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O estudo da FGV sobre o depoimento de Lula e a Janela de Overton

Um estudo feito pela FGV sobre o depoimento de Lula considera o perfil @lulaeuteamo como "moderado" em relação a Lula. Então o povo é o quê?

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Estudo da FGV: mapa sobre influência no Twitter

A FGV, Fundação Getúlio Vargas, publicou um estudo sobre as interações no Twitter sobre o depoimento de Lula, na última quarta-feira. O estudo busca medir a chamada polarização nas redes – e chega à fácil conclusão de que há um grupo avesso à polarização, que quer algo “novo”. Este grupo foi curiosamente retratado com a cor verde, a mesma da candidata que sempre se apresenta como uma alternativa à antiga polarização partidária.

A própria palavra “polarização” já é vista como reducionista e maniqueísta, sendo sempre usada em contexto negativo. Não é preciso fazer um estudo para se chegar à conclusão que todos têm sobre nosso cenário político.

Mais ainda: é desnecessário afirmar que o povo está cansado da dicotomia partidária entre PT e PSDB, ainda mais porque apenas o PT tem sua militância: 99% de quem vota em candidatos do PSDB, apenas escolhe o menos pior, votando com nojo, e não com ânimo. Assim que um tucano é pego com a boca na botija, os primeiros a quererem seu bico preso são seus próprios eleitores – pessoas que defendem uma lei, não um homem-deus para estar acima delas, e muito mais votam contra o PT do que a favor de quem quer que seja.

Contudo, o pior é a confusão demoníaca entre partido e ideologia. Ou seria o pior: é uma análise completamente pedestre tratar o PT da mesma forma que o PSDB. O primeiro é um partido ideológico, hierárquico e que age em monobloco, a despeito de suas discussões internas (e discussões internas entre partidos de esquerda no Foro de São Paulo). O segundo tem como ideologia ser o PMDB do B, sendo que o PMDB já é o partido com menos clareza de princípios da Via Láctea. Seus líderes apenas querem o poder com uma visão ultrapassada e tacanha de social-democracia, e cada liderança tucana tem como objetivo de vida passar a perna na outra liderança tucana. Seus chefões se odeiam mortalmente, e sua auto-organização é a do quarto de um adolescente hormonal.

E ainda se pode piorar: há a confusão entre partido e ideologia, ou política e eleição, ou correntes políticas filosóficas com séculos de idade e dois idiotas disputando poder entre os quais devemos escolher quem vai nos ferrar menos (e em 90% de seu ser, ambos costumam ser quase indiscerníveis). Mas também se pode afundar no fundo do poço e simplesmente confundir até mesmo os, digamos, “partidos” envoltos em uma questão simples, como o depoimento de Lula. É o que o estudo da FGV faz – ou, pior, é no que ele é calcado. Sem forçar uma ridícula mistureba de partidos, não há estudo, não há “verdes”, não há a gloriosa conclusão de que o povo quer um candidato “não-polarizado” (polarizando-se em pólo oposto à polarização antiga) com o qual candidatos se pautarão e errarão até 2018.

No estudo da FGV, são catalogadas três tipos de pessoas que comentaram o discurso de Lula no Twitter: os petistas que defenderão Lula até se ele estiver molestando um bebê recém-nascido enquanto usa um maçarico em sua orelha (vermelhos), os “defensores da Lava Jato” (azuis) e, no meio, a isentosfera, que fica em verde. Agora, note-se bem quem faz parte de cada coluna:

Para o Diretório de Análise de Políticas Públicas da FGV, o perfil @lulaeuteamo (sic) pertence à categoria “não-polarizada”, aquela “isenta” e também chamada como positividade máxima de “imparcial”, numa auto-declaração de transformar o mais branco cotista num anti-171.

Entre outros partícipes da coluna gloriosa, está a feminista radical @choracuica, organizadora do “Bloco Soviético”, que faz apologia ao totalitarismo comunista no Carnaval por via de troça com suas vítimas. É autora da humanista, isenta e imparcial frase “tem alguém realmente reclamando do nosso bloco soviético e usando como justificativa que a URSS matou uma galera?”

Twitter - @choracuica - bloco soviético

Na prática, de Pirula a Luscas, apesar das notáveis exceções, a maioria da coluna elogiada sem muito disfarce como a “moderada” e “ponderada” e “não-polarizada” é a chamada lacrosfera do Twitter: o estudo da FGV considerou que quem faz parte da polarização pelo lado petista sem declarar “Sou PETISTA”, preferindo “piadinhas” cuja única graça é o lacre ideológico (criticando machismo-homofobia-racismo-fascismo), é “imparcial”. Ou, no dizer do estudo, “revela uma tentativa de avaliação equidistante do depoimento”.

Curiosamente, nenhum direitista foi parar em tal coluna do futuro dourado quando não se declara. E, para questionar a metodologia de vez, esqueceram até o lulaeuteamo como membro “não-polar”. Nem mesmo a confusão entre ideologia e partido, entre estruturas de diferentes partidos, entre definições malemolentes de esquerda e direita – simplesmente nada justifica um erro tão pueril.

O editor-chefe deste Senso Incomum aparece na coluna azul, logo acima de Álvaro Dias (Álvaro Dias!!!), arrolado junto a jornais entupidos de matérias que deixariam Lenin parecendo um lord inglês, como Estadão e Blog do Noblat. Graças a isso, vem sofrendo bullying do restante da redação deste site e permanecerá neste estado quase catatônico por possíveis décadas a fio.

Janela de Overton

Uma das mais clássicas análises sobre a relação entre pesquisas de mercado ou mídia e sua influência na opinião pública é a chamada Janela de Overton. Ela mede um gradiente de opiniões que o público aceita em determinado momento, indo do popular ao impensável.

É fácil perceber, por exemplo, que no começo do século XX, o que a direita defendia, em termos gerais e globais, orbitava em torno de coisas como as monarquias constitucionais, os Estados confessionais, a aristocracia e a política de costumes públicos e privados. A esquerda, na ditadura do proletariado, na expropriação da burguesia, na proibição da religião.

Embora ambas tenham se aproximado de uma espécie de “centro” com as democracias modernas, a tendência geral foi que a Janela de Overton caminhou muito mais para a esquerda, tratando a maior parte do que a direita defendia com naturalidade, e era discutido nos melhores países do mundo, como “impensável” (apenas a Inglaterra, hoje, tem uma monarquia admirável worldwide, por exemplo).

Boa parte da esquerda continua de pé, mas com eufemismos: a ditadura do proletariado se tornou Estado de Bem Estar Social, a expropriação da burguesia é apenas rebatizada de “distribuição de renda” com impostos escorchantes e nada no mundo é mais atacado do que o comportamento, a moral e o pensamento religiosos hoje.

Voltando ao estudo da FGV, nota-se que, no Brasil, ser petista não é mais o cool como era até meados de 2014 (ao menos para o palpitariado na mídia, na Academia e nas “artes”). Todavia, basta continuar sendo petista, com agenda, cartilha, vocabulário, valores e ídolos, mas fazê-lo de maneira disfarçada (se é que lulaeuteamo é um bom disfarce), através de piadinhas que “lacram”, e voilà: você já é considerado “isento”.

Com a manobra, até mesmo Ricardo Noblat e Estadão são considerados “a direita” (ainda que não com este nome), delimitando-se um novo limite de um lado a outro da Janela de Overton.

Limite mais à esquerda ainda: se até eles são a direita, qualquer pensamento considerado normal há pouco tempo e em qualquer lugar civilizado, como o direito ao porte de armas por cidadãos para defender suas famílias, a primazia do empreendimento sobre o dirigismo estatal (nível soviético) ou o combate ao aborto e às drogas passa a ser considerado “radical”, e em pouco tempo “impensável”. Como está acontecendo com qualquer defesa simples da família.

Basta-se ler as conversas sobre família, religião e Estado no romance Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoievsky, e notar como a beleza das virtudes ali discutida hoje é considera obscurantismo inconcebível e proibido.

A um só tempo, o abolicionismo penal, a sexualização infantil e o “aborto pós-parto” (sic) vão passando do impensável ao radical, até o sensível e o aceitável, logo tendendo a se tornarem populares. E aplique-se o caso à censura em nome de combater o “discurso de ódio” e as “notícias falsas” e o caldo engrossa para a União Soviética 2.0.

No dizer de Polônio sobre Hamlet, é loucura, mas há método nela. E é o método de controle de opinião pública o que deveria chocar, e ele próprio passa como passável: se o centro vira a direita, e inclusive um centro que declara voto em Lula e Dilma como Ricardo Noblat, qualquer opinião à direita do PT (que dirá à direita do PSDB, o PT gourmet) vira “radical” e “impensável”.

Portanto, não é falta de método do estudo da FGV que coloca lulaeuteamo como um perfil “não-polarizado”, isento, moderado, ponderado e mais racional do que nós, trogloditas com opiniões que não pedem licença: é justamente o seu método que assusta.

E o que a FGV iria querer com isso? Uma pequena pista é seguir os “estudiosos” do tal DAPP da FGV. O coordenador é Marco Aurélio Ruediger. Já na equipe encontramos o nome de Thomas Traumann. Jornalista com passagem por vários veículos, trocou em 2010 a revista Época pela comunicação corporativa da Andrade Gutierrez, esta gigante da corrupção.

No começo do ano seguinte, naquelas meras coincidências da vida, foi alçado para a coordenação de imprensa da Casa Civil da Presidência, se tornando garoto de recados de Antonio Palocci. No pós-Palocci, virou assessor especial da Secretaria de Comunicação Social em junho e, de 2012 a 2014, se tornou ninguém menos do que o porta-voz da Presidência da República.

Os antigos chefes de Thomas Traumann não parecem andar se comunicando muito com o antigo empregado por serem pessoas em situação de cadeia. E é até engraçado pensar em que lugar o próprio autor do estudo se encontraria em sua “janela”.

Mas não é ainda mais curioso que justamente essas pessoas forcem a percepção do público sobre o que é “polarizado”, o que é “moderado” e quais são as bestas feras hidrofóbicas e irracionais que tendam a, oh, horror, defender a Lava Jato e a punição de políticos criminosos por aí, ao invés de acender um e viver numa nice?

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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