Contra o golpe no MasterChef!
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Você pode ser coxinha ou mortadela, pró-Bolsonaro ou pró-Jean Wyllys, time frutas cristalizadas ou time chocolate, corintiano ou ter ficha criminal limpa, numa coisa todos concordamos: a vitória moral do MasterChef passado é da chinesa Jiang. Metade dos espectadores nem lembra do nome da vencedora.
Tal se dá por uma obviedade: Jiang cativou o público pela fofurice, mas também era excelente cozinheira. Grandes mestres do carisma como Mohammad ou Cecília, do primeiro MasterChef, também eram excelentes cozinheiros, mas perderam por seus erros.
Jiang foi eliminada por entregar algo a mais, não exatamente por um erro. Já Izabel, a vencedora, quase foi eliminada na prova de entrada, foi eliminada no meio do programa e voltou por um pouco convincente processo de repescagem.
Não é preciso de um 7 x 1 para entender quem é o melhor, mas uma derrota por um deslize comparada a seguidas “quase eliminações” que acabam vencendo no final são também óbvias ao brasileiro, acostumado a comparar Ayrton Senna com Alain Prost e Michael Schumacher.
Trata-se da diferença entre ser o melhor e ganhar. Qualquer um sabe identificá-la. Você pode ser o melhor em tudo e perder um jogo em que está mal preparado, alguém pode ficar sempre no 1 x 0 e ainda ganhar a final.
Tudo ia bem na nova temporada do MasterChef, um programa de todo justo, até o último episódio. A prova mais difícil do programa surgiu sem aviso: fazer macarons, dificílima iguaria francesa, espécie de suspiro recheado com merengue que exige uma delicadeza absoluta para formar algo crocante por fora e levemente úmido por dentro.
A prova já é discutível por si: é preciso ser um bom confeiteiro para ser um bom cozinheiro? Pensando até mesmo nos maiores nomes da culinária mundial, é difícil encontrar alguém que tenha se destacado verdadeiramente nas duas áreas. Vários livros elencam vários tipos díspares e mesmo opostos de cozinheiros, mas sempre os confeiteiros são colocados em outro quadro a ser analisado, possuindo muito pouco em comum com os cozinheiros do que, ehrr, a cozinha.
Confeiteiros e cozinheiros são quase alienígenas um para os outros em diversos aspectos. Vide o que diz Jeff Potter, em Cozinha Geek: Ciência Real, Ótimos Truques e Boa Comida:
A culinária também possui divisões. A maior delas no contexto profissional é a de cozinheiro versus confeiteiros. Os cozinheiros têm a reputação de serem intuitivos, com uma abordagem de “jogar na panela”, adicionando um pouco disso ou uma pitada daquilo para “correção” ao longo do caminho. Os confeiteiros são tão estereotipados como precisos, exatos em suas medidas e metodicamente organizados.
Parece pouco? O melhor é a continuação do parágrafo:
Até escolas de culinária como a Le Cordon Bleu dividem seu programa em culinária “cuisine” e confeitaria “patisserie”. Mas isso provavelmente se deve às diferenças nas técnicas e nas execuções. A culinária é dividida em duas etapas: o trabalho de preparação e a parte imediata de chefs de linha. As massas e a confeitaria são feitas quase sempre em estilo de produção, feitas antes de o pedido chegar.
Para um programa que tem como um dos prêmios justamente um curso na Le Cordon Bleu, chega a ser um pouco de mau gosto a idéia de exigir confeitaria de quem certamente irá fazer um curso de culinária “cuisine”. De fato, é de se apostar que se os próprios jurados fossem preparar doces, certamente iriam bem melhor do que a média, mas não há muito o que garanta que fariam os melhores doces dificílimos no susto como fariam com ingredientes de culinária.
Não é mero detalhe. Num programa de culinária, é bem provável que o melhor e mais preparado e estudado concorrente nunca faça um bolo na vida. Grandes chefs de cozinha tarimbadíssimos e ultra badalados não costumam senão apresentar uma ou outra sobremesa própria em seus restaurantes. Jeff Potter explica o porquê algumas páginas depois:
Na culinária, faz diferença se um ovo tem um pouco mais do composto lecitina do que outro ovo, ou que uma cebola tem um pouco mais de água do que a outra? Provavelmente não. Mas, na confeitaria, as tolerâncias ao erro são menores do que na culinária. Há pouca diferença entre água suficiente para unir uma massa e água demais, fazendo com que a massa fique muito molhada e seque quando for assada.
Ora, não se trata de um grau avançadíssimo de culinária, mas de outra coisa. Alguém pode ser cirurgicamente específico na culinária sem ser muito bom na confeitaria. O próprio Carlos Bertolazzi, do concorrente Hell’s Kitchen, afirma ter “duas mãos esquerdas” para bolo.
Os próprios jurados do MasterChef adoram exigir habilidades de cozinheiros bem pouco afeitas à confeitaria, como saber corrigir erros, instinto, entrega em prazos curtíssimos. Diga-se, 95% da “receita” para o programa é exigir que cozinheiros façam o que sempre fazem, mas num prazo extremamente restrito e voilà. A confeitaria, obviamente que à parte as limitações logísticas, não funciona da mesma forma.
Isto já seria um problema por si. Mas foi só a porteira de algo muito maior: a injustiça na eliminação.
O MasterChef é um programa bastante justo, no geral. Ao menos, garante-se que há notas numéricas (num sistema desconhecido do público) dadas pelos jurados para os critérios de desempate.
Nem sempre tais critérios conseguem ser aplicados a rigor às provas, que devem ser exigentes, deixando os concorrentes em situações improváveis. Afinal, quem precisa aprender a cozinhar tucupi para ser necessariamente um grande cozinheiro? É bem provável que um grande chef nunca use a iguaria e nem saiba fazer algo bom com ela.
Mas talvez a primeira grande prova “injusta” até então havia sido uma realizada no Museu do Ipiranga na segunda temporada – a emblemática prova do food truck. Ao menos, não era uma prova eliminatória. Em três grupos, três food trucks foram formados para apresentar três tipos de comida típica da comida de rua: o hambúrguer (americano), o burrito (mexicano) e o fish and chips (inglês).
O grupo do fish and chips, sem grandes spoilers para quem não acompanhou, ficou com menos nota pelo público. Foi a pior comida? É impossível dizer sem experimentá-la, mas o brasileiro está plenamente acostumado a comer hambúrguer, raríssimos comeram burritos e fish and chips… bem, na melhor cidade para se comer do mundo, com mais variedade do que Londres ou Nova York, conheço um lugar que serve a comida típica de pubs ingleses. O fish and chips original, diga-se, é feito com bacalhau, peixe de águas gélidas que só consegue chegar ao Brasil congelado, e não como é servido na Inglaterra.
Será estragar muito a surpresa dizer que o hambúrguer ganhou?
Há provas, então, que medem muito mais a capacidade de inventar algo, contando mais com a sorte e com alguma boa idéia amalucada que acabe dando certo em sua materialização, do que como provas para um cozinheiro de verdade. Cozinhar bem parece até o último fator entre vários necessários para passar de certas provas (nem falemos da fase amazônica do programa).
Foi o que aconteceu com os macarons. Um doce já difícil para qualquer confeiteiro. Foi nítido ver o único caso do programa em que simplesmente todos os participantes estavam no limiar do desespero.
A engenheira química Gabriella Palinkas foi a última a tirar os pratos do forno, por não querer entregá-los sem consistência. E foi seu erro: não pode usar corantes e, pela “regra da prova”, foi eliminada tão somente por isso, mesmo fazendo três macarons que caíram no gosto dos jurados.
Poder-se-ia dizer que foi questão de regras, mas é onde surge o problema. Na temporada passada, quando da eliminação de Marcos Baldassari, que, concorrendo com Lucas, entregou um suflê que ficou cru – virou “um creme” – enquanto seu colega entregou um suflê “horrível”, mas que “era um suflê”. Por conta disso, Lucas foi adiante novamente por um triz, Marcos foi eliminado. Regra clara, até Marcos afirmou que foi justa na saída.
Já nesta temporada, vimos logo de cara uma falha grave nisto. Numa prova para entregar um bolo em três camadas, o participante Leonardo, para se safar de ter feito uma das camadas pouco apetitosa, simplesmente limou metade do bolo e o entregou com apenas um recheio. Algo que “não era a prova”. E passou.
O público fica atônico não apenas com as regras sendo banidas, mas quando as regras não são claras. Quando os juízes podem dizer uma coisa num dia, e outra coisa no dia seguinte. É o mesmo que acontece com esportes, com a justiça, com a política – com a vida. Não se trata de algo banal – a justiça nunca é banal, e os comportamentos e modelos de grande apelo popular serão os paradigmas de nossa vida mais “séria”.
José Ortega y Gasset, um dos grandes filósofos políticos do século XX e fã de futebol, no ensaio Sobre El origen deportivo del Estado, mostra que ao contrário do que se pensa, não foi a seriedade da vida política que foi adaptada para os esportes, mas justamente o contrário: a busca de regras claras, limites de possibilidades de atuação e comportamento para as atividades lúdicas que posteriormente deu azo para a sua aplicação e esquematização nas regras do Estado. Foram regras colocadas por homens sobre como roubar mulheres de tribos vizinhas que deram os primeiros passos da civilização – visão compartilhada por seu amigo, o igualmente obrigatório filósofo holandês Johan Huizinga, autor do clássico Homo Ludens, que analisa o papel dos jogos na formação da civilização.
A jovem Gabriella Palinkas acabou sendo vítima justamente das regras pouco claras, hoje tão em voga em nossa pública, como na defesa apaixonada de políticos per fas et per nefas como se fossem times de futebol, que não precisam de argumentos para serem defendidos. Sem um paradigma, ficamos sem ter como agir: se vale mais “entregar algo cujo gosto vai valer mais do que a apresentação” ou se é mais importante seguir a regra burocrática e entregar uma comida ruim, mas “nas regras”.
Sem o paradigma de atuação (aquilo que as narrativas mitológicas faziam por analogia com muito mais talento do que a invenção das Constituições), não há como saber como agir, e ficamos nas mãos dos caprichos até mesmo de pessoas justas.
Não foi à toa, portanto, que a eliminação de Gabriella foi talvez a primeira do programa a ser considerada injusta. A diferença entre ser a melhor e vencer já era gritante – a diferença entre agir com justiça e seguir a regra ficou ainda mais gritante (ver o mito de Antígona para se analisar tal cisma in limine). Por isso fica ainda mais chocante sua bela atitude ao falar com a concorrente Gleice ao entregar o avental: “Eu saí daqui para você ficar”. Um comportamento a se admirar – o que não ocorre com as regras do programa, que não foram admiráveis. No dizer de J. P. Sartre, “amamos uma mulher porque ela é a amável“.
Algo que serve para nosso comportamento em diversas situações aparentemente mais “sérias” do que um programa de TV, que só afetaria “de verdade” os participantes. Contudo, como sempre reafirmamos, a narrativa dos fatos, até em nossa era tecnológica, ainda é mais importante até do que as leis.
São modelos de comportamento em algo de grande audiência que definem o que será o certo e o errado, o permitido e o proibido, o desculpado e o imperdoável, para nosso futuro. É esta narrativa que gera nossa política, nossa moral, nossos costumes, nossos símbolos de união – e não o contrário. Ortega y Gasset sempre soube do que falava, ou não seria o filósofo mais difícil de se discordar em todo o século passado.
Nossos sentimentos à Gabriella Palinkas, que mostrou estar muito à frente da posição que o programa iniquamente lhe legou – e que finalmente haja uma prova de repescagem que desfaça a injustiça, para que esta monstruosidade repescativa possa ser a grande eliminada do próximo MasterChef.
#FicaGabriella!
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