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Banheiro químico

Quem foi o corno que inventou que São Paulo precisa de Carnaval?

Nossa cidade sempre foi cinzenta, sem samba e aproveitávamos o feriado para não sermos assaltados. Quem escangalhou tudo e nos fez enfrentar “bloquinhos” para sobreviver?!

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Carnaval em São Paulo

São Paulo era chamada de “túmulo do samba” em tom jocoso. Por aqui, era motivo de orgulho: nunca vi alguém choramingando por São Paulo ter pouco samba (ninguém chama essa cidade de “Sampa” ou de “Paulicéia”, só livro de retardado). Vivíamos bem sem música ruim, obrigado. Carnaval era aquilo que gringo achava que existia no Brasil, como cipó, malária e girafa – e nós, paulistanos, “rachávamos o bico” da ignorância.

Até que alguém que não recebeu abraço dos pais na infância resolveu mudar isso. Pela cidade, só se ouve música de terreiro. Pelas ruas, antes livres de trânsito para que pudéssemos finalmente conhecer os pontos turísticos de São Paulo – sim, os há – cavaletes da CET impedindo a liberdade de ir e vir para transformar quarteirões em muvucas onde você encosta num poste e engravida. Pelas calçadas, ao invés de seres humanos, foliões com roupas de traficantes – não sei nem como identificam os traficantes de verdade.

São Paulo foi desfigurada. Por que ninguém tenta desfigurar o Rio de Janeiro? Sei lá, trocar sua trilha sonora típica por blues. Ou introduzir a culinária italiana em Salvador. Ou ainda melhor, transformar Brasília em um gigantesco pesque-e-pague? Por que só São Paulo, e, pior, com a conivência, ou melhor, com o desejo explícito dos palermas que foram alçados a prefeitos de nossa megalópole? Somos ratinhos de laboratório, por acaso?

São Paulo sempre foi cinzenta. É um dever como pseudo-civilizados de nossos prefeitos mantê-la tradicionalmente cinzenta. Friamente cinzenta. Opacamente cinzenta. Viu alguma coisa colorida por aí? Pode tratando de pintar de cinza. Se quer colorido, já tem o Recife – e beco de pichação na Vila Madalena (mas Vila Madalena não é São Paulo, é como se fosse um Vaticano do mal dentro de Roma). Somos a irmã mais velha de Sorocaba, não a boneca do jardim de infância de Bombaim.

Se o Rio de Janeiro tem o direito de exportar Rede Globo e MPB, temos o direito de sermos apressados e mal humorados (se manca, Curitiba: você nunca pegou trem indo pra Calmon Viana 6 horas da tarde). Antigamente ainda tínhamos o charme da garoa pra combinar com nossa melancólica eficiência. Agora, tem ainda mais gente, um calor de fritar os ovos do saco e, pra zoar o coreto, tem Carnaval. Mau humor exige música melhor.

Paulistanos nem sabem nome de escolas de samba – fenômeno geneticamente carioca. Aqui tem uma tal de Vai-Vai, parece que também tem uma Mocidade, duas de time de futebol e as outras (sabe o que acontece no Sambódromo aqui? nem nós; nunca fomos).

Sempre entendemos o Carnaval como uma época do ano em que os maloqueiros caíam fora da cidade e finalmente tínhamos um pouco da cidade para nós – para conseguir andar sem ser assaltado. Para ir do Tremembé ao Ibirapuera em menos de meia hora (valeu por foder nossa alegria de pobre, Haddad). Para ouvir um som porrada, já que quem gosta de trilha sonora de benzedeira, bicheiro e traficante tinha pegado a estrada – no mínimo para Peruíbe, com sorte para algum lugar que chia o s. Até para ver uma exposição ou ouvir um concerto – afinal, nos outros dias do ano trabalhamos e tal. Vida de paulistano já tem algo de Quaresma. Carnaval em São Paulo sempre significou ficar sozinho. Ficar sozinho é maravilhoso.

Mas não. Algum animal de teta inventou que os maloqueiros precisam ficar aqui, não lá longe. Precisamos ficar ouvindo batidas de surubas de orangotangos no meio das nossas ruas. E não podemos andar dois quarteirões sem aparecer um tal de “bloquinho” com um monte de gente depressiva escapando da miséria de sua vida usando plástico colorido e achando que é possível curar vazio existencial e falta de amigos com a companhia de um bando de retardado drogado.

Em um “bloquinho”. Que porra é “bloquinho”, parceiro? É assim que chamam “arrastão” na terra que fala bolacha, lombada e causar? Aqui é só pra anotar a compra do mercado, meu.

Ao invés de cinza e garoa, temos Carnaval. E Carnaval é mijo, música de terreiro, camisinha usada voando, mijo, pseudo-felicidade de gente sem propósito na vida, AIDS, mijo, celular roubado, sexo em banheiro químico, leptospirose, mijo, show de trans (ocasionalmente com mijo), trânsito pior que de Bangladesh, jovem gritando, mijo, periguete que ouve funk, cerveja quente a R$ 20 (com gosto de mijo), mijo, cheiro de cecê, abadá (isso não é nem uma palavra, caralho), mijo, mongolóide com fantasia de Bozo, feminista pernóstica problematizando fantasia (é fantasia, sua retardada!! faz-de-conta, mentirinha, fake news, dia de folia e o caralho), crack, mijo e não ter onde cagar. A coisa tá tão foda que até com índia do Baixo Augusta você pode cruzar.

Quem foi o corno que ao invés de administrar São Paulo, resolveu transformá-la num gigantesco banheiro químico coletivo sem descarga?

Tem que proibir o Carnaval, a começar por São Paulo. E pintar a cidade inteira de cinza-concreto. Quer colorido, vai assistir Power Rangers.

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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