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Guilty pleasure

Sim, os Beatles eram analfabetos musicais

Os reis do "iê-iê-iê" podem ser queridos, mas são exatamente o fenômeno da música de massas comercial: muito mais marketing do que arte

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Graças a Olavo de Carvalho, o analfabetismo musical dos Beatles está em discussão no Brasil. “Mas os Beatles revolucionaram a música e são a maior banda de pop até hoje!” Então, como tive essa discussão a vida inteira, vamos lá: Beatles, que são antes fruto da indústria cultural do que 4 seres com alguma personalidade (foram ter isso uma década depois de acabarem, e todos só pensaram besteira), foram só 4 adolescentes com corte tigelinha que cantavam iê-iê-iê. Desde pelo menos o fim da Primeira Guerra, que começou com Stravinsky e terminou com jazz dixieland, a qualidade técnica musical apenas caiu.

Aliás, se você se acha conhecedor de Adorno, deveria saber que ele odiava jazz exatamente por isso, mas enfim, você é o típico universitário que se acha pica por tentar ler 4 páginas de Escola de Frankfurt na faculdade e ouve Chico Buarque como um “gênio” sem perceber a contradição.

Houve uma época em que Mozart era ouvido não só pelas altas cortes austríacas. Aliás, grandes nomes da música erudita (notou a nomenclatura?) tiram sua inspiração de canções populares: Berlioz, Chopin (e suas mazurcas), Dvořák e tantos outros.

Música popular é uma coisa. Música INDUSTRIAL é outra (e, neste aspecto, algumas críticas da Escola de Frankfurt são simplesmente geniais). São água e óleo: não convivem de jeito nenhum. A música popular, não raro, é riquíssima e até mesmo dificílima (tente tocar uma viola caipira ou um acordeão pra ver).

Sabe a diferença entre Tonico e Tinoco e sertanejo universitário? Notou um salto qualitativo entre Anitta e um baião, se os dois são feitos pra dançar? Já ouviu uma música de batalha irlandesa (que ao invés de apenas reclamar da pobreza, tem de reclamar de guerra e destruição cultural estrangeira) pra depois ouvir Racionais MC’s?

Então. É a diferença entre música popular e música comercial. Uma feita pelo povo. Outra, por agentes culturais (que nada entendem de cultura) para vender. E venda, Platão já sabia na República (lembra do lance de expulsar os poetas da cidade?), funciona por hipnose. Por confusão entre som e sentido. Beatles tem a ver com livro de marketing e vendas, não com escala menor harmônica.

John Lennon e Yoko Ono nus

Agora com vocês, o mangalho de João Lenão com os peitos de Yoko Ono já caídos há 40 anos

Então, óbvio que Beatles “revolucionaram a música”: até mesmo no jazz você tinha de estudar música por uns 5 anos antes de alguém gastar preciosos 10 segundos te ouvindo arranhar um instrumento. Pós-Beatles, aprenda a fazer 3 acordes simples maiores, diga “She loves you, yeah, yeah, yeah” e coma um monte de gente.

Por isso são “a maior banda”: a suposta “pioneira” (como se fosse obra deles próprios) em tocar em rádio algo simples e hipnótico. Você ouve música do Beatles uma vez na vida (“Help! I need somebody, help!”) e já decorou a música e a letra pro resto da vida. Tente fazer o mesmo com o trecho da Nona Sinfonia citando Schiller pra sentir o tranco. Qual vai ser a “maior banda do mundo” numa era de massas?

Sinto muito aos rockeirinhos, mas Beatles são “grandes” pelo mesmo fator que te faz saber a letra completa de cada pagode que ouviu na vida pegando lotação, de cada funk carioca mais estultificante do que lavagem cerebral, de cada sertanejo universitário que toca em festinha de gente que fala “rolê” e vai se sentir “cientista” na segunda-feira, de cada hip hop que se tornou o gênero mais ouvido no mundo hoje (alguém do hip hop sabe, ehrr, cantar?). Porque é simples. Porque uma criança sabe reproduzir. Porque gruda no seu cérebro.

Agora tente lembrar a letra daquela música que você adora que tem 2 solos sensacionais e não tem refrão. Sentiu? E olha que é uma música que você gosta mais do que “Como é que uma coisa assim machuca tanto / E toma conta de todo o meu ser?”

Agora você entende o lance de Platão expulsando poetas (e olha que o da época dele era Homero). Agora você entendeu algo de Adorno (e olha que ele acha jazz coisa da „Kulturindustrie“, e foi chamado de “esquerda ballantine” por ter uma visão “aristocrática” de que o proletário não teria mesmo meios de obter cultura, graças à “alienação da mercadoria” do capitalismo). Agora você entende por que tem a letra de “Faroeste Caboclo” inteira de cor, mas não consegue decorar nem mais do que uma estrofe clichê de Fernando Pessoa.

Ludmilla com Fátima BernardesNenhum grande músico hoje vai ter o público de um rapper falando de sexo 9 da manhã no programa da Fátima Bernardes. Isso é “indústria cultural”. Isso é a distância entre um Projota e um Carl Orff (95% de Carmina Burana são só releituras com instrumentos eruditos de canções populares latinas/alemãs). Adivinhe qual vende mais? Por qual o povão de hoje, apartado de sua própria música popular, se interessa? (aliás, este é o tema cultural fundamental do século XXI – quem possui talento para a coisa pode conseguir avançar muito a nossa inteligência o estudando)

Adicione a isso o fato de que 98% do seu gosto musical diz respeito a memórias de infância, e só 2% são ocupados por algum “bom gosto” adquirido com estudo (quem estuda música por aí?) e está explicado o fenômeno Beatles.

Claro, música “alienante” pode ser agradável, e é o pecado original de todos que nasceram a partir do século XX.

Ou mesmo a música “ouvida por todos” pode ter uma qualidade absurda. Pense numa música extremamente simples: a batida de We Will Rock You, do Queen: a platéia inteira, sem esforço algum, “tocava” junto com a música. Mas ela tem um sentido que muita música absurdamente mais complexa nunca conseguiria ter: antes mesmo de se ver a letra, já se sabe que é agressiva, que indica perigo e atenção (parece até o viking clap da torcida da Islândia nos estádios), que imita as batidas do coração durante uma briga de rua, adicionada a uma forte terça acentuada (coração não faz isso). Fora que tem a voz extremamente técnica de Freddy Mercury e um maravilhoso solo de Brian May (por sinal, astrofísico).

Entre os fãs de metal industrial (!), basta-se pensar no sucesso de Rammstein: dificilmente seus “acordes” exigem mais do que um dedo na guitarra, e fazem sucesso entre estudantes de alemão por músicas com refrões como “Du hast mich” (“você me tem”, embora tenha a mesma pronúncia de “você me odeia”) ou “Links 2, 3, 4” (“Esquerda volver, 2, 3, 4). Pode ser “legal”. Dificilmente alguém pode dizer que é o cúmulo da inteligência.

https://vimeo.com/216521548

E simplicidade também não significa necessariamente falta de qualidade, óbvio. Pense na música do filme Tubarão: a tensão que ela provoca é surreal. Seu principal momento é simplesmente o intervalo entre Mi e Fá (o intervalo mais tenso da escala ocidental) repetido cada vez mais alto. Nem um acorde, apenas um dedo mudando meio tom. Bum! Uma música absolutamente genial.

Trocando de arte, na literatura há autores facílimos de se ler. Franz Kafka chega a escrever um livro com pouco mais de 300 palavras se repetindo num pesadelo labiríntico. É exatamente sua intenção: quer imitar o efeito no pensamento da burocracia moderna, do Estado totalitário e do trabalho repetitivo. Ernest Hemingway, em O Velho e o Mar, conta uma belíssima e profunda lição de vida apenas narrando um velho que vai pescar e quase não fala nada.

Mas é o que se chama em crítica de arte de algo motivado. Há uma intenção ali. Como T. S. Eliot, que escreve o dramático monólogo interior The Love Song of J. Alfred Prufrock aparentemente com metrificação “torta”, mas está usando a metrificação francesa em língua inglesa. Não é como Cazuza tentando rimar “suas idéias não correspondem aos fatos” com “sua piscina está cheia de ratos”. O expressionismo também é simples tecnicamente. Ninguém poderia chamá-lo de simplório.

Beatles Ye Ye YeO problema com os Beatles é que não é uma música pensada. Aliás, seu sucesso se deve única e exclusivamente a isso: é uma música feita para ser consumida sem filtro pela inteligência. Sei que muitos têm grandes memórias de infância com Beatles, ou com MPB (que não é popular, é industrial), com Los Hermanos ou Spice Girls, com Nirvana ou Marisa Monte. São todos produtos do mesmo fenômeno.

Podemos gostar: não são exatamente alguma música bem arquitetada, com sutilezas, com um ímpeto unindo razão e emoção, com algum elemento daquilo que chamamos de arte. E adivinha quais deles são “a voz dos artistas” em assuntos políticos (ou na Casa dos Artistas) que são ouvidos pelo que é chamado muy corretamente de show business? Os “incentivos fiscais” vão sobretudo para os bolsos dos reprodutores de música industrializada. E aí, lembramos novamente de Platão.

Tal como carros saem da linha de produção fordista, é como a música foi feita, sobretudo a partir dos Beatles. “Os meninos de Liverpool” foram a cara (literalmente) de uma música em que o produtor (o analisador de modinhas) conta mais do que os próprios músicos, que, de fato, mal sabiam tocar qualquer coisa. É famosa a expressão “Quinto Beatle” para designar produtores e músicos de estúdio que carregavam o piano enquanto os Beatles rebolavam. Essa é a grande “revolução” da beatlemania.

RamonesMesmo internamente na cultura de massas, há fluxos e refluxos das modinhas. Houve o punk, que praticamente negava a música (Sid Vicious só carregava o baixo desligado no palco, tendo como grande função dar uns berros de backing vocal ocasionais). Mesmo dentro do punk, o Ramones já mostrava mais o desejo de se divertir – e até teve um membro até hoje Republicano ortodoxo, além da aversão geral da banda a comunistas. Beatles e sua música simplória foi só um punk que deu certo. Afinal, o punk era agressivo e colocava os filhos contra os pais. Beatles é ouvido pela família inteira, que nem percebe que a banda faz louvor ao satanismo de Aleister Crowley (o mesmo com o nosso Raul Seixas).

Já o rock progressivo de fins dos anos 60 e, sobretudo, anos 70 pegou a energia do rock (e 95% da graça do rock está na energia, e não na melodia) e elevaram os patamares técnicos ao ponto do, literalmente, intocável (The Who, Yes, Pink Floyd ou ainda extremos como King Crimson, Focus e Emerson, Lake & Palmer).

Já nos anos 90, eclodiu o grunge em Seattle: bandas simples, cantores que não disfarçavam o carregadíssimo sotaque local (você consegue entender Pearl Jam sem ler as letras?), mais “atitude” do que música (energia, afinal). A moda era anti-moda: tocar com as roupas de flanela usada pelo avô típicas da fria cidade, uma calça jeans surrada e tênis caindo aos pedaços. Ao mesmo tempo, mesmo dentro da Kulturindustrie, surgia o Guns ‘n’ Roses, a banda de rock mais anti-moda dos anos 90: músicas longas, um guitarrista que valia por 20, pegadas de blues, algum esmero técnico, longos solos tocados no rádio (apesar de igualmente viciado em drogas). O rock mais refinado, afinal, não estava morto: e ambos, grunge e Guns, eram “rock de menininha” pelos vocalistas bonitinhos e meio afeminados.

Nada precisa ser técnico como Paganini para ser bom (talvez a maior parte dos músicos eruditos o considerem mais técnico do que músico) nem tão complexo quanto Pierre Boulez (às vezes tão difícil de tocar quanto se é de ouvir). A questão é que Beatles não é “a melhor banda do mundo”, hiper influente, que todos invejam (afinal, são mais famosos do que Jesus Cristo) e todos os que vendem menos são inferiores. Pelo contrário: são justamente o auge do fenômeno da indústria cultural. Que, até a Escola de Frankfurt, era sinônimo de alienação nos rincões marxistas e, hoje, são a linha de frente do progressismo. Ou estariam todos falando sobre Amazônia sem Anitta rebolando contra o incêndio?

Há objetividade em se dizer que a Nona Sinfonia de Beethoven é uma boa música. Não há em se falar dos Beatles. Ou de MPB. Ou do heavy metal. Ou do pop dos anos 90. Ou mesmo do blues. Nós todos temos nossos guilty pleasures. Mas não é porque há uma indústria que perpetua os Beatles que eles ganham valor além do comercial.

Os Beatles podem até ter melhorado com o passar do tempo (se tivessem tentado tocar She Loves You depois de 10 anos, hoje seriam lembrados da mesma forma que o Baba Cósmica ou A Banda Mais Bonita da Cidade). Colocaram até algum significado musical em um riff ou outro (não é preciso ler a letra de Something para perceber, só pelo riff inicial de guitarra, que é uma música triste).

Mas são músicas simplórias, sem apuro, sem estudo, que em 6 meses de estudo sério de um instrumento já são dominadas de ponta a ponta de sua carreira. Toda a sua “influência” é isso: nostalgia chic e um grande fenômeno de marketing. Além de ser mais impositiva justamente onde os fãs de Beatles mais odiariam reconhecê-la. Ou mera influência de estúdios, como a idéia, na época, de gravar quatro canais, colocá-los todos em um primeiro canal e ter, ainda, mais três canais a disposição, para se gravar sucessivamente mais do que a tecnologia da época permitia.

Os Beatles são música massa. Usar sua influência sobre as massas como argumento para algo além de prová-los como fenômeno de massa é o maior contrassenso possível.

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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