Pais e Filhos: a perspectiva Bazárov e a ação dos educadores políticos
Por leituras de Rousseau e Turguêniev, entenda como a elite progressista mundial tenta nos infantilizar e nos afastar da política
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“Não se deve abandonar às luzes e preconceitos dos pais a educação de seus filhos, pois ela importa ao Estado mais que aos pais”, escreveu Jean Jacques-Rousseau no verbete sobre economia da famosa Enciclopédia organizada por Diderot e D’Alambert. E concluiu: “O Estado permanece, e a família perece”.[1]
Compreende-se, afinal, por que Robespierre o chamasse de “professor da humanidade”. Foi a partir de Rousseau, como mostra Hannah Arendt num ensaio brilhante sobre a crise da educação,[2] que a política começou a assumir funções cada vez mais pedagógicas, atingindo hoje o seu paroxismo, quando políticos, burocratas e intelectuais querem disciplinar até mesmo os aspectos mais íntimos de nossas vidas privadas.
Portanto, se talvez tenha sido hiperbólico o juízo de Lord Acton, segundo o qual “Rousseau produziu mais resultados com sua pena do que Aristóteles, ou Cícero, ou Santo Agostinho, ou São Tomás de Aquino, ou qualquer outro homem que jamais viveu”,[3] decerto não é exagero tomar o genebrino devasso por patriarca da intelligentsia revolucionária contemporânea, para quem a política, antes que atividade essencialmente inter-subjetiva e permanentemente negociada, é uma via de mão-única, um meio de moldar (ou “educar”) uma sociedade tida por plástica conforme as idéias e utopias de uma elite de iluminados.
Aquele objetivo, a esquerda revolucionária busca realizar mediante dois procedimentos simultâneos e complementares. Em primeiro lugar, seguindo à risca o propósito rousseauniano de desvalorização da família em favor do Estado (ou do partido, no caso de este ainda não haver conquistado o poder oficial). Para formar os novos cidadãos da sociedade ideal planejada pelos engenheiros sociais – estes a quem Adam Smith chamou de “homens de sistema” -, há que se retirar os filhos da zona de influência psicossocial exercida por seus pais.
Os comunistas foram os primeiros a assimilar o insight rousseauniano. Uma tese semelhante à de Rousseau, por exemplo, foi apresentada já como projeto político-pedagógico por Lilina Zinoviev, precursora do ensino soviético. Palestrando no Congresso de Ensino Público de 1918, Lilina proferiu as seguintes palavras:
“Devemos fazer da geração jovem uma geração de comunistas. As crianças, como cera, são muito maleáveis e devem ser moldadas como bons comunistas. Devemos resgatar os infantes da influência nociva da vida familiar. Devemos racionalizá-los. Desde os primeiros dias de sua existência, os pequenos devem ser postos sob a ascendência de escolas comunistas para aprenderem o ABC do comunismo… Obrigar as mães a entregar seus filhos ao Estado soviético – eis nossa tarefa” (grifos meus).[4]
Noções de plasticidade e maleabilidade aparecem também na visão de Che Guevara sobre o papel da juventude na construção do socialismo. Em O Socialismo e o Homem em Cuba, escreveu o revolucionário argentino: “Na nossa sociedade, jogam um grande papel a juventude e o partido. A primeira é particularmente importante por ser a matéria maleável com a qual se pode construir o homem novo sem nenhuma das taras anteriores…”
O projeto de construção do homem novo, ressalte-se, já estava presente na mente totalitária de Rousseau:
“Aquele que ousa empreender e instituir um povo deve sentir-se em posição de mudar, por assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual este indivíduo receba, de uma certa maneira, a sua vida e o seu ser; de alterar a constituição do homem para forçá-la a substituir uma existência parcial e moral pela existência física e independente que recebemos da natureza” (grifos meus).[5]
Nota-se que a dissolução, primeiro da família, e em seguida de todos os demais laços tradicionais mantidos pelo indivíduo, foi sempre o objetivo número um de qualquer projeto político revolucionário. Tal era, por exemplo, o modus operandi de outro socialista famoso, Adolf Hitler. O sociólogo Karl Mannheim descreveu-o com precisão no livro Diagnóstico do Nosso Tempo, em capítulo intitulado “Estratégia do Grupo Nazista”, do qual cito:
“Hitler inventou um novo método a que se pode dar o nome de estratégia do grupo nazista. O ponto capital da estratégia psicológica de Hitler é jamais encarar o indivíduo como pessoa, mas sempre como membro de um grupo social (…) Hitler sabia instintivamente que enquanto as pessoas se sentem abrigadas em seus próprios grupos sociais, ficam imunes à influência dele. O artifício oculto da estratégia de Hitler, por conseguinte, consiste em romper a resistência do espírito individual por meio da desorganização dos grupos aos quais esses indivíduos pertencem. Ele sabe que um homem sem laços com o grupo é como um caranguejo sem a carapaça (…) Assim, há duas fases principais na estratégia do grupo de Hitler: a decomposição dos grupos tradicionais da sociedade civilizada e uma rápida reconstrução baseada em um padrão de grupos inteiramente novo” (grifos meus).[6]
Mannheim faz questão de ressaltar que, embora Hitler tenha introduzido adaptações particulares na técnica, esta não era especificamente nazista, tendo sido usada mais ou menos variadamente por outros projetos totalitários. Continua o sociólogo húngaro:
“São diversos os métodos de que [Hitler] dispõe para lidar com a família, a Igreja, os partidos políticos e as nações. Os elementos dessa técnica ele os aprendeu com os comunistas, mas os pormenores foram por ele elaborados durante sua própria luta na selva política da Alemanha da década de 1920”.[7]
Na sequência da explicação, o autor leva-nos ao segundo procedimento através do qual a esquerda revolucionária busca modelar a sociedade de acordo com sua visão-de-mundo. Se ela começa separando pais e filhos, é apenas porque, no processo, almeja finalmente poder vir a tratar aqueles como se fossem estes, num mal-disfarçado mecanismo de infantilização da sociedade. Desconfiando da capacidade de auto-organização da sociedade, a esquerda revolucionária vê-se como sua tutora. E, numa profecia auto-realizável, termina efetivamente por criar multidões de indivíduos infantilizados e moralmente irresponsáveis. Prossigamos com Mannheim:
“Nessa fase, a desmoralização e a decomposição dos grupos sociais principiam a produzir efeitos no indivíduo. E, o que é pior, em vastos números de indivíduos simultaneamente. A explicação psicológica desse fato é simplesmente a seguinte: o homem entregue a si mesmo não pode oferecer resistência. Como os vínculos com seu grupo é que lhe dão apoio, segurança e reconhecimento, para nada dizer dos valiosos laços de amizade e confiança, sua dissolução deixa-o inerme. Ele se comporta como uma criança que se extraviou ou que perdeu a pessoa amada; por isso sente-se inseguro, disposto a apegar-se a quem quer que se apresente (…) O fato é que a desintegração do grupo tende a ser seguida dum colapso da consciência moral do indivíduo. Ele se vê tentado a pensar mais ou menos assim: ‘Afinal de contas, tudo em que eu acreditava até agora talvez estivesse errado (…) A escolha que tenho é entre tornar-me um mártir ou aderir à nova ordem; quiçá eu possa chegar a ser um membro destacado dela. Ademais, se eu não aderir hoje, amanhã talvez seja demasiado tarde’”.[8]
No artigo já mencionado mais acima, Hannah Arendt ilumina o caráter perverso dessa mistura de política com educação, tão característica do espírito revolucionário/totalitário:
“O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas, desde a Antiguidade até os nossos dias, mostra bem como pode parecer natural querer começar um mundo novo com aqueles que são novos por nascimento e por natureza. No que diz respeito à política há aqui, obviamente, uma grave incompreensão: em vez de um indivíduo se juntar aos seus semelhantes assumindo o esforço de os persuadir e correndo o risco de falhar, opta por uma intervenção ditatorial, baseada na superioridade do adulto, procurando produzir o novo como um fait accompli, quer dizer, como se o novo já existisse (…) É por esta razão que, na Europa, a crença de que é necessário começar pelas crianças se se pretendem produzir novas condições tem sido monopólio principalmente dos movimentos revolucionários com tendências tirânicas, movimentos esses que, quando chegam ao poder, retiram os filhos aos pais e, muito simplesmente, tratam de os endoutrinar. Ora, a educação não pode desempenhar nenhum papel na política porque na política se lida sempre com pessoas já educadas. Aqueles que se propõem educar adultos, o que realmente pretendem é agir como seus guardiões e afastá-los da atividade política. Como não é possível educar adultos, a palavra ‘educação’ tem uma ressonância perversa em política – há uma pretensão de educação quando, afinal, o propósito real é a coerção sem uso da força” (grifos meus).[9]
Revelam-se novamente os dois procedimentos complementares adotados pela esquerda revolucionária para incrementar o seu poder sobre a sociedade. Começa-se por separar as crianças de seus pais mediante um sistema educacional talhado precisamente para isso. Assim, os agentes revolucionários substituem os pais na formação moral e intelectual dos filhos. Dissolvida essa hierarquia natural primeira entre pais e filhos, cria-se uma nova e mais profunda hierarquia, desta feita entre os sábios iluminados da esquerda revolucionária (os “especialistas”, os “pedagogos”, os “cientistas sociais” etc.) e os próprios pais, ora infantilizados e submetidos à autoridade daqueles.
Se Alain Besançon chegou a qualificar a pseudo-ciência da pedagogia de “propedêutica do socialismo”,[10] percebe-se claramente o motivo: ela é o instrumento pelo qual a elite comunista (pós-gramsciana) infantiliza os adultos para – na expressão de Arendt – coagi-los sem uso da força. Ela busca não apenas separar pais e filhos como também nivelá-los, ambos postos na condição de “crianças” em face do esotérico saber progressista.
Rabisquei tudo o que vai acima motivado por uma notícia à primeira vista banal, mais uma entre centenas de matérias diárias equivalentes, e que compõem a surrealidade cultural brasileira em nosso tempo. Seria preciso um esforço interpretativo muito maior, bem como a mobilização de vasta literatura, para explicar o real sentido da notícia. Mas penso que o arrazoado anterior talvez sirva de âncora – que, aliás, é o símbolo mesmo deste portal – para que a notícia em questão não se perca na maré comum. Em si mesma, ela não seria relevante se a forma de sua redação não revelasse um padrão recorrente. E é esse padrão que nos conecta a toda a conversa que vamos tendo sobre educação e política.
A notícia, publicada no jornal Extra, versa sobre a estréia de um espetáculo infantil no Teatro Municipal de Niterói, um espetáculo sobre orixás e lendas da “cultura negra” (sic). Na chamada do jornal no Facebook, lê-se: “Pra (sic) encantar as crianças e quebrar o preconceito dos pais”. Dentro da matéria, a função da peça é explicada pelo autor, um jovem ator e professor de português: “apresentar aos pequenos um tema que é cercado de preconceito na visão dos mais velhos”.
Todos sabemos que a idéia de associar os jovens ao “progresso” social (tanto moral quanto estético) e os velhos ao “atraso” vem desde o século XIX, marcando forte presença no modernismo – quando chega a ser uma das causas da Primeira Guerra, como mostra magistralmente Modris Eksteins em A Sagração da Primavera – e consagrando-se definitivamente em maio de 1968, quando virou – e assim permanece – establishment.
Turguêniev foi um dos primeiros a descrever o espírito revolucionário contemporâneo em termos de um conflito de gerações, uma luta – precisamente! – entre Pais e Filhos (1862). Naquele turbulento século XIX, passava a caber aos “filhos” (ou seja, aos jovens de modo geral) a tarefa essencial – por muitos encarada como missão divina – de negar radicalmente os valores e costumes dos antepassados.
Ievguêni Bazárov, um dos personagem mais insolentes e desagradáveis da literatura universal, símbolo-mor da hybris da juventude revolucionária, afirma com todas as letras a sua vocação de negar. “Tudo?” – pergunta-lhe um membro da geração anterior. “Tudo” – responde Bazárov com “indescritível serenidade”. “O senhor nega tudo, ou, em palavras mais exatas, destrói tudo… No entanto é preciso também construir” – insiste o interlocutor, ao que Bazárov responde: “Isso já não é da nossa conta… Em primeiro lugar, é necessário limpar o terreno”.
Dez anos depois de Turguêniev, e inspirado por ele, Dostoiévski tratou do tema em Os Demônios (1872). Em dado trecho do livro, o revolucionário niilista Vierkhoviénski diz a outro:
“Eu já lhe disse: vamos penetrar no seio do próprio povo. Sabe que já agora somos terrivelmente fortes? Os nossos não são apenas aqueles que degolam e ateiam fogo, e ainda fazem disparos clássicos ou mordem (…) O professor de colégio que ri com as crianças do Deus delas e do berço delas, já é dos nossos. O advogado que defende o assassino culto que por essa condição já é mais evoluído que suas vítimas e que, para conseguir dinheiro, não pode deixar de matar, já é dos nossos. Os colegiais que matam um mujique para experimentar a sensação, são dos nossos. Os jurados que absolvem criminosos a torto e a direito são dos nossos. O promotor que treme no tribunal por não ser suficientemente progressista é dos nossos. Os administradores, os escritores, oh, os nossos são muitos, e eles mesmos não sabem disso (…) Sabe você, sabe você de quantas idéias prontas lançamos mão? Quando saí daqui, grassava a tese de Littré, segundo a qual o crime é uma loucura; quando voltei, o crime já não era uma loucura, mas justamente o bom senso, quase um dever – quando nada um protesto nobre”.
Limpar o terreno, como diz Barzárov, rir junto aos alunos de seu Deus e de seu berço, como prefere Vierkhoviénski, ou quebrar o preconceito dos pais, como sugerem o autor do espetáculo acima referido e o jornalista que o reporta: eis o supra-sumo do projeto revolucionário, que hoje a imprensa e o show business assumiram como seu. A idéia-mestra da notícia sobre o espetáculo – qual seja a de colocar os mais velhos na posição de alunos dos mais novos – nos é martelada incessantemente.
Quanto surge na teledramaturgia, no noticiário, nos programas de entretenimento ou na propaganda, o tema Pais e Filhos é invariavelmente apresentado sob uma única perspectiva, que, em homenagem a Turguêniev, poderíamos chamar de perspectiva Barzárov: os filhos aparecerão reclamando da “caretice” dos pais. Estes, por sua vez, figurarão em posição submissa, quase sempre corrigidos por “especialistas” que acabarão por demonstrar – recorrendo a algum “estudo científico” – que a opinião dos filhos é, de fato, a mais correta, seja política, moral ou intelectualmente. Abundam os comerciais em que velhinhos e velhinhas se comportam como adolescentes, mostrando com isso serem evoluídos e prafrentex. O inverso jamais ocorre. Num giro de 180 graus em relação à história pregressa da humanidade, os jovens é que são modelo de conduta para os mais velhos, e não o contrário. Como lamentou o nosso Nélson Rodrigues:
“Ah, no antigo Brasil era uma humilhação ser jovem. Só me lembro de uma meia dúzia de rapazes. Os rapazes escondiam-se, andavam rente às paredes e, para eles, a velhice era uma utopia fascinante. Por toda parte, havia uma paisagem de velhos em flor. A palavra do velho parecia soar numa acústica de catedral (…) E tudo mudou. Agora o importante, o patético, o sublime é ser jovem. Ninguém quer ser velho. Há uma vergonha da velhice. E o ancião procura a convivência das Novas Gerações como se isso fosse um rejuvenescimento. Outro dia, dizia-me uma jovem senhora: ‘Tenho mais medo da velhice do que da morte’. Quer ser defunta e não quer ser velha”.[11]
Aquela relação invertida entre pais e filhos – estes ensinando; aqueles, aprendendo – é ampliada até que toda a população comum, ou seja, a grande maioria silenciosa que não integra a assim chamada “classe falante”, seja considerada da perspectiva Bazárov, a saber, como ultrapassada, vetusta e – pior ainda – socialmente nociva!
Para a elite progressista encastelada nas faculdades de humanas, na imprensa e nas artes, nós somos os “Pais” do clássico de Turguêniev. E é por isso que, hoje em dia, intelectuais, jornalistas e artistas assumem tão facilmente, sem corar, o papel de nossos educadores. Assim se dá em escala mundial. É como se nos dissessem: “Menino comportado não vota em Bolsonaro!”. Ou: “Ai, ai, ai. Já disse que não é para apoiar o Trump!”. Ou ainda: “Se sair da União Européia, vai ficar sem sobremesa no jantar!”
O que estamos vivendo no mundo contemporâneo configura aquilo que Kenneth Minogue definiu muito bem como “moralismo político”. A preocupação do autor é a mesma de Hannah Arendt, qual seja com a restrição da participação política por meio da confusão intencional entre educação e política. No último capítulo do seu Politics: a very short introduction (1995), intitulado significativamente “Poderá a política sobreviver ao século XXI?”, Minogue observa que os atuais donos do poder no mundo vêem a si mesmos, a exemplo de Rousseau, como modelos virtuosos e professores da humanidade. E também ele faz remontar à Revolução Francesa a origem do fenômeno, quando “a política passou a ser discutida em termos de doutrina e ideologia antes que nos termos daquilo que os problemas locais exigiam do sistema legal”.[12]
No século XIX, já Tocqueville havia destacado aquele mesmo aspecto. Em O Antigo Regime e a Revolução (1856), ao contrastar os iluminismos britânico e francês, o aristocrata normando escreveu:
“Enquanto, na Inglaterra, aqueles que escreviam sobre o governo e aqueles que governavam estavam misturados – os primeiros introduzindo na prática as novas idéias, os últimos ajustando e circunscrevendo as teorias em função dos fatos -, na França, o mundo político restava como que dividido em duas províncias separadas e incomunicáveis. Na primeira, administrava-se; na segunda, estabeleciam-se os princípio abstratos sobre os quais toda a administração deveria se fundar. Aqui, eram tomadas as medidas particulares indicadas pela rotina; lá, eram proclamadas as leis gerais, sem que jamais fossem levados em conta os meios pelos quais aplicá-las: a uns, a condução dos negócios; aos outros, o direcionamento das inteligências” (grifos meus).[13]
A quantas tentativas de “direcionamento das inteligências” não temos assistido nos dias atuais? Referindo-se àquele nocivo idealismo por nós herdado do iluminismo francês, Minogue mostra como os políticos na atualidade têm se mostrado “engajados na tarefa de fundar, de uma vez por todas, uma sociedade mais justa”, sociedade essa que, “uma vez criada, já não precisará ser mudada”, e na qual “a política terá morrido, mas tudo será política.” O moralismo político, continua o autor, “considera a independência dos cidadãos, não como uma garantia à liberdade, mas como um obstáculo ao projeto de moralizar o mundo”.[14]
Entende-se, por exemplo, por que a vitória do Brexit provocou na elite globalista tamanhos ódio e pavor contra o britânico ordinário (ver, sobre o assunto, este ótimo artigo de Brendan O’Neill). Não esqueçamos que o simbolismo Jovens vs. Velhos foi brutalmente acionado, sendo que boa parte da grande imprensa mundial – hoje mera propagandista daquela elite – não se vexou em desprezar a decisão soberana da população britânica, tratando-a como produto da rabugice de um bando de velhos ignorantes e reacionários.
No Brasil, como destacou o amigo e colega de Senso, Alexandre Borges, tivemos até um desses pseudo-intelectuais progressistas propondo a adoção de uma idade eleitoral máxima, numa clara manifestação de gerontofobia. Esta, ao contrário das fobias fictícias abominadas pelo establishment progressista – “islamofobia” e “eurofobia”, por exemplo -, parece estar liberada.
Ou seja, os mesmos iluminados que apontam o dedo acusatório para quem, por exemplo, tenha receio daquela grande parcela de muçulmanos que o querem eliminar como infiel – o que deveríamos chamar de prudência em vez de “fobia” -, não vêem nada demais em temer e odiar velhos que – vejam vocês que horror! – votam.
Neste nosso século, aquele “projeto de moralizar o mundo” mencionado por Minogue tem o sentido explícito de uma substituição das soberanias nacionais – e, o que é mais grave, da liberdade de consciência dos indivíduos – por uma hegemônica ordem moral internacional. “Moralizar a condição humana só é possível se formos capazes de fazer o mundo corresponder a algum conceito de justiça social” – prossegue o cientista político australiano.
“Ocorre que só podemos transcender as desigualdades do passado se instituirmos precisamente a forma de ordem social – um despotismo – que a civilização ocidental tem há muito julgado incompatível com os seus costumes livres e independentes”. E, como sói acontecer sempre que a esquerda revolucionária assume o poder: “A promessa é a justiça, o preço é a liberdade”.[15]
A conclusão de Minogue remete-nos a Rousseau, a Lilina Zinoviev, a Che Guevara e a todos os outros “educadores” políticos que se multiplicaram como coelhos nos últimos cem anos, e que concebem a política de maneira pedagógica ou estetista, quer como a aula ministrada pelo professor a seus alunos, quer como a ação de um artista onisciente sobre matéria plástica e inerte: “Nesta nova forma de sociedade, os seres humanos estão virando a matéria a ser moldada segundo as últimas idéias morais”.[16]
Reféns de uma visão-de-mundo imanentista e materialista, os progressistas não podem deixar de tomar o desenvolvimento ontogenético humano como modelo para o desenvolvimento histórico e político. Daí sua tendência a valorizar a vitalidade dos novos em detrimento da decrepitude fisiológica dos antigos, confundindo aquela com saúde civilizacional, e esta com a morte da cultura.
Que símbolo maior desse espírito progressista no Ocidente, dessa perspectiva Bazárov desconhecida em qualquer outro tempo ou lugar, do que a resposta dada pelo jovem arquiteto suíço Charles-Édouard Jeanneret a Auguste Perret, considerado então o pai da moderna arquitetura francesa, quando este lhe perguntara se já havia ido ver o palácio de Versalhes? “Não, nunca irei”, foi a resposta do jovem que viria mais tarde a ser mundialmente conhecido pelo nome Le Corbusier. “E por que não?” “Porque Versalhes e a época clássica não são senão decadência!”[17]
A absurdidade da visão-de-mundo progressista, incapaz de contemplar a realidade sub specie aeternitatis, foi bem destacada por Eugen Rosenstock-Huessy:
“Se o homem concebe a vida entre nascimento e morte, não há progresso. O progresso depende da qualidade interseccionadora da morte como útero do tempo. Entre a sepultura e o berço, o homem civilizado torna-se articulado, educado, e encontra orientação e direção. As pressões resultantes da sepultura produzem a vertente por onde as águas da vida podem atingir as alturas de um novo nascimento. O animal nasce, mas não pode penetrar o tempo que antecede seu próprio nascimento. Uma densa cortina impede-lhe o conhecimento dos antecedentes. Ninguém diz ao animal qual é sua origem. Mas nós, as igrejas e tribos de tempos imemoriais, elevamos toda a humanidade acima da dependência do mero nascimento. Abrimos-lhe os olhos para suas origens e predecessores. Transformamos-lhe os meros nascimentos de modo que se mudassem numa sucessão de antecedentes bem conhecida e estabelecida. E transformamos as simples mortes em precedente para a emancipação dos sucessores” (grifos meus).[18]
Por rejeitarem a tradição e descrerem do eterno, os progressistas agarram-se desesperadamente à vida. Não com regozijo, como gostam de afetar, mas frequentemente com angústia e niilismo. Formam assim, na expressão de Chesterton, uma “pequena e arrogante oligarquia dos que apenas calham de estar andando por aí”.[19] Para eles, a morte não é o “útero do tempo”, senão o fim de tudo e a completa ausência de sentido. O cemitério é o seu ponto final.
E é num cemitério que, enfim, terminamos este artigo, para o alívio do leitor. O mesmo cemitério, aliás, pequeno e rural, em que Turguêniev encerra o seu romance. Entre os seus corroídos túmulos, sobre os quais vagueiam três ou quatro ovelhas, há um “em que nenhum homem encosta, em que nenhum animal pisa”. Ali, em cujas extremidades estão plantados dois jovens abetos, está enterrado Ievguêni Bazárov – o jovem arrogante e auto-centrado que dá nome ao nosso texto.
Se, para o niilista Bazárov, o filho, aquele espaço representava o nada absoluto, o mesmo não se diga de Vassíli Ivánovitch e Arina Vlássievna, seus pais. Estes, supersticiosos, simplórios, devotos de santos, anjos e ídolos pescados confusamente num caldeirão sincrético de cristianismo ortodoxo e misticismo pagão, iam amiúde ao local rezar pela alma imortal do filho que, em vida, tanto os desprezara. Este, viajado, estudado, cuja inteligência mundana tanto orgulhara quanto intimidara aqueles dois pobres velhos provincianos, só com estes pôde contar para que se lhe preservassem a memória. Logo ele, filho bastardo da razão, morto e esgotado em si mesmo, teria como destino viver através da fé de seus pais, membros vivos de “igrejas e tribos de tempos imemoriais”:
“Escorando-se um no outro, caminham em passos cada vez mais pesados; aproximam-se da grade, cambaleiam e põem-se de joelhos, e choram amarga e demoradamente, olham atenta e demoradamente para a pedra muda, sob a qual faz seu filho; trocam palavras breves, espanam a poeira da pedra, ajeitam um ramo do abeto e rezam outra vez, não conseguem deixar esse local, onde parecem mais perto do filho, das lembranças dele… Será que suas orações, suas lágrimas, são infrutíferas? Será possível que o amor, o amor abnegado, sagrado, não seja onipotente? Ah, não! Por mais exaltado, pecador e rebelde o coração oculto no túmulo, as flores que crescem sobre ele olham para nós serenas, com seus olhos inocentes: não nos falam apenas de uma paz eterna, da grande paz da natureza ‘indiferente’; falam também da reconciliação eterna e da vida infinita…”
Notas:
[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques. ”Economie”. In: Encyclopédie, or Dictionnaire Raisonée des Sciences, des Arts et des Métiers par une Société des Gens de Lettres (Nouvelle Édition. Tome Onzième). Genève: Pellet Imprimeur-Libraire, 1777. p. 818.
[2] ARENDT, Hannah. “The Crisis in Education”. In: Between Past and Future: Six Exercises in Political Thought. New York: The Viking Press, 1961.
[3] Ver: PAUL, Herbert. “Introductory Memoir”. In: Letters of Lord Acton to Mary Gladstone. New York: The Macmillan Company, 1904. p. 10.
[4] FIGES, Orlando. A Tragédia de um Povo: A Revolução Russa (1891-1924). Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999. p. 912.
[5] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Le Contrat Social. Paris: Lebigre Frères Libraires, 1834[1762]. p. 57.
[6] MANNHEIM, Karl. “Nazi Group Strategy”. In: Diagnosis of Our Time: Wartime Essays of a Sociologist. London: Kegan Paul, Trench, Turner & Co., LTD, 1943. p. 95.
[7] MANNHEIM, op. cit. p. 96.
[8] MANNHEIM, op. cit. pp. 96-97
[9] ARENDT, Hannah. “The Crisis in Education”. In: Between Past and Future: Six Exercises in Political Thought. New York: The Viking Press, 1961. pp. 176-177.
[10] BESANÇON, Alain. “Prefácio”. In: Isabelle Stal & Françoise Thom. A Escola dos Bárbaros. São Paulo: T. A. Queiroz, 1991. p. 5.
[11] RODRIGUES, Nélson. 1994. “O Septuagenário Nato”. In: O Óbvio Ululante: Primeiras Confissões (Crônicas). São Paulo: Companhia das Letras. pp. 90-91.
[12] MINOGUE, Kenneth. Politics: A Very Short Introduction. Oxford & New York: Oxford University Press, 2000. p. 109.
[13] TOCQUEVILLE, Alexis de. L’Ancien Régime et la Révolution. 2éme. Éd. Paris: Michel Lévy Fréres, Libraires-Éditeurs, 1856. pp. 244-245.
[14] MINOGUE, op. cit. p. 106.
[15] Ibid.
[16] MINOGUE, op. cit. p. 111.
[17] Ver: EKSTEINS, Modris. A Sagração da Primavera: A Grande Guerra e o Nascimento da Era Moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 35.
[18] ROSENSTOCK-HUESSY, Eugen. A Origem da Linguagem. Rio de Janeiro: Record, 2002. pp. 70-71.
[19] CHESTERTON, G. K. Orthodoxy. New York: Ortho Publishing, 2013. p. 45.
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