a crise da modernidade passa pelo fortalecimento da disciplina ética individual fornecida pela imaginação moral e pela redescoberta do verdadeiro senso de comunidade. Nessa cruzada as alegorias fornecidas pela cultura popular podem ser um importante aliado, pois como, no livro Enemies of the Permanent Things [Inimigos das Coisas Permanentes], Russell Kirk afirmou:
“Se o homem depender apenas de seus poderes racionais privados, ele perderá a sua fé – e talvez o mundo, também, arriscando a sua própria natureza num jogo de xadrez contra o Diabo”.
Nota do autor: O presente ensaio foi publicado originalmente em inglês com o título “The Power of Imagination” nas páginas 34 a 36 da edição 13 (Winter / Spring 2016) da revista The European Conservative. Agradeço ao editor Alvino-Mario Fantini a autorização para publicar esta versão em língua portuguesa.
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