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Fátima Bernardes e o dilema do salvamento do traficante

Fátima Bernardes perguntou quem deve ser salvo: um policial levemente ferido ou um traficante em estado grave. A pergunta é viciada. Literalmente.

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Encontro com Fátima Bernardes: Quem você salvaria, policial levemente ferido ou traficante gravemente ferido?

No programa Encontro Com Fátima Bernardes de ontem, a apresentadora global apresentou uma versão, digamos, carioca do famoso dilema que une a filosofia moral, a biologia e a teoria da complexidade: quem você salvaria, um conhecido com pouco risco ou um desconhecido com risco de vida iminente?

Na versão de Fátima Bernardes, o dilema se torna: quem deveria ter prioridade em um hospital, um “traficante em estado grave” ou um “policial levemente ferido”.

O dilema é válido e curioso: com ele, muitos psicólogos conseguiram descobrir padrões de comportamento e axiologia que permanecem ocultos dos observadores que, felizmente, não precisam tratar de situações tão complexas na vida comum.

Sua solução comum revela algo na raiz da organização humana, o que os gregos chamam de endofilia, ou seja, o apreço e o sentimento por quem é aparentado, familiar, muito maior do que por desconhecidos. Algo natural, que explica por que a estrutura familiar é tão importante (e tanta falta faz quando fraturada), ou como funcionam laços de amizade duradoura, ou ainda por que sociedades tribais consideram uma vergonha infinita um matrimônio entre tribos e clãs distintos.

Entretanto, o que Fátima Bernardes acabou por fazer, ainda que raros saibam colocar em palavras tal desenlace técnico, foi revelar os vícios que seu conjunto de dados apresenta. Ao invés de algo que pudesse ser comparado a uma rudimentar pesquisa científica, o que saltou aos olhos dos telespectadores brasileiros foi tão somente os preconceitos embutidos na mentalidade brasileira.

A Rede Globo, em seu afã progressista, é pródiga em fomentar uma mentalidade que tenta hoje, desesperadamente, “vencer preconceitos”, como tentar fazer meninos brincarem com bonecas, defender o uso indiscriminado de “drogas recreativas”, uma quase onipresença entre seus atores, uma agenda de crítica mordaz a valores religiosos e qualquer âncora moral da sociedade independente de uma visão de mundo planificadamente secular.

Ao contrário do discurso corrente da esquerda nas últimas décadas, a Rede Globo e Igor Fuser ou Marilena Chaui pensam de maneira rigorosamente indiscernível.

Neste cenário, é natural que toda a sua platéia, a mesma que enaltece Leandro Karnal (presente no programa) como intelectual e ouve hip hop hedonista como “salvação”, tenha um ódio mortal da polícia. Ao invés de se analisar um conflito entre endofilia e alguma “lógica” de salvamento, todo o espetáculo que se desencadeou, com um ominoso 7 x 1 dos participantes, foi uma descrição de ódio espumante o mais irrefletido destilado sobre a polícia. É fácil notar que, para os freqüentadores do Projacstão, salvar um Playmobil de ser atropelado é uma prioridade mais urgente do que a vida de um policial.

Não há dilema nenhum à baila: apenas um verniz de pseudo-pesquisa para disfarçar a ojeriza que um segmento selecionado da população nutre por qualquer noção de ordem e ordenamento.

Aprofundando o disparate, o dado é ainda mais viciado, e neste caso, em sentido literal: simplesmente parece que freqüentadores do Projacstão e traficantes não são exatamente adversários. Parece mesmo que estamos falando de gente com programa de milhagem com os aviõezinhos locais.

Neste cenário, como é que o conflito entre “traficante em estado grave” versus “policial levemente ferido” fará algum sentido? Não há nem um dilema de fato aí, um paradoxo entre o desejado com pouco risco e o adversário em sério risco (tema tratado de maneira brutalmente avassaladora em Jogos Mortais 3): há apenas a defesa dos cupinchas contra uma raça considerada inimiga de seu projeto de hedonismo e vida niilisticamente progressista.

O problema, obviamente, não é Fátima Bernardes e os ouvintes de hip-hop em sua platéia – chamá-los de casos perdidos é uma ofensa aos casos. O problema não é nem a lacrosfera no Twitter replicando o conteúdo com uma frase de efeito ou aqueles com carteirinha de filiação no CV comemorando o resultado.

O problema é a dona de casa honesta e humilde, acostumada a deixar os filhos assistindo TV Colosso ou vendo receitas de bolo e avisos para não deixar água parada nos vasos do quintal, tendo de reiteradamente receber tal conteúdo como “prova científica” de que quem mais merece saúde, educação, segurança e aquela papagaiada que ouvimos de políticos porque sabem que terão um contingente enorme de votos fáceis se prometerem isso são os traficantes, e não os policiais.

Na Globo ou no PSOL, no Projac ou no Leblon, quem ganha é sempre quem tem a melhor carreira a oferecer.

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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