Sim, houve constrangimento: A relativização da culpa e o arcaísmo legal
Tecnicamente, houve muita desinformação da mídia no caso do ejaculador no ônibus. Mas pelo Direito pode-se entender que houve constrangimento.
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Causou celeuma a recente decisão do juiz paulista que liberou, em audiência de custódia, Diego Ferreira de Novais, após este haver ejaculado no pescoço de uma passageira no ônibus. O ponto de maior revolta residiu na expressão utilizada pelo magistrado de que não houvera constrangimento, termo que, por desconhecimento ou má-fé, passou a ser divulgado como insensibilidade do julgador.
A decisão, bem curta, pode ser lida aqui. Nela é evidente que o julgador faz referência ao art. 213 do Código Penal, usando o termo jurídico técnico para alegar que o criminoso não forçou a vítima a praticar um ato sexual, que é bem diferente de dizer que a conduta não causa indignação.
Embora a decisão do magistrado tenha sido técnica e amparada na lei ao entender que se trataria de importunação ofensiva ao pudor, situações como a em voga também admitem uma interpretação diversa no sentido de que se tratou do que a lei atual entende como estupro.
Trata-se de um texto puramente acadêmico, voltado também para os leigos, que considera informações parciais e trabalha com hipóteses, sem conclusões sobre o caso concretamente considerado, no intuito de expandir o debate teórico sobre o tema.
Segundo informações parciais, a vítima estaria adormecida no momento do ataque, e uma mulher que estava sentada ao seu lado disse que o ônibus estava vazio, considerando estranho que o agente infrator tenha ficado de pé, bem próximo, havendo lugar para sentar.
A vítima, portanto, foi selecionada pelo suposto criminoso e, estando sonolenta, sua condição a tornava incapaz de oferecer resistência, configurando ato equiparado a estupro de vulnerável, nos termos do art. 217, §1o do Código Penal, definido este como a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com “ alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.
Ainda que se diga que a intenção do legislador era mais restrita, a lei demanda interpretações cada vez mais conformes à realidade, e se a vítima não está ciente do ato libidinoso com ela praticado, é de rigor reconhecer a situação de abuso, mesmo que ela seja maior e capaz.
Em tese, o criminoso selecionou a vítima especificamente dentro do ônibus, ela era o “objeto” do sua perversão, e seu intento não se limitou ao auto-erotismo da masturbação. A intenção do agente do ilícito era ejacular sobre a mulher, a satisfação de sua lascívia exigia a participação da vítima no ato.
Em outros termos, em tese, a mulher precisava ser vilipendiada, num ato de humilhação e dominância contra sua vontade, caracterizando o proceder típico dos abusadores.
No caso deste tipo penal não se exige a violência ou grave ameaça, ela é presumida diante da inconsciência da vítima e incapacidade de reagir.
Para a caracterização do estupro, a lei entende que, caso a vítima esteja consciente, deve-se constatar o constrangimento, isto é, se ela foi forçada a praticar o ato mediante violência ou grave ameaça.
A violência e a ameaça que habitualmente se espera são aquelas ostensivas, com o uso de armas e gritos. Mas se olvida que a violência não depende só da conduta do agente ofensor, inclui também a personalidade da vítima.
Por que os predadores sexuais optam por atacar mulheres? São vários os motivos, mas podemos condensar grosseiramente na maior capacidade de intimidação do homem sobre a mulher em situações de agressão e a ciência de que são raras as vítimas que reagem.
Os fatos comprovam isso. Os constante abusos nos transportes públicos e ambientes coletivos, como festas, demonstram que o pervertido conta com o medo, a vergonha e a timidez do seu alvo, a incapacidade de reagir e de fazer escândalo.
O medo que as mulheres sentem é real. Não só o temor do roubo, mas também do abuso sexual. O receio de que reagir poderá causar mal mais grave, tudo isso somado a décadas de propaganda que diz que o melhor é deixar o bandido fazer o que der vontade e dar graças a Deus de escapar.
Recorde-se que a testemunha que estava ao lado da vítima ressaltou a estranheza da conduta do agressor em optar permanecer de pé ao lado do banco com tantos lugares vagos.
Para qualquer mulher essa conduta já acende o sinal vermelho de que pode ser vítima de violência.
Em situações tais, em que o agressor encurrala ou impede a livre movimentação da vítima, ainda que em silêncio e discretamente, é nítido que age de forma intimidatória e deve ser considerada como uma ameaça velada a impedir que a vítima escape.
A ameaça é muda, decorrente de sua postura, e, estivesse a vítima consciente no caso concreto, seria evidentemente constrangida, viabilizando a prática do ato libidinoso.
Como dito, a vítima foi selecionada expressamente e fazia parte do ato de violência sexual ejacular sobre ela. O agente infrator precisava da sensação de controle decorrente de mantê-la cativa com sua presença e da humilhação final com a ejaculação.
É ignorar toda a psicologia e comportamento social acreditar que um homem estranho, com uma presença intimidatória, em um transporte coletivo, não possa constranger uma mulher a fazer o que lhe aprouver com uma ameaça muda. Que o digam as diversas mulheres abusadas diariamente nas cidades brasileiras, citando como exemplo a comum divulgação de vídeos de “encoxadas”.
O operador do Direito não pode fechar os olhos aos fatos, e, embora tecnicamente compatível com a interpretação dada até então, parece inadequada em confronto com realidade a tipificação da conduta do agressor como mera importunação ofensiva ao pudor.
Há uma diferença abissal entre ambas as condutas decorrentes de uma análise racional sem retóricas: no estupro a vítima não tem escolha ou alternativa de vontade, enquanto na importunação ofensiva ela pode decidir se permanece ou não no local.
Ademais, o estupro culmina com a satisfação do apetite sexual do predador sobre a vítima, enquanto na importunação ofensiva não é esse o desiderato.
Simples assim: se a vítima não tem liberdade de se esquivar, se o ato satisfaz a concupiscência do agente criminoso valendo-se da vítima como objeto e se há violência ou grave ameaça, há estupro.
Exemplo clássico de importunação é daquele que se masturba em público ou mostra a genitália. Ele não impede a reação da vítima, nem tolhe sua liberdade.
No caso concreto, a vítima foi surpreendida ou intimidada pelo suposto criminoso, que, ato contínuo, retirou seu pênis, masturbou-se e ejaculou sobre a vítima.
Considerando-se a narrativa parcial até o momento e trabalhando no campo hipotético, parece não só possível, como provável, interpretar a conduta do agente infrator como o que a lei define como estupro, seja na sua forma equivalente à de vulnerável, seja na forma simples.
Nisso convém recordar que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em relatoria da Ministra Laurita Vaz, segue na linha de que “o contato físico do Acusado com as vítimas, consistente em passar as mãos nas nádegas e pernas para satisfazer a lascívia, é suficiente para caracterizar o delito de atentado violento ao pudor” (AgRg no AgRg no AREsp 152.704/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 18/06/2013, DJe 01/07/2013), não sendo desclassificado para importunação ofensiva ao pudor.
Julgou-se da mesma forma quando da “prática efetiva contra a vítima, criança de 9 anos de idade à época dos fatos, de atos libidinosos diversos da conjunção carnal ofensivos de sua liberdade sexual, consistentes em tocar suas pernas e barriga e lhe dar beijos com a língua lascivos na boca”, não prosperando “a pretensão do recorrente de desclassificação do delito de atentado violento ao pudor para a contravenção de perturbação da tranquilidade” (AgRg no REsp 1548412/PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 13/10/2015, DJe 03/11/2015).
Dada esta interpretação, é prudente observar que a própria celeuma que o caso gerou e a divergência de entendimentos demonstram que não é uma situação clara e pacífica.
Há inúmeros operadores do Direito que defendem a decisão do juiz como técnica, como de fato o foi, e mereceria um debate de respeito, não uma sucessão de ofensas e ataques pessoais.
É certo que foi a interpretação em conformidade com o que dizem os doutrinadores em seus livros, e que compareceram em peso para reafirmar que ejacular no rosto de alguém contra sua vontade é mera importunação, especialmente porque estamos diante de décadas de doutrinação no sentido de se trabalhar o desencarceramento e a impunidade.
Em um país onde a morte de cem policiais não causa qualquer comoção, é até natural, embora reprovável, que não se repute a conduta do agressor de maneira mais grave.
Diante de um fato de dúbia compreensão, considerando a tendência hermenêutica brasileira de sempre mitigar o impacto da conduta do criminoso, de forma alguma a decisão judicial deve ser tratada como equivocada ou fruto de machismo ou o que seja.
A interpretação acadêmica ora dada neste artigo no sentido de considerar mais grave a conduta do criminoso vai na contramão dos inúmeros manuais de direito, articulistas e messias que sempre defenderam a conduta criminosa como uma malcriação, e não como uma ruptura no tecido social a trazer nefastas consequências, que o digam os vinte e oito mil mortos no primeiro semestre deste ano.
É curioso apontar que a decisão do magistrado, erroneamente ou de má-fé interpretada em especial quanto ao termo “constranger”, virou mais um mote de batalha para alegar que o sistema é misógino e opressor.
Nítido equívoco, porquanto se trata de uma decisão técnica. Primeiro, mister destacar que o próprio Ministério Público, na audiência de custódia, pediu a liberdade do flagranteado. Ou seja, quem futuramente poderá vir a acusar não viu motivos para pedir a manutenção da prisão do flagranteado.
Ainda, é de espantar que pessoas que sempre defenderam o desencarceramento, menos cadeia, o fim da polícia, denunciam a “opressão do sistema”, todas pautas tipicamente vinculadas ao pensamento da esquerda brasileira, venham publicamente alegar que o agente criminoso deveria estar preso, na contramão de toda ideologia que advogam.
Numa sociedade que celebra o relativismo como regra e que faz troça de valores basilares, não deveria causar espanto que condutas asquerosas como a do agente infrator fossem mitigadas, não pelo juiz, mas por todo o sistema posto amparado nas mencionadas ideias de desencarceramento e relativização da gravidade de atos criminosos, lançando a culpa final sobre a sociedade, nunca sobre o criminoso.
Em outras palavras, colhe-se no âmbito institucional os frutos da fragilização de valores sociais e a ausência de um parâmetro seguro e sólido fora do lodaçal doutrinário que se afasta doa realidade e das ciências para albergar desejos e fantasias.
Soma-se a isso tudo que a responsabilidade toda foi lançada sobre o juiz, que só fez aplicar a lei, interpretando-a dentro da normalidade hermenêutica que se estabeleceu no país no sentido de hiperbolizar o direito do agente infrator em detrimento dos direitos da vítima e da sociedade.
É certo que, de modo sumário e grosseiro, este artigo oferece alternativas mais severas de interpretação legal do ato em análise, mas o faz ciente de que não serão poucas as críticas a alegar que seria uma análise “ignorante e fascista”, cujo objetivo era “encarcerar o pobre”, um “malabarismo jurídico” fruto do desconhecimento da doutrina (escrita por eles mesmos), ou até mesmo uma decisão destinada a sustentar o status quo de um sistema opressor.
A regra, o status quo verdadeiro, o cômodo é pensar o contrário e relativizar a conduta do agressor, tomando como paradigma as relações fluidas, e não um arcabouço ético imutável que, em momentos como esse, se mostra norte e farol, mesmo para aqueles que sempre buscam destrui-lo.
Ao se culpar o juiz pela interpretação dada sobre a lei, perde-se a ótima oportunidade de se cobrar dos legisladores, deputados federais e senadores, para que melhorem a qualidade de nossas normas de modo a evitar a perplexidade interpretativa sobre a punição de quem pratica conduta tão abjeta.
Também é a oportunidade de questionar a audiência de custódia, prática introduzida a malho no ordenamento jurídico brasileiro e cujos frutos são bem distantes do que se esperava.
Prova inconteste é que o suposto agente infrator foi preso novamente hoje, dia 2.9, praticando novo ato, desta vez tipificado como importunação ofensiva ao pudor.
É cômodo fazer piquete virtual e esquecer que o material de trabalho do juiz é a lei, uma lei que já é obsoleta e, sempre que alterada, o é em favor do agente criminoso. Exigir dos legisladores, eleitos por voto popular, que cumpram seu papel constitucional e entreguem à sociedade diplomas legais úteis é o mínimo que se deveria esperar de uma situação emblemática como essa, sem deixar de lado a justa crítica que pode e deve ser feita ao Judiciário sempre de forma urbana e racional, no intuito de aprimorar a prestação da jurisdição.
Entender que atitudes como ejacular sobre a vítima, “encoxá-la”, esfregar seu corpo ou suas genitálias seja apenas uma importunação ofensiva ao pudor é dar uma carta branca a toda sorte de práticas de perversão sexual, o que, na prática, fica claro diante das quinze passagens de Diego e agora mais uma hoje, sábado.
As penas de estupro são altas? Sim, são, e devem ser aplicadas, tenha o agente criminoso praticado conjunção carnal, tenha ejaculado sobre a vítima, porque em ambos os casos há subtração de vontade, dominância, violência e humilhação do alvo escolhido, quase na totalidade das vezes mulheres.
O crime de estupro é aviltante para além do físico, porque subtrai toda a humanidade de sua vitima, convertendo-a em um objeto para a satisfação da lascívia do criminoso. Os crimes contra a liberdade sexual causam repulsa porque eles violam o que existe de mais básico no ser humano: ser tratado como fim, não como meio, na concepção de dignidade kantiana.
Na peça Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, no momento em que o personagem título é preso ao Cáucaso está presente uma figura muda, a Violência. Ela não diz nada, está ali apenas.
Isso nos recorda que os atos violentos, inclusive a ameaça, não precisam ser explícitos e rumorosos. A violência pode se manifestar no silêncio, como o pervertido que chega por trás da mulher no transporte coletivo e se aproveita do medo e da vergonha dela para satisfazer seus apetites torpes.
Há tanto estupro nesse ato libidinoso quanto em qualquer conjunção carnal com uma arma apontada para a cabeça. É questão de ver além da doutrinação ideológica e assumir a postura de racionalidade necessária para esses tempos de impunidade e caos.
É preciso mudar o paradigma, mas não só para os crimes que estão na cartilha da militância, e sim para toda e qualquer prática que venha a romper o contrato social.
A impunidade gera monstros, e isso vale para qualquer condição social, gênero, origem ou sexualidade.
A quem diz que a pena é alta para uma “simples ejaculada”, eu já penso que é na medida para quem faz do outro objeto e sobre ele despeja a imundície de sua alma.
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