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Polêmica

O ensino religioso em julgamento

ADIn da tenebrosa era Dilma quer trocar o ensino religioso por sociologia. Quem acompanha a educação doutrinária sabe o que isso significa.

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Deborah Duprat, PGR, Procuradora Geral da República

Nesta semana, dia 30 de agosto, vai a julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação que pode ter consequências extremamente nefastas para os destinos da liberdade religiosa no Brasil. Trata-se da ADIn 4439, proposta em 2010 pela procuradora-geral da República em exercício, Débora Duprat. O que particularmente me incomoda é que o público não tem tomado conhecimento da importância do que está em jogo e que tampouco as confissões religiosas têm se mobilizado convenientemente para a defesa de suas liberdades constitucionais.

A referida ADIn 4439 pretende que o STF determine, com eficácia geral e vinculante (ou seja, na prática, com força de lei), que o ensino religioso nas escolas públicas apenas possa ter natureza não-confessional. Não bastasse inventar o contrassenso “ensino religioso não-confessional”, a demanda visa, na verdade, a suprimir o ensino religioso tal como previsto em todas as constituições brasileiras desde 1934, restringindo, destarte, por meio de interpretação fraudulenta da Constituição vigente, a liberdade religiosa dos brasileiros.

Como se sabe, o ensino religioso nas escolas públicas do Brasil foi restaurado pelo Decreto Federal n. 19.941, de 30 de abril de 1931, baixado pelo presidente Getúlio Vargas. No ofício em que Francisco Campos, que era na época o ministro da Educação, expôs os motivos do decreto ao presidente, dois pontos são claramente salientados: o ensino religioso é confessional e tal fato não implica violação à laicidade do Estado. In verbis:

«Meu caro Presidente
Afetuosa visita.
Envio-lhe o decreto junto, que submeto ao seu exame e aprovação.
Como verá, o decreto não estabelece a obrigatoriedade do ensino religioso, que será facultativo para
os alunos, na conformidade da vontade dos pais ou tutores.
Não restringe, igualmente, o decreto o ensino religioso ao da religião católica, pois permite que o ensino de outras religiões seja ministrado desde que exista um grupo de pelo menos vinte alunos que desejem recebê-lo.
O decreto institui, portanto, o ensino religioso facultativo, não fazendo violência à consciência de
ninguém, nem violando, assim, o princípio de neutralidade do Estado em matéria de crenças religiosas.
(…)
Sei que V.Exa. tem recebido do seu estado natal representações assinadas por dezenas de milhares de pessoas, pedindo a V.Exa. as suas simpatias em favor da educação religiosa.
Ora, se o decreto não oprime nenhuma consciência, nem viola o princípio da neutralidade do Estado em matéria religiosa; se o ensino por ele instituído é de caráter absolutamente facultativo; se a sua aprovação interessa tão profundamente ao aperfeiçoamento do nosso sistema de educação; se, aprovado por V.Exa., determinará, como estou certo, um impressionante e entusiástico movimento de apoio ao governo de V.Exa., não vejo como contra o mesmo se possam levantar objeções valiosas.
Foi assim pensando e com o intuito de mobilizar mais uma força, a maior das nossas forças morais,
ao lado de V.Exa., que me animei a submeter ao seu exame o projeto de decreto.
Assinando-o, terá V.Exa. praticado talvez o ato de maior alcance político do seu governo, sem contar os benefícios que da sua aplicação decorrerão para a educação da juventude brasileira.» (In: A Revolução de 30 – Textos e documentos, Editora Universidade de Brasília, grifos nossos).

Entretanto, talvez mais que a própria exposição de motivos do decreto, a prova de que o ensino religioso confessional nas escolas públicas não viola a laicidade do Estado é o fato de que o presidente que o restaurou no Brasil era pessoalmente ateu, da escola de Augusto Comte. Sim, Getúlio Vargas era ateu, mas um ateu digno e patriota que sabia ver, acima do caos das ideologias subversivas e desintegradoras, a realidade do bem comum e do interesse nacional.

Aliás, o Decreto Federal n. 19.941/1931, revogado em 1991 pelo presidente Fernando Collor, na sanha de destruir a Era Vargas, trazia em seu art. 9o norma salutar:

Art. 9o. Não é permitido aos professores de outras disciplinas impugnar os ensinamentos religiosos ou, de qualquer outro modo, ofender os direitos de consciência dos alunos que lhes são confiados.

O fato é que o ensino religioso, uma vez restaurado nas escolas públicas brasileiras pelo decreto de 1931, foi alçado a norma constitucional pela Constituição promulgada aos 16 de julho de 1934, nos seguintes termos:

Art. 153. O ensino religioso será de frequência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno manifestada pelos pais ou responsáveis e constituirá matéria dos horários nas escolas públicas primárias, secundárias, profissionais e normais.

Observem que o texto da Constituição de 1934 explicita que o ensino religioso deve ser “ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno”, ou seja, abertamente confessional. Ninguém, todavia, supôs que a confessionalidade do ensino religioso fosse contrária à laicidade do Estado, também garantida pela Constituição de 1934 como pela de 1891, que constitucionalizou a separação entre Estado e Igreja.

Desde 1934, todas as constituições que teve o Brasil consagraram explicitamente a previsão do ensino religioso nas escolas públicas. E sempre se entendeu que tal ensino religioso seria confessional, de matrícula facultativa, ministrado de acordo com a confissão religiosa professada e declarada pela família do aluno. Pelo menos em setenta anos jamais se pôde identificar um único doutrinador que esposasse entendimento contrário. E, se é verdade que optima est legum interpres consuetudo (“o costume é o melhor intérprete das leis”, Digesto 1, 3, 37), o art. 210, § 1o, da Constituição vigente, deve ser interpretado como permitindo, nas escolas públicas, o ensino religioso confessional, de matrícula facultativa, de acordo com a confissão religiosa da família do aluno.

Porém, na ADIn 4439, a procuradora-geral da República em exercício, dra. Débora Duprat, sofisma ao dizer que «a única forma de compatibilizar o caráter laico do Estado brasileiro com o ensino religioso nas escolas públicas é através da adoção do modelo não-confessional» (parágrafo n. 6). Ora, em primeiro lugar já provamos não ser isso verdade, visto que o ensino religioso confessional convive bem com o Estado laico brasileiro desde 1931. De fato, violação à laicidade do Estado haveria se fosse privilegiada uma confissão religiosa em detrimento de outras, o que não ocorre. Pelo contrário, a previsão constitucional do ensino religioso franqueia as portas das escolas públicas a todas as confissões religiosas, segundo a demanda de seus respectivos adeptos.

Em segundo lugar, a expressão “ensino religioso não-confessional” é uma contradição em termos. É exatamente o mesmo que dizer “ensino religioso não-religioso”. Isso porque, embora se possa dizer que uma única religião seja a verdadeira, o fato é que não existe apenas uma religião, mas várias. Um ensino religioso não-confessional, portanto, não poderia corresponder ao de nenhuma religião existente; seria, então, ou o ensino de uma nova religião ou o de uma outra coisa que não se poderia chamar de religião. Aliás, na petição inicial, a dra. Duprat faz algumas acrobacias dialéticas tentando esboçar o que seria esse estranho “ensino religioso não-confessional”: «modelo não-confessional, em que o conteúdo programático da disciplina consiste na exposição das doutrinas, das práticas, da história e de dimensões sociais das diferentes religiões – bem como de posições não-religiosas, como o ateísmo e o agnosticismo – sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores» (n. 6). Ora, doutora, isso não é ensinar religião, mas sociologia. Em outras palavras, o que pretende a dra. Duprat é a substituição ou a absorção do ensino religioso, previsto constitucionalmente, pelo ensino da sociologia – uma ciência, diga-se de passagem, de estatuto epistemológico bastante discutível.

Contra o ensino religioso confessional, a dra. Duprat esgrime o princípio da igualdade. Ocorre que este não é violado por aquele, simplesmente porque a permissão do ensino religioso confessional nas escolas públicas não significa “o endosso pelo Estado de qualquer posicionamento religioso», uma vez que se trata de oportunidade igualmente aberta a todas e quaisquer confissões religiosas, sem nenhum favorecimento ou discriminação em relação a esta ou àquela. Tanto o catolicismo, como as diversas denominações protestantes, o judaísmo ortodoxo ou reformista, o islamismo sunita ou xiita, o budismo e o espiritismo kardecista ou umbandista têm, segundo o art. 210, § 1o, da Constituição, o mesmo direito de ministrar o ensino religioso nas escolas públicas aos seus respectivos adeptos.

Não há igualmente perigo de confusão entre o poder civil e as confissões religiosas porque o ideal é que estas mesmas, segundo o seu interesse, ministrem o respectivo ensino religioso nas escolas públicas, com o mínimo de custos para o Estado.

A dra. Duprat gasta alguns parágrafos de sua manifestação dissertando sobre a diferença entre laicidade e laicismo, não se sabe se simplesmente para preencher papel ou para disfarçar o fato de que a demanda dela é laicista, na medida em que visa a expulsar a religião das escolas públicas. De fato, diz a dra. Duprat no parágrafo n. 4: «A escola pública não é lugar para o ensino confessional e também para o interconfessional ou ecumênico, pois este, ainda que não voltado à promoção de uma confissão específica, tem por propósito inculcar nos alunos princípios e valores religiosos partilhados pela maioria, com prejuízo das visões ateístas, agnósticas, ou de religiões com menor poder na esfera sócio-política» (grifos nossos). Assim, pode-se entender que a demanda da dra. Duprat é motivada pelo desejo de compensar o “prejuízo” que o ateísmo tem com o ensino religioso nas escolas públicas.

A dra. Duprat chega a ser preconceituosa ao afirmar que o ensino religioso confessional seria incompatível com «uma das finalidades mais essenciais do ensino público: formar pessoas autônomas, com capacidade de reflexão crítica, seja para a escolha e persecução dos seus planos individuais de vida, seja para a atuação como cidadãos no espaço público» (n. 37). Ou seja, a contrario sensu, a dra. Duprat deu a entender que as pessoas que professam uma religião qualquer não são autônomas, ou que a religião prejudica a capacidade de reflexão crítica dos alunos. Isso é indubitavelmente manifestação de preconceito antirreligioso, que deveria ser inadmissível num documento oficial do Ministério Público Federal.

Diz a dra. Duprat, no parágrafo n. 13 de sua petição, que «as escolas públicas brasileiras, com raras exceções, são hoje um espaço de doutrinamento religioso, onde, por vezes, os professores são representantes das igrejas, tudo financiado com recursos públicos». É para se perguntar em que país essa procuradora vive porque, no Brasil real, os estabelecimentos de ensino, desde o nível fundamental até o superior, são na verdade espaços de intensivo doutrinamento marxista, o que não é difícil de se constatar. Parece mesmo que a dra. Duprat está assustada com a possibilidade de o ensino religioso confessional oferecer aos alunos das escolas públicas visões de mundo alternativas à do marxismo hegemônico nas cátedras.

Além disso, a dra. Duprat parece ter uma opinião muito desfavorável a respeito do poder familiar (outrora chamado “pátrio poder”), suspeita que se corrobora por declarações dela feitas à imprensa. Efetivamente, no parágrafo n. 7 da petição inicial, ela diz que os alunos devem ser «pessoas autônomas, capazes de fazerem escolhas e tomarem decisões por si próprias em todos os campos da vida, inclusive no da religiosidade», como se os pais ou a família nada tivessem que ver com isso. Contra esse abstracionismo que não vê papel algum para a família na formação religiosa da criança e do adolescente, invoco o testemunho de outro ateu, o filósofo positivista Teixeira Mendes, escrevendo numa época em que a Constituição de 1891 ainda proibia o ensino religioso nos estabelecimentos públicos de ensino:

«O respeito à liberdade espiritual prescreve que se acatem nos filhos menores as convicções religiosas de seus pais (…). Reconhecer que existem religiões; constatar que uma criança foi consagrada segundo tal ou qual culto, são fatos da mesma ordem que verificar a existência do sol. E, uma vez sabida qual é a religião em que os pais tencionavam educar os filhos, o respeito à liberdade espiritual consiste justamente em proporcionar, tanto quanto possível, às crianças realmente órfãs, isto é, sem família de espécie alguma, o culto e o ensino religioso correspondente (…). Para isso, cumpre facultar a um sacerdote da religião dos pais o exercício do seu ministério nos internatos municipais; ou, então, providenciar para que os órfãos possam assistir ao culto e receber o ensino religioso nas igrejas a que seus pais pertenciam» (A liberdade espiritual e o ensino religioso nos estabelecimentos municipais, Jornal do Commercio, 8 de junho de 1904).

Outro fato que é significativo na manifestação da dra. Duprat são as extensas citações que ela faz da autora Débora Diniz, incansável militante pela legalização do aborto no Brasil, no que sempre contou com bolsas de fundações supercapitalistas estrangeiras. Além de sua homônima, a dra. Duprat também invoca o PNDH-3 (Plano Nacional de Direitos Humanos – 3), aprovado pelo Decreto Federal n. 7.037/2009, baixado pelo presidente Lula.

É preciso frisar-se, todavia, que a ADIn 4439 é uma tentativa de restringir a liberdade religiosa dos brasileiros mediante uma interpretação fraudulenta da Constituição. O ensino religioso, de caráter confessional, está previsto na Constituição de 1988, como estava nas que a antecederam, desde a Constituição de 1934. Por mais de setenta anos jamais se entendeu que o ensino religioso nas escolas públicas, ministrado segundo a confissão religiosa do aluno, violava a laicidade do Estado. Entretanto, a dra. Duprat e a Procuradoria Geral da República tentam agora subverter a interpretação da norma constitucional, dando-lhe um sentido que frustra a sua eficácia, de maneira a proibir que as confissões religiosas possam entrar nas escolas públicas. É isso o que está em jogo. Vamos ver se o STF vai engolir esse entendimento inusitado e, com isso, não apenas apagar setenta anos de história, mas também fatiar a liberdade religiosa dos brasileiros, fechando as portas das escolas públicas às confissões religiosas.

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Rodrigo Pedroso

Advogado graduado pela FD/USP. Mestre em filosofia pela FFLCH/USP. Procurador da Universidade de São Paulo. Membro do Centro de Estudos de Direito Natural “José Pedro Galvão de Sousa”.

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