Nobel para Bob Dylan é um prêmio “tiozão do pavê”
Dar um Nobel de Literatura a um cantor pop parece uma revolução, mas é apenas uma tentativa de velhos parecerem descolados fora de época.
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Para aquela abençoada aristocracia de 1% da população que sabe que literatura manda na política, e não o contrário (os outros 99% são governados pelos primeiros), o Prêmio Nobel de Literatura para o cantor Bob Dylan foi talvez o mais polêmico de todos os tempos.
Ou quase. Antes de Bob Dylan, o Nobel já teve umas boas polêmicas, desde a época de Jean-Paul Sartre recusando o prêmio, ou do pequeno problema duplo em relação a escritores soviéticos: ou eram forçados a recusar o prêmio, como o gigante Boris Pasternak, que consegue fazer uma crítica política fortíssima apenas com uma bela história de amor, ou acabavam tendo o prêmio como salvação, como Aleksandr Solzhenitsyn e seus samizdat, que provavelmente teria sido assassinado pelas autoridades socialistas se não tivesse recebido o Prêmio.
Tal como o Nobel da Paz, o Nobel de Literatura também é envolto em muita polêmica para quem o acompanha, apesar de todo o frisson que causa na mídia. Os entusiastas das área (já que é difícil definir quem seria profissional da Literatura, com L maiúsculo) sempre mantiveram suas ressalvas.
É famoso na literatura alemã, por exemplo, a quizomba em torno do Prêmio a Elfriede Jelinek em 2004. A escritora austríaca ficou famosa com o livro A pianista, que no cinema virou A professora de piano. Espécie de E. L. James para acadêmicas chics, todos os livros de Jelinek abusam da fórmula gasta dos romances de banheiro tipo Júlia, Sabrina ou afins: mulher oprimida por uma sociedade que não permite que ela tenha prazer sexual com quem bem entender, e que se “liberta” em cenas de sexo cada vez mais selvagens, com uma narrativa que dificilmente consegue terminar uma frase sem algum foco narrativo entortado à toa ou uma palavrinha ideológica.
Como se não bastasse o único Nobel de Literatura a um escritor de língua portuguesa seis anos antes, o José Saramago que, ao contrário do Brasil, é um escritor extremamente dividido em Portugal – metade do país o considera uma farsa, preferindo seu arqui-rival António Lobo Antunes. Enquanto os leitores de manchete se contentam em crer que a Academia sueca morreu de amores por Saramago, um ano antes fora “O Ano de Portugal na Suécia”, com distribuição às mancheias de obras de Saramago por todo o país – e em especial para a Academia – com visitações e um desespero do Ministério do Exterior português por um Nobel do país ibérico.
As Relações Públicas, claro, mandam na opinião pública, que depois acredita ser protagonista de um destino do qual é paciente. O crítico literário Knut Ahnlund, que já havia denunciado toda a fanfarronice quando do prêmio a Saramago, que muito pouco teve a ver com seus supostos brios literários, não agüentou quando o prêmio foi dado a Elfriede Jelinek, declarando que a maioria da Academia nem sequer lê os livros dos autores que premia.
São questões só conhecidas por entusiastas e pesquisadores de Literatura. Já o Nobel dado em 2016 para o cantor Bob Dylan é questão mundial, para não-especialistas, já desde a manchete. Bob Dylan, o cantor de rock, aquele de Like a Rolling Stone, simplesmente nobelizado na cara da sociedade.
Não é apenas uma mudança de categoria de polêmica – afinal, nenhum grande músico antes havia recebido o Nobel. E não é como um Nobel de Literatura para Richard Wagner, que escrevia os próprios libretos de suas óperas: é um compositor pop, de repente.
Muito pode ser aventado sobre o quanto Bob Dylan é um grande compositor (o que não significa que seja um poeta ou escritor, como um grande enfermeiro não é nem um pequeno médico). É o vezo brasileiro de tratar um “grande” compositor (tomando por “grande” alguém com um grande público) como se fosse um poeta. É do que chamam Chico Buarque e Renato Russo. Bob Dylan, ao que parece, está muito acima destes. Ainda assim, parece que pouco justifica o seu Nobel.
No mundo do relativismo, os conceitos estanques são a espécie mais ameaçada de extinção. Se no reino político o exemplo é mais chocante (pense que, hoje, qualquer coisa pode ser chamada de “fascista”, exceto o fascismo), foi nas artes, os símbolos de compreensão da realidade, que tudo começou. Desde o modernismo, em que qualquer coisa poderia ser arte plástica, poesia, música ou o que quer que fosse, não temos mais alguém preocupado em ser Goethe, Shakespeare ou Blake: o que importa é testar os limites dos conceitos, até estarmos falando apenas uma única palavra sem membranas que a separem de outro conceito.
A manobra começou no conceito, no significado. Hoje, também passa para a forma. Afinal, um Nobel de Literatura pode ser dado para alguém que não produz literatura?
Se querem tanto esgarçar o conceito, para que logo qualquer coisa possa ser laureada, a primeira conseqüência é que quem produz literatura de verdade, e quem ganhou um Nobel, sofre a primeira derrota. Como levar a sério um Nobel de Literatura, se estará ombreado com um músico?
O segundo é que o prêmio foi o mais pretensioso de todos os tempos. Aquela polêmica planejada, onde podemos ver a academia sueca acordando cedíssimo, com semi-sorriso antes de chegar à sala e ver a reação dos jornais.
O problema da polêmica planejada é que ela é extremamente artificial. Não é exatamente um movimento que convence o público, ainda mais porque o modernismo começou antes de nossas avós ou bisavós terem nascido.
Bem, Bob Dylan? Ele é o músico mais chocante, “poético”, reconstrucionista, revolucionário, neocriador, desbravador ou alguma coisa cheia de prefixos dos últimos tempos? Não, e isso é muito sério para um polêmica que pretendia ser super polêmica. Não se trata de entrar no mérito de suas canções, às quais conheço muito pouco (e você também não entende nada de Georg Trakl, Kalevala ou os Aitia de Calímaco, então baixe a bola aí nos comentários antes de sacar a metralhadora giratória de diarréia acusatória): trata-se de perceber que o lugar dele não é ali, nem como “o músico”, o primeiro, o único, o arauto, o tocador da trombeta.
O problema não é nobelizarem alguém impensável: o problema é escolherem um cara anódino, mais do mesmo, repetido, Vale A Pena Ver De Novo, que já não diz nada a respeito do mundo de hoje.
Sabe aquele seu tiozão do pavê, que se acha jovem aos 68 anos, usando gírias antigas, se achando “psicodélico” e te chamando de “bicho” e “morou”? A comissão do Nobel parece com ele, não com alguém com um pingo de coragem e sustança na literatura. Novamente: não quer dizer que Bob Dylan seja minimamente ruim por isso: mas não é exatamente um representante supremo da música que teria se tornado poesia e altíssima literatura.
A impressão que a Academia tentou passar foi de modernidade, de serem descolados, de irem jantar na Vila Madalena e chamarem cerveja de “breja” pagando R$ 15 por uma garrafa que custa 5. Mas é datado. O pecado original e supremo para uma arte que deve premiar o que escapa do tempo e vai para o eterno.
Se é para ter coragem, que tal dar um Nobel para Michel Houellebecq, autor que desde seu primeiro livro, Extensão do Domínio da Luta, conseguiu fazer altíssima literatura com tudo aquilo que o cânone costuma não aceitar, como sexo niilista (e recheado de ereções insuficientes e acidentes vexaminosos), ultra-violência e ultrapassagem total de temas tabus, como racismo, prostituição e terrorismo? Vale dizer que o autor é um profeta, capaz de descrever eventos antes de acontecerem, como a islamização da França e seus atentados terroristas, ainda dando diagnósticos perfeitos da situação do vazio espiritual moderno que permite a ascensão do islamismo.
Que tal um Nobel para o escritor mais polêmico da atualidade, acusado de “islamofóbico” por todos aqueles que não têm coragem de confrontar suas próprias crenças? Houellebecq está mais velho do que Albert Camus, talvez o único escritor com seu feeling a lhe preceder, famoso também por uma obra cuja temática é o assassinato de um árabe na França.
Reparou como é um Nobel na área de Literatura muito mais “difícil” do que dar um Nobel para Bob Dylan achando que se reinventou a roda e se chocou o mundo?
David Foster Wallace e sua literatura entrando na mente da depressão e da vergonha, criando pesadelos de notas de rodapé que fazem romances quase “em árvore”, morreu de sua doença sem nem sombra de um Nobel. Outro criador polêmico, o chileno Roberto Bolaño, também foi capaz de reinventar a literatura, tocar naquilo que é o próprio ser do fazer artístico (o que fazia Heidegger separar um Poet de um Dichter) sem nem sombra de uma tentativa de premiar um escritor que invocaria amor e ódio. Nem mesmo Julio Cortázar e seu Jogo da Amarelinha, livro que pode ser lido em mais de uma ordem para produzir um novo livro, mereceu seu prêmio.
Alguém que seja realmente desafiador do joguinho de cartas marcadas do que pode e não pode na literatura conseguiria algo? Mesmo que fosse um músico: será mesmo que Bob Dylan é o maior exemplo de músico que agrada a um público leitor no século XXI? Que represente o seu sumo do sumo, que seja o músico dos músicos?
Não dá para disfarçar: Bob Dylan é apenas o queridinho da infância da Academia. Como todo mundo sabe, ao contrário da literatura, 95% de nosso gosto musical é o que ouvíamos na infância, e 5%, no máximo, é reservado ao nosso bom gosto. Basta fazer as contas.
O Nobel de Literatura para Bob Dylan tem a pretensão de familiaridade, como se o júri estivesse mesmo ouvindo o melhor da produção musical não-erudita dos últimos 70 anos, fosse P. J. Harvey ou Opeth, fosse Walter Trout ou Dead Can Dance, e chegasse à conclusão: “Vamos dar um Nobel de Literatura para o melhor!” A polêmica planejada falha por só revelar os tiozões do pavê congratulando a própria infância às custas de um prêmio que tenta ser o maior da Literatura com L maiúsculo.
São os velhos barrigudos que acham o máximo quando começa a tocar Metallica, chamam aquilo de “rock pauleira”, mas escondidos ouvem mesmo é Wanderléa.
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