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Ideologia

Clarice Falcão x loja Alezzia: pode mulher pelada ou não pode?

Os dois casos a agitarem a internet e o jornalismo nessa semana revelam pior do que a incoerência do feminismo: a vontade de controle total.

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Modelo da Loja Alezzia

Clarice Falcão, a musicista ex-Pão de Açúcar e ex-Duvivier, lançou um clipe para “causar” com a família no Natal, onde tudo o que aparece são genitálias para lá e para cá (nenhuma negra). A loja de móveis Alezzia, alguns dias antes, foi acusada de “machismo” por usar modelos em suas propagandas de móveis pelo site Catraca Livre (aquele mesmo site que tentou usar a tragédia com o avião da Chapecoense para faturar).

Pouco depois, descobriu-se que a Alezzia é uma loja gerida por mulheres. A loja fez um desafio em resposta à campanha de difamação e boicote do Catraca Livre, que se ganhasse ainda mais curtidas após o boicote do site de extrema-esquerda, iria fazer uma doação de móveis para a AACD. O Catraca Livre pediu para a AACD não receber doações da loja, prejudicando as crianças que a instituição ajuda por não gostar da loja.

Quanto à Clarice Falcão… Eu também não sei quem é Clarice Falcão. Ninguém que importa sabe. Deu pra descobrir que a moçoila é ex de Gregório Duvivier, e aquela propaganda do Pão de Açúcar que todo mundo achava que era da tal Banda Mais Bonita da Cidade (ainda existem?) era na verdade dela. Já é motivo o sobejante para estar na minha lista Arya Stark pré-dormir pessoal, mas sem saber mais nada da criatura além disso (nada mesmo), posso apostar que é uma feminista. Quem conseguiria agüentar 2 minutos de conversa de Gregório Duvivier sem ser feminista e, portanto, petista e com frustrações sexuais porque a sociedade não a aceita.

O feminismo, como dissemos neste Senso Incomum reiteradas vezes, é o que Claude Lévi-Strauss chama de signo flutuante: uma palavra sem significado discernível, apenas reunindo vontades coletivas de participação em um ritual grupal para tentar criar alguma mágica sobre a realidade. É muito mais a demarcação de um grupo do que uma causa, política, ideologia, cosmovisão ou valores, como o é ser liberal, ser palmeirense ou ser adventista do sétimo dia.

Em um mundo de relações fragmentárias, política sem continuidade e ideologias de manada, ao invés de se criar relações por uma aventura conjunta, valores comungados ou objetivos compartilhados, basta se considerar “feminista” para ter apoio, quase militar, de outras pessoas que gritem “feminismo”. É uma espécie de torcida organizada de bolso, potencializada pela era dos memes e pelo botão RT.

O que é feminismo? Na mesma toada, é proibir uma loja de fazer propaganda com uma modelo de biquini, porque isso seria “objetificação da mulher” e, portanto, “machismo” (o que será coadunado por todos os grandes veículos da grande velha mídia) e também “chocar a sociedade” exibindo prexecas e jaramaralhos contra a família tradicional (aquela em que o homem introduz o pipi na bubu da mulher).

É o que chamamos no vulgo comum de “incoerência”. Grandes estudiosos da linguagem, mentalidade e pensamento totalitários já discerniram como típicos desses períodos a grande capacidade da patuléia (e dos próprios intelectuais que a guiam) conviver com extrema facilidade com contradições fundamentais em seus discursos, atos e metafísicas.

Mas o caso Alezzia e o caso Clarice Falcão revelam algo ainda mais grave do que uma singela incoerência, algo individual, pessoal e intransferível, que só faz mal à cabeça do enfermo, não transmissível por contato social ou transfusão de sangue (permanência no mesmo ambiente e contato sexual sob suspeita).

O feminismo, até mesmo quando não nomeado (signos flutuantes e o pensamento mágico também possuem tabus que nem sempre devem ser nomeados, como senhas de espiões e nomes de divindades do submundo), é uma palavra-passe que concentra energia, a mais vital, criadora e destruidora, de seus portadores. É a diferença entre defender mulheres com uma moral (seja a da nobreza ou mesmo a de estupradores quando chegam a uma cadeia) e com uma causa.

É graças a isto que feministas não conseguem simplesmente dizer que acham ridículo o fiu-fiu: querem compará-lo a um estupro, numa histeria coletiva sem fim. Não há feminismo sem fanatismo. Não há signo flutuante sem uma míriade de energias precisando ser canalizada para algo. E, sendo um pulsar terroso, precisa da confluência de todas as mentes, um bater uníssono de todos os corações, odiando tudo o que lhe é concorrente, como sendo da tribo inimiga.

https://twitter.com/flaviomorgen/status/811697715746848768

Não fosse seu caráter tão coletivista, o feminismo seria apenas um sentimento, uma identificação dos problemas do mundo, políticos, sociais, econômicos, pessoais, sentimentais ou cósmicos, com o fato de “ser mulher” (algo como um espírita pode sempre achar que é seu “karma”, ou qualquer outro sistema de valores ou ideologia, certo ou errado, verdadeiro ou falso, pode tentar “resumir” o mundo pelo funil de uma única condição). Algo que gera contradições, como criticar a loja Alezzia por ter uma mulher, feliz, que escolheu a vida de modelo para se satisfazer em trabalhos onde pode vender móveis de biquini (na verdade, de maiô), a um só tempo em que se cala, ou até mesmo enaltece um chatíssimo clipe com jirombas e xerecas por ir contra sua tribo inimiga: a família tradicional.

Em suas mentes, a incoerência, que seria algo superficial, do reino da lógica, é facilmente convivível. O que importa é o ânimo, o bater terrento, que, como a tradição oral e suas contradições, consegue render loas a Clarice Falcão e anátemas à Alezzia no mesmo ritmo. É o feminismo como grito de guerra tribal.

https://twitter.com/flaviomorgen/status/811697807467810818

Quando toda a mídia leva a sério os ataques de pelancas, as firulas, as frescurites de tais pessoas em agravado estágio de insatisfação sexual, tais peões de manobra crêem estarem alcançando seu zênite, seu máximo poder na sociedade (quanto mais gritam que são humilhadas, sofrem machismo e são vítimas silenciosas às quais ninguém presta atenção, em todos os jornais, em todos os canais de TV, para toda a sociedade sem opção além de ouvir).

Nunca cogitam desconfiar de como seus instintos estão sendo manipulados de longe para causas que desconhecem, voltando a um tribalismo o mais primitivo, quanto mais crêem que são a própria representação do progresso científico e sua tecnologia a matar os ídolos do obscurantismo. Em seu vezo por impedir o que é normal e aceito e em impor o que é feio e chato como objeto de culto, são apenas a infantaria de um projeto de controle da sociedade. E quanto mais crêem que atingiram um novo estágio, mais rigoroso e avançado, do pensamento, mais atuam simplesmente como esbirros de quem apenas quer o controle total de qualquer humano que não obedeça aos novos modismos.

Afinal, entre outros, não é o Catraca Livre que aparece ao lado dos donos do Datafolha como o órgão a analisar, no Facebook, se notícias devem ser marcadas como “falsas” aos usuários, e não eles próprios? Como o Catraca Livre vai marcar, na sociedade de controle total, no totalitarismo 2.0, qualquer um que não aceite seus chiliques? E quem lhes deu tal poder, senão as modistas do siricutico coletivo ocasião?

A propósito, o Catraca Livre sofreu, ele próprio, uma campanha de boicote fortíssima após o episódio do uso da tragédia da Chapecoense para manchetes de gosto duvidoso, sem respeito pelo momento de luto do país. Boicote é algo liberal, que só funciona em sociedades de mercado: recusa-se um produto, preferindo-se o do concorrente. Avisa-se o público do motivo do boicote, e a empresa é penalizada por suas ações. O Brasil, sem tradição liberal nenhuma, acabou seguindo o liberalismo, afinal, como ele é: natural. Mas o que fará para “boicotar” quem controla até mesmo o critério de verdade do que nos chegará nas notícias, quando ele for o poder total? Escreverá um textão, que será marcado como “fake news”?

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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