Theodore Dalrymple: “Há mais violência nas escolas do que nas prisões”
Theodore Dalrymple, um dos maiores pensadores da atualidade, fala ao Senso Incomum sobre pobreza, criminalidade, cultura e educação.
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Um dos maiores pensadores ingleses da atualidade, o psiquiatra Theodore Dalrymple, esteve no Brasil para divulgar seu novo livro, Não com um Estrondo, mas com um Gemido – A Política e a Cultura do Declínio (É Realizações) título emprestado do poema Os homens ocos, de T. S. Eliot.
Autor de mais de uma dezena de livros, vários lançados no Brasil, como Podres de Mimados – As Consequências do Sentimentalismo Tóxico e O Prazer de Pensar, em que discorre sobre seu amor por livros, Theodore Dalrymple escreve colunas e ensaios em diversas publicações, como o City Journal publicado pelo Manhattan Institute, as britânicas The Spectator e Salisbury Review ou a americana National Review, além de diversas publicações da grande mídia inglesa, variando do Daily Telegraph e The Times até The British Medical Journal.
Psiquiatra que já trabalhou em diversas regiões em todos os continentes para realizar um trabalho com prisioneiros, Dalrymple é uma das mentes mais brilhantes e perspicazes do mundo para tratar de alguns temas que estão quase sempre entre as primeiras preocupações dos brasileiros, como a pobreza e a criminalidade.
Pouco convencional por seu pensamento fugir das explicações comuns envolvendo o tripé pobreza, desigualdade e criminalidade, Theodore Dalrymple tem uma escrita elevadíssima, conjugando tanto seu amor pelas artes, literatura e música, quanto seus longos anos de ciência como médico psiquiatra, em hospitais, prisões e diversas missões pelo mundo, visitando locais de guerra e de violência extrema.
Além de uma palestra sobre a pobreza proferida no auditório do MASP, Theodore Dalrymple nos recebeu na sua editora no Brasil, a É Realizações, para esta entrevista exclusiva.
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Senso Incomum: O senhor falou aqui no Brasil a respeito de pobreza, que é geralmente uma questão da esquerda. Qual a sua questão em relação à pobreza?
Theodore Dalrymple: Bem, aqui no Brasil eu falei sobre pobreza e sobre a definição de pobreza. Eu, pessoalmente, não sofro de pobreza, como quer que você a defina, então é fácil ser acusado de não ter compaixão com os pobres. Quanto à esquerda, ela fala sobre a pobreza moderna como se fosse a mesma do século XVIII, quando as pessoas estavam realmente passando fome. Mesmo nos tempos do meu pai, que nasceu em uma área pobre de Londres, havia crianças sem sapatos, que não comiam mais do que uma vez por dia. Mesmo isto tudo se foi.
Eu mesmo presenciei coisas que hoje seriam consideradas pobreza, que hoje não se vê. Quando eu era estudante, não havia bom aquecimento nas casas, e muita gente passava muito frio. Hoje isso seria considerado uma pobreza intolerável, e naquele tempo era comum.
Então a pobreza está em permanente redefinição no discurso público. Eu estava vendo a televisão no elevador do meu hotel, por exemplo – o único lugar em que assisto televisão, porque nos elevadores agora é compulsório –, e fui informado de que Bill Gates crê que o Brasil é um país onde a pobreza pode ser eliminada nos próximos 20 anos. Isto é ridículo: mesmo que a renda de cada um no Brasil se multiplicar por 4 ou 10, as pessoas continuarão dizendo em 20 anos que existe pobreza.
Então a pobreza é uma comparação?
Sim, uma comparação. A pobreza depende de com o que você está se comparando. Você está se comparando com o que você gostaria de ser? Ou como são outras pessoas? O que torna as pessoas pobres? Talvez no Nordeste do Brasil haja aquela pobreza inconfundível a que geralmente nos referimos: não ter o suficiente para comer ou não ter um lar. Mas há pobreza muito mais grave no mundo.
Costuma-se pensar em uma correlação entre a pobreza e a criminalidade. Não existe tal correlação, ou a pobreza nem sequer “ajuda” na criminalidade?
Isto é um absurdo monstruoso. Na Grã-Bretanha, em 1927, houve 110 roubos nas ruas catalogados pela polícia. Em 1995 houve 75.000. Tal aumento absurdo não pode ser devido à pobreza, pois ela não aumentou. A pessoa mais pobre hoje não seria chamada de pobre em 1927 – então a pobreza não pode ser a causa do crime. A criminalidade aumenta e nosso padrão de vida também, ao mesmo tempo. E a sociedade também se torna mais igualitária. Então deve ser algo acontecendo na cabeça das pessoas.
Eu conversei com uma senhora aqui que veio de um histórico de pobreza que descreveu como tentou mudar seu padrão de vida através da educação: as pessoas a seu redor se opuseram. Então muitos dos obstáculos para os pobres está na cabeça das pessoas – ao menos hoje em dia, quando não há escravidão ou a miséria famélica.
O pensamento de esquerda pressupõe alguma espécie de correlação. Em um de seus artigos, A pobreza do mal, o senhor cita Shakespeare e diz que “qualquer estudo sobre a violência que não leve em conta os estados de espírito é incompleto e, na minha opinião, seriamente insuficiente. É Hamlet sem o Príncipe.” Toda a questão da criminalidade então é uma questão moral?
É claro que é levemente mais complicado do que isso… (risos) Mas caso você queira dizer que a pobreza gera o crime, você está dizendo que todos os pobres são criminosos? Eles não têm escolhas e pensamentos só porque são pobres? Eu passei minha vida falando com centenas de criminosos e nunca passou pela minha cabeça que eles não tivessem pensamentos. É como se eles não fossem inteligentes: é claro que eles podem ser pouco letrados, mas isto não é o mesmo que não ser inteligente.
Uma vez um criminoso, que havia sido preso diversas vezes por roubar casas, me perguntou: “Doutor, o senhor acha que meus roubos têm algo a ver com a minha infância?” (risos) Então eu disse: “Não, absolutamente nada a ver.” E ele ficou muito surpreso. “Então por que eu faço isso?”, e eu respondi: “Bem, eu acho que é porque você é preguiçoso e burro, e isto é algo para o qual não fui preparado para trabalhar”. Ele não ficou bravo, ele começou a rir – como pessoas normais o fariam. E nós nos damos muito bem. Noto que era verdade que ele teve uma péssima infância, mas assim que você se livra das mentiras, você chega à verdade.
Há uma retórica corrente de que todas as nossas falhas são devidas à nossa infância.
É sempre outra pessoa, nunca eu mesmo: “Eu não tive vontade de invadir aquela casa”. Mesmo que isto fosse verdade, isto teria as conseqüências mais anti-liberais. Afinal, não se pode mudar uma infância ruim, então este é um argumento para manter as pessoas na cadeia por mais tempo, não por menos. Pois eles não podem evitar. Mas eu não acredito que isto seja verdade. De fato, estatísticas demonstram que a maioria pára quando chega aos 30 anos.
Na Inglaterra, Sigmund Freud não é tão lido quanto no Brasil, com sua crença de que todas as nossas questões têm origem em nossa infância. Mesmo assim, este pensamento é comum na Inglaterra?
Mesmo sem Freud as pessoas acreditam nessa desculpa. É claro que pobres são seduzidos mais facilmente para a criminalidade, mas também é verdade, e as pessoas adoram esquecer disso, que a maioria das vítimas dos crimes também são os pobres. Então a criminalidade não é um benefício do qual os pobres podem usufruir – na verdade, é um obstáculo, um dos principais obstáculos, para que eles não enriqueçam. Eles sempre têm de pensar em um meio de trabalhar evitando criminosos. Minha mãe tinha medo de sair de casa à noite e ela estava certa. É algo que afeta a sua vida como um todo.
Os pobres então não conseguem enriquecer também devido à criminalidade?
Certamente não é o único obstáculo, mas é um obstáculo. Eu tive um paciente que queria ser um padeiro, o que é obviamente uma ambição bem modesta. Mas, para ser um padeiro, você tinha de ir para o trabalho bem cedo, e não há transporte público bem cedo. Mas onde ele vivia ele não conseguia ter um carro, pois ele era sempre roubado. Então ele não conseguia ser um padeiro onde ele morava – e para se mudar, precisava do dinheiro do seu trabalho. Este é um exemplo de como a criminalidade impede as pessoas de fazer coisas que são perfeitamente ordeiras, respeitáveis e decentes.
O pensamento anglo-saxão paga muito tributo à filosofia do senso comum. Vocês não usam muito a linguagem acadêmica. Os conceitos de direita e esquerda não acabam sendo muito abstratos e distantes da realidade?
Sim. Veja… eu não sou de apenas escrever anedotas, como o The Sun (risos). Mas creio que essas anedotas ilustram um princípio. Mas é preciso que haja algum tipo de dialética entre o abstrato e o real – ou o concreto, melhor dizendo. É isto o que espero que eu faça. Em toda sociedade sempre houve crime. Se você quer saber se a criminalidade aumenta ou diminui, ou como afeta a população, você tem de olhar além das histórias individuais. Por exemplo, já escrevi um artigo sobre os crimes na Nova Zelândia. Lá eu descobri que há uma taxa de crimes relativamente alta, o que é interessante, porque têm uma população pequena, relativamente rica e “igualitária”. Mas em 1950 a taxa de criminalidade apontava que a Nova Zelândia não tinha praticamente crime nenhum!
As estatísticas e experiências das pessoas dizem o mesmo: em 1950, as pessoas entravam nos bancos no meio da noite e saíam sem problemas, e não eram assaltadas. Mesmo os jornais eram simplesmente deixados nas bancas, e ninguém os roubava ou roubava o dinheiro que deixavam. Na Nova Zelândia, em 1950, houve 200 crimes violentos em todo o país. Em 1999, a população dobrou e houve 70 mil crimes violentos na Nova Zelândia. Não tem nada a ver com pobreza ou desigualdade, nem algo a ver com a minoria étnica māori. Exclua todas essas explicações e a criminalidade atinge o mesmo patamar.
Então o que causa a criminalidade?
Bem, isto eu não tenho tanta certeza para responder… (risos) Posso te garantir o que não causa a criminalidade. Mas certamente o que causar a criminalidade o faz por conseqüência do que se passa na cabeça das pessoas. Pessoas não são autômatos.
Em muitos lugares do mundo os índices de criminalidade estão aumentando, como no Brasil…
Na Europa eles se mantêm razoavelmente idênticos, mas qual o índice de criminalidade no Brasil de 1950 para cá?
Muito menor do que hoje, certamente. Mas em 2014 tivemos 64 mil homicídios catalogados, mais do que um ano na Síria.
Isto é verdade?! 64 mil? Claro, a população da Síria é diminuta, mas esta é surpresa alarmante!
O discurso público também costuma afirmar que educação é a solução para a criminalidade.
Muita gente na Inglaterra acredita nisso, e nosso sistema de ensino é compulsório. Mas não creio que ninguém esteja de fato ganhando educação. Elas apenas vão para a escola. E aquelas crianças que querem aprender são impedidas pelas outras crianças.
Então o senhor não acredita nesta panacéia da educação?
Depende do que você chama de educação. Quando o Estado começa a tomar conta da educação, ele está mais interessado no processo do que na realidade. Quando o governo diz que construiu mil escolas, ele não está interessado em dizer o que as pessoas estão aprendendo lá dentro. É apenas mais um aspecto de uma burocracia sem fim: você não sabe o que vai obter na escola.
O governo britânico decidiu que 50% das crianças inglesas devem ir para a Universidade. Quando você faz isso, apenas reduz o nível da educação, e o que acontece? O padrão da Universidade diminui, as crianças que pagam por isso – pois têm de fazer empréstimos para ir para a Universidade – apenas têm uma educação que não vale este preço – aliás, não vale nada – e saem com dívidas. Então tudo o que você está fazendo é obrigá-las a pagar pelo seu próprio desemprego. E o ciclo vicioso da burocracia faz com que mais empregadores perguntem: “Onde está o seu diploma?”
O que deveria ser feito é exatamente o contrário. Se 50% das crianças quisessem ir para a Universidade para se educar, seria uma coisa. Mas quando o governo é que faz isso, ele deprava tudo.
Note outros efeitos. Quando eu fiz faculdade, a idéia de que uma Universidade precisa ter seguranças seria completamente maluca. Era como um hospital. Ninguém iria atacar ninguém e não se imaginava violência. Você só tinha um porteiro, mesmo durante a guerra. Hoje, professores são atacados violentamente, assim como os alunos entre si.
A prisão em que trabalho é literalmente do lado do hospital em que trabalho. E há mais violência no hospital do que na prisão!
Thomas Sowell escreveu em um artigo que quem tira realmente as pessoas da pobreza não é o governo: são as pessoas que criam algo desejável para as pessoas ou que as tornem mais baratas, enquanto o Estado só concentra poder e dinheiro em suas próprias mãos. É uma abordagem válida?
O governo decide como fazer a tal “distribuição de renda”. Uma parte desse dinheiro, e creio que uma boa parte, fique nas mãos das pessoas controlando o Estado. E adicione-se a isso a corrupção. Eu não sou um fundamentalista do livre mercado, mas analise o caso da educação: o governo não educa bem as pessoas. Na Inglaterra, boa parte da verdadeira alfabetização ocorria antes de as crianças terem educação formal. Elas se organizam entre si. E são muito pobres: comparando-se aos pobres do Brasil de hoje, na década de 50 eles eram muito mais pobres. Mas eles fizeram seus filhos se educarem para um nível superior daquele deles próprios. Portanto, não é verdade que se o governo não fizer nada, as pessoas não terão educação.
O maior problema é que, nas sociedades modernas, as pessoas simplesmente não querem se educar. Há pessoas que não querem sequer aprender as palavras básicas para lerem um texto. Na Austrália, a situação dos aborígenes é péssima. Lá, ouvi uma mulher que cuidava de sua educação dizer que os aborígenes não precisam aprender a ler, pois leitura não está em sua cultura. E as pessoas dizem a sério. Há quem diga, por exemplo, que as crianças não precisam aprender a língua do próprio país em que vivem. É como acreditar que as crianças de áreas pobres não precisem aprender português, porque nestas áreas ninguém se preocupa com a gramática.
É um pensamento que alguns tentam aplicar no Brasil.
Mas como as crianças vão fazer sem o português padrão? Por exemplo, se você quer que as crianças muçulmanas permaneçam muçulmanas, você não poderia ter um método mais infalível. Este seria um método perfeito de fazer as crianças permanecerem na condição em que estão para todo o sempre.
Em alguns de seus livros, sobretudo em Nossa cultura… Ou o que restou dela, o senhor é muito crítico em relação à cultura popular. Então nunca mais podemos ouvir rock pesado e só devemos ouvir música clássica?
Eu nunca diria “Você não deve” para algo assim. Mas o que espero é que as pessoas percebam que isso não é muito profundo. Não satisfaz. Por exemplo, eu particularmente não gosto de rap. E algumas letras de rap são nojentas. Há glorificação do crime, e a forma como tratam as mulheres…
Antigamente, a música popular latino-americana era muito melhor do que a música popular de países angl0-saxões. Eu prefiro música árabe ou indiana – de praticamente qualquer lugar. Não vejo problema em usufruir da cultura popular, o perigo é quando se torna a única opção.
Uma hegemonia.
Uma hegemonia. Na prisão, um guarda era jamaicano. Então ele não era contra música popular por cultura. Mas ele percebeu que se ele deixasse os prisioneiros ouvirem o tipo de música que eles queriam, eles ficavam agitados e violentos. Se ele tocasse música barroca, eles ficavam calmos.
Precisamos de Bach para prisioneiros, então.
Exatamente! (risos) Eu diria que precisamos de cantos gregorianos. Então creio que muito da nossa agitação vem da música, e é muito difícil escapar disso.
Nos seus livros, o senhor critica pesadamente a Inglaterra. O senhor gosta do seu país? Pois o cenário que o senhor descreve da Grã-Bretanha nos seus livros é incrivelmente melhor do que o brasileiro…
Bem, a razão pela qual falo assim sobre meu próprio país é porque eu sou um patriota! (risos) Se eu não me importasse, eu não escreveria. Um país sempre deve pensar em ficar melhor, e não em se deteriorar. E também é uma coisa terrível o que estamos fazendo com as pessoas ao não falar a verdade.
E o que tem achado do Brasil, com todos estes problemas?
É claro que um país não é apenas as piores coisas que acontecem com ele. Então eu estou aproveitando muito o Brasil. Você poderia perguntar: “Como você pode vir para um país com 64 mil homicídios em um ano?”, mas o Brasil vai muito além disso. E todo mundo quer sair do lugar onde vive, acreditando que todos os seus problemas vão desaparecer. A grama do vizinho é sempre mais verde.
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