Digite para buscar

Lula desiste do Foro de São Paulo. E agora?

Compartilhar

lula foro de são paulo

Uma notícia que foi erroneamente ignorada até por especialistas no PT e que não conseguiu ser interpretada a contento foi a de 5 de outubro, de que Lula criticou o Foro de São Paulo (organização da qual foi fundador junto a Fidel Castro).

Segundo Lula, é preciso criar um novo “instrumento na América Latina para unificar as forças de esquerda” frente a uma “onda conservadora” na América Latina.

Esta onda conservadora significa as pessoas que vão contra governos como os de Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador, Cristina Kirchner na Argentina, Otto Pérez Molina na Guatemala, Fernando Lugo no Paraguai e Manuel Zelaya em Honduras.

Destes três últimos, Molina foi obrigado a renunciar após manifestações populares, Lugo sofreu impeachment e Zelaya tentou aplicar um golpe para se assemelhar a Chávez, Maduro e Morales, mas foi deposto.

Apesar de ter sido criado em 1990, poucos brasileiros sabem o que é o Foro de São Paulo. O maior think tank do mundo, o Foro foi criado para unir partidos de esquerda da América Latina no fim da década de 80 que não viam possibilidade de crescimento da esquerda, sempre em segundo lugar nas eleições, e precisavam de uma organização estratégica mais elaborada a partir da queda do Muro de Berlim, em 1989, e do colapso da União Soviética, em 1991.

Reinventando seus discursos e discutindo estratégias para tomar o poder, inclusive entre partidos concorrentes, o Foro transformou a esquerda na força política mais forte da América Latina, com vários governos conquistados após a queda de diversas ditaduras militares na região.

Foi revitalizada a desgastada imagem de Fidel Castro e da Cuba revolucionária, assim como se repaginou a propaganda para o “socialismo do século XXI”, ou meramente “bolivarianismo”, para se evitar a lembrança óbvia do totalitarismo soviético e do genocídio além da Cortina de Ferro que começava a ser revelado ao Ocidente.

lula-foro-de-sao-pauloNum só golpe, a aliança transnacional do Foro conseguiu salvar a influência de ícones como Fidel e Che, quando a URSS faliu e parou de dar sua mesada para o exótico socialismo caribenho, lhe dando outra fonte de receita (como o petróleo venezuelano) e também concentrar a influência do castrismo e da Revolução Cubana na América Latina – a chamada construção da “Pátria Grande”.

Faz parte dessa aliança, por exemplo, o uso comum de marqueteiros vencedores como João Santana, que após entregar a vitória a Lula no auge do mensalão (em 2006) e de uma anódina Dilma Rousseff, que poucos sabiam que existiam e ainda menos entendiam o que falava até 2010, trabalhou na campanha de Nicolás Maduro na Venezuela e das peças publicitárias louvando a figura de Hugo Chávez.

Também algumas ações muito mais discutíveis, como o conluio das FARC colombianas para se tornarem um partido político e municiarem com o dinheiro do tráfico o bolivarianismo colombiano e venezuelano, que não tinha dinheiro o suficiente para sustentar campanhas e golpes.

Uma destas ações foi apresentada por Lula nesta mesma reunião, em um hotel em São Paulo, sem nenhuma conseqüência para o ex-presidente, que parece mais atuante do que quem nos governa. Aponta o Estadão:

Ao lado do segundo homem na cadeia de comando da Bolívia, Lula revelou que foi consultado por Evo Morales, então candidato a presidente do país vizinho, sobre a possibilidade de estatizar as plantas da Petrobrás em território boliviano.

“O Evo me perguntou: ‘como vocês ficarão se nós nacionalizarmos a Petrobrás’. Respondi: ‘o gás é de vocês’. E foi assim que nos comportamos, respeitando a soberania da Bolívia”, disse Lula.

No dia 1º de maio de 2006, assim que assumiu o poder, Morales determinou a nacionalização de toda cadeia de exploração de gás e petróleo da Bolívia e a ocupação militar das plantas, inclusive da Petrobrás, sob alegação de que as petroleiras ganham muito, pagam pouco ao Estado e que os contratos haviam sido fechados em governos anteriores sob suspeitas de corrupção. A estatal brasileira havia investido US$ 1,5 bilhão (cerca de R$ 6 bilhões) no país andino desde 1997.

Ora, nenhum partido, pela Constituição brasileira, pode estar sujeito a uma organização internacional. O Foro de São Paulo, como Lula confessa diante de todo o país, é uma organização internacional que sujeita o país a uma cadeia de interesses de grupos estrangeiros, ignorando-se as vontades dos brasileiros. Apenas isto seria suficiente para uma investigação que poderia culminar com o PT na ilegalidade, embora tais sentenças não sejam investigadas nem por jornalistas, nem por operadores do Direito capacitados.

Contudo, o imaginário que o Foro conseguiu imprimir na cultura geral permite que Lula confesse tais atitudes inconseqüentemente.

chavez_poverty_gettyMas o Foro parece passado para Lula. Há uma razão um pouco óbvia: o Foro conseguiu entupir os países da América Latina de governos autocráticos e centralizados, quase todos cruzando muito além da fronteira de uma “ditadura”, embora em moldes mais palatáveis do que a antiga Cortina de Ferro. Esta diferença única é que justificaria o rótulo de “progressista” a governos que causam inflação de 200% e retração do PIB de 10%, como a Venezuela de Maduro. O imaginário coletivo, que não pode mais admitir a breguice de Che Guevara, mas ainda quer se apresentar como “revolucionário”, gostou de poder voltar a brincar de Tchecoslováquia sem parecer um ditador, mas a brincadeira parece estar acabando.

O Foro de São Paulo nunca foi tão forte desde que Lula assumiu a presidência do Brasil em 2003 e pôde usar as riquezas do país para “contratos” com as ditaduras bolivarianas vizinhas (a refinaria dada a Evo, o metrô de Caracas, o porto de Mariel em Cuba, a única ilha do mundo em que não se pode ter comunidade pesqueira, do contrário os cubanos fugiriam para Miami, e tantos “contratos comerciais” intra companheirii). Afinal, partidos pobres de países pobres de repente viram uma fonte inesgotável de dinheiro vindo de forma aparentemente “lícita” para financiar projetos que lhes sustentassem no poder, perante uma população que desconhecia de tudo o que estava acontecendo nas frinchas do poder.

O cenário, contudo, parece estar mudando. Os petrodólares venezuelanos, antes abundantes, mal conseguem dar conta das migalhas dadas ao povo venezuelano na forma de “programas sociais”, e as favelas do país crescem junto com a escassez de alimentos. Países periféricos na geopolítica, como Bolívia e Equador, se tornam um fardo cada vez mais caro, e a economia argentina, em frangalhos desde o peronismo, mais atrapalha do que ajuda a manter a esfera de influência do Foro intacta.

Some-se a isso, claro, os desmandos de todos estes governantes. Seu caráter revolucionário pode até convencer uma população mantida alheia do que acontece de fato no poder, e também os intelectuais, que costumam acreditar em qualquer coisa, mas as notícias e o resultado de suas políticas “contrárias ao neoliberalismo”, como a famosa escassez de papel higiênico na Venezuela, faz com que a população até a mais alienada de teoria política se volte contra os caudilhos em pouco tempo.

É possível “dar” dinheiro ao povo através do governo o quanto se quiser, mas isto sempre dura muito pouco, e é o que acontece na América Latina, hoje.

chavez-evo-lula-correaO Brasil, neste cenário, sempre foi a face “paz e amor” do novo socialismo: é o mais retraído em políticas de concentração de poder, de planificação econômica, de estatização, de “controle social” da sociedade, embora sempre tente avançar um pouco mais. Mas é o menino de propaganda que faz com que jornalistas do mundo todo jurem que a influência do Brasil significa “democratização”, até mesmo falando-se em “continuidade” das políticas “neoliberais” (para um país anti-liberal até o osso, isto é quase sinônimo de economia “ortodoxa”, até mesmo “ultra-liberal”).

É o que Lula deixa escapar em outro ponto revelador flagrado pelo Estadão, no típico auto-elogio lulista (fora o fato de Lula falar algo em latim):

“Faço o mea culpa. O PT não soube transformar em grandeza de política internacional aquilo que fizemos aqui no Brasil. O PT poderia ter feito muito mais. Nós ficamos só no Foro de São Paulo e cada vez com menos gente importante comparecendo. Temos que criar um instrumento na América Latina para unificar as forças de esquerda.”

O socialismo foi uma ideologia muito útil para os caudilhos bolivarianos. Deu-lhes poder e dinheiro, e ainda o discurso perfeito para se manterem no poder, ao contrário dos ditadores que sofriam golpe atrás de golpe antes deles: seu discurso é pela igualdade, então mesmo que um país inteiro esteja passando fome e ficando mais pobre enquanto tem de trabalhar mais, está “corrigindo a desigualdade”, ganhando alvíssaras entusiasmadas de qualquer “progressista” na platéia.

Todavia, o mundo mudou, e a fonte secou. Agora Lula tem algumas opções à sua frente que ainda não percebe, mas que podem determinar como será o futuro da esquerda latino-americana.

A primeira é o endurecimento, fazendo com que o PT abandone o socialismo a conta-gotas e parta para a venezuelização. Tal medida é de desespero, e poderia apenas dar uma sobrevida rápida ao Foro, que logo perderia dinheiro e apoio, enfrentando mais da “onda conservadora” que nada mais é do que o repúdio ao socialismo e suas crises e seus governos de burocratas alheios ao povo. Parece ser justamente essa medida de desespero que o planejamento estratégico do Foro ou do pós-Foro quer evitar.

Outra é trocar a fonte. O mundo que acreditou em BRIC’s (até o próprio cunhador do termo recusa a ver continuidade na semelhança das economias de Brasil, Rússia, Índia e China, que não duraram 3 anos) é o mesmo que criou um banco conjunto destes países e da África do Sul. É o fim da política “norte-sul” e o início da política “sul-sul”, que acredita que evita “exploração” com isso.

Isto, na prática, é colocar a esquerda latina na esfera de influência russa. É o eurasianismo de Vladimir Putin, hoje tão analisado, por exemplo, na Alemanha, país que Putin quer colocar de joelhos (infelizmente, as análises do Der Spiegel sobre Putin e seu “cérebro” Aleksandr Dugin exigem um considerável conhecimento da língua alemã).

Uma realidade pouco provável, pois a atuação política na Rússia foi sempre muito própria, já que toda política incorpora a cultura local (o próprio Marx desacreditava em uma Revolução Russa). Putin toma elementos locais, como uma Igreja Ortodoxa entupida de agentes do governo, para seu poder e sua aceitação. É um país com milênios de tradições, enquanto na América Latina, sem tradição alguma, basta gritar “diminuir a desigualdade!” e ganhar aplausos os mais emocionados de uma farândola de “pensantes”.

putin-yellingVladimir Putin é da esquerda vertical, bolchevique, de terno ou casaca militar, não da esquerda festiva latina. O lado “tradicionalista” (deturpando-se muito o termo) de Putin fez com que até conservadores do porte de Pat Buchanan, que não é ninguém idiota, o considerasse um grande “paleo-conservador”. É um tanto impensável ver a influência do perseguidor da banda Pussy Riot aumentando num país cuja esquerda tem como grandes  produções intelectuais recentes “performances” como Macaquinhos, ou grupos e festas de nomes como “Xereca Satanik” e “Putinhas Aborteiras”.

Resta por fim uma reforma latina no Foro. O que é mais provável para os foristas brasileiros, que são quem paga a conta da aventura latina, estão mesmo cheios do descontrole total de pagar as contas da falência do socialismo alheio, e ter de amargar uma crise interna que já é reflexo do início de políticas socialistas em território brasileiro.

Os caminhos para o Foro de São Paulo se reinventar através de novos partidos – agravado pelo desgaste do PT após todos os seus escândalos, e culminando no segundo mandato Dilma – são pouco claros até para seus fundadores. Todavia, todos, inevitavelmente apontam para uma única direção: endurecimento. Alguns, no Brasil, podem sair do PT e ir para a Rede ou para o PSOL (duas formas diferentes de endurecer), mas a questão fundamental é o que fará o gramscista PT para endurecer. O petista mais versado em Gramsci, Valter Pomar, é justamente o articulador do Foro de São Paulo que estava do lado de Lula – seu braço “esquerdo”. E gramscistas transformam até seus anti-partidos em força para o partido original.

O PT até hoje foi a face branda de uma esquerda supostamente moderna e revitalizada, que pode na mesma semana ser elogiada em Davos e no Fórum Social Mundial, que pode deixar nas entrelinhas que desacredita no socialismo para a um só tempo pregar o socialismo petista e faz acordos apenas com ditaduras socialistas. Todavia, como já sabia Margaret Thatcher, o socialismo só é uma festa enquanto não acaba o dinheiro dos outros. E agora acabou. Tudo indica que a esquerda latina agora poderá ser mais PSOL do que PT – bem mais soviética do que “boteco bolivariano”.

Curta e divulgue nossa página no Facebook

E nos siga no Twitter: @sensoinc

Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

  • 1
plugins premium WordPress