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Papo cabeça

A testa tatuada: entre o contrato social e a impunidade

Antes da indignação isolada, é preciso admitir que é a impunidade que gera fatos como o ladrão com a testa tatuada. Por Eduardo Perez.

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Jovem com testa tatuada: "Eu sou ladrão e vacilão"

Minha linha do tempo do Facebook ficou abarrotada das imagens, e críticas, acerca da atitude de dois homens que, nesse mês de junho, teriam tatuado a testa de um adolescente supostamente infrator com a mensagem: “Eu sou ladrão e vacilão”.

Alguns apontavam o ato de barbárie que, diz-se, teria sido cometido pela dupla, enquanto outros defendiam a conduta e a estimulavam.

Há uma lição que pode ser aproveitada por ambos os lados, se conseguirem colocar seus dogmas à parte.

O que nos une enquanto sociedade? É uma questão já abordada por inúmeros pensadores e que podemos reduzir, não sem prejuízo de diversas reflexões, a uma resposta: a sobrevivência.

Afirma-se que o homem é um ser social. É verdade. Mas também não deixa de ser, em muitos casos, egoísta e movido, em um primeiro momento, por seus apetites. Milhares de livros ao longo da história abordaram filosofias com o objetivo de indicar uma saída para o labirinto moral em que vivemos.

Na linha da tradição contratualista, defendida por Rousseau, Hobbes, Locke e outros, abrimos mão de uma parcela de nossa liberdade em extensão para que possamos viver o restante em profundidade.

É possível ser totalmente livre? Quando o homem é totalmente livre? Quando não existe nenhuma limitação externa às suas pretensões, aos seus apetites e desejos. Nesse caso, e utilizando-se desse conceito, repito, de forma grosseira, talvez o único indivíduo livre realmente fosse o Super-Homem, aquele de Kripton – não o de Nietzsche.

No estado natural, sem o apoio da sociedade e também sem as restrições que ela impõe, seu sistema legal e moral, a pessoa pode fazer o que quiser. Quer comer? Pega aquilo que estiver ao seu alcance. A comida está com outra pessoa? Se você for mais forte, pode ir lá e tomar. Não há leis, não há polícia, não há Estado.

Quer sexo? Não precisa ser consensual, a pessoa pode forçar o mais fraco.

A medida da liberdade no estado natural, portanto, é a força. A pessoa é tão livre quanto é forte. Você é tão livre quanto sua força permitir. Em outras palavras, se chegar alguém mais forte que você, sua liberdade não existirá. Não é que ela será diminuída, ela não existirá.

Sem as restrições legais impostas pela força do Estado e sem qualquer limitação moral, sendo você o mais fraco, seus bens poderão ser tomados, você poderá ser reduzido a escravo, vítima de violência sexual, até mesmo morto e, quem sabe, devorado. É o que acontece em áreas dominadas pelo crime ou em países sob ditaduras.

Vendo isso, a humanidade percebeu que era muito mais negócio se juntar do que se estranhar. Juntos, poderiam construir abrigos, lutar contra feras maiores, dividir tarefas, valer-se do tempo livre que estaria sendo usado colhendo comida e fugindo de predadores para inventar e descobrir.

A humanidade, assim, abriu mão de sua liberdade em extensão (não posso fazer tudo o que quero a hora que quero), para viver o restante em maior profundidade (mas aquilo que me é dado fazer o é em segurança).

Só que não bastou se unir, foi necessário desenvolver todo um sistema de hierarquia e controle para que fosse viável a resolução dos conflitos sociais e a punição daqueles que quisessem parasitar ou destruir essa segurança construída a muito custo.

Foram criadas as normas, no início, vinculadas diretamente à moral e à religião, e, aos poucos, delas descolando parcialmente. Essas normas diziam o que não poderia ser feito, como não roubar, não matar e não estuprar, prevendo sanções a quem descumprisse, que variavam de penas de indenização à vítima até tortura e morte do infrator.

Eram, e são, penas impostas pelo poder soberano, aquele líder que administra a aldeia, a vila, o reino.

Em suma, houve a necessidade da criação de um poder que fosse maior que o poder de qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos, e, para que esse poder não fosse tirânico e utilizado para os interesses particulares de quem o titularizasse, foi necessária também a criação de um sistema que controlasse qualquer abuso.

Resumindo, a humanidade se reuniu em grupo para que pudesse viver de modo tranquilo e desenvolver seus potenciais individualmente, e a função do estado organizado é servir ao povo, e não o contrário.

A parcela de liberdade que cada pessoa aliena em favor do grupo é ínfima, se comparada às vantagens de não ter que passar a existência comendo o que achar pelo caminho e escapando das feras.

Pode-se argumentar que a teoria contratualista está fora de moda, já que existiria parcela da população que não obtém vantagem de sua existência e nem adere aos seus termos. São críticas que exigiriam mais espaço para serem desenvolvidas e contestadas, mas, de todo modo, a teoria contratualista ainda soa racional e adequada.

Mas e quando o Estado organizado não cumpre com sua obrigação? E quando você entrega não só parcela de sua liberdade para o estado, como também parcela dos seus bens (tributos), e esse governo não devolve segurança, em sentido lato?

O tecido social começa a rasgar, e é aí que entra a testa tatuada.

O que a maioria esmagadora das pessoas quer? Viver em paz. Fazer aquilo que é de sua inclinação com tranquilidade, sem violência externa e sem ingerência estatal, e conta que o governo crie condições para isso.

A pessoa cumpre as leis impostas por esse estado, paga os seus tributos, age de forma mais ou menos sociável com seus pares.

Mas percebe que não possui segurança nenhuma. Vê os índices alarmantes de violência nas ruas e a corrupção em todos os poderes e esferas da República, tudo crescendo de forma exponencial.

O cidadão, mais do que ver a impunidade, a sente na pele: desemprego, alta carga tributária, expansão do crime, mais de 60 mil homicídios anuais, quebra de empresas públicas em virtude de desvio de dinheiro, uso dos equipamentos estatais para fins particulares e um sem número de outras situações.

Tudo seguindo uma linha “despenalizadora” há décadas, fórmula adotada pela elite intelectual brasileira que se mostra falha pelos frutos gerados, mesmo após renomados políticos e teóricos, críticos de medidas e entendimentos que tachavam de “fascistas”, terem obtido acesso ao poder, aplicado suas teorias na prática, e deixando uma herança ainda pior do que quando assumiram.

A sensação de impunidade gera monstros.

Quando o indivíduo pode satisfazer seus apetites mais degenerados e não possui nenhum poder externo que o impeça, além de ausência absoluta de parâmetros morais e éticos, ele tende a violentar o outro, não o identificando como um igual, mas como um objeto.

Em suma, a ausência de sanção produz criaturas sem limites. Parasitas do contrato social, essas aberrações éticas auferem toda sorte de proteção estatal, em maior ou menor grau de acordo com a posição que ocupa, clamando pela garantias dos seus direitos, mas não assumem nenhum dever perante a coletividade e o próximo.

É justa a indignação do indivíduo que vê aquele que praticou inúmeros roubos sendo posto em liberdade logo em seguida, ou do que traficava toneladas de drogas saindo solto antes mesmo dos policiais que fizeram seu flagrante deixarem a delegacia, ou, pior, que observa muitos agentes que se amparam na proteção de cargos e estruturas estatais para nunca responderem por seus crimes nem mesmo se aproximarem da prisão, gozando das vantagens e patrimônios desviados do dinheiro do contribuinte.

Esse cidadão não entende as complexas teorias acadêmicas que explicam que, quanto maior a quantidade de crimes, menos punição deve haver, que a melhor saída é o diálogo, a compreensão e balões brancos pela paz.

O senso de justiça está entranhado na alma humana para além das racionalizações e relativizações da elite acadêmica e política brasileira, e mais razão encontra a indignação do cidadão iletrado, mas honesto, do que as copiosas e maçantes teses que buscam explicar como um pinheiro pode gerar maçã.

Em outra oportunidade vamos abordar esse ponto da impunidade, se o Brasil prende ou não demais e o tratamento ético da sociedade, mas o que foi dito basta para explicar a reação violenta fruto do descrédito do estado e da fragilização do contrato social.

Para além de criticar ou defender a atitude dos homens que teriam tatuado a testa do adolescente dito infrator, é preciso entender esse fenômeno para impedir que a sociedade caía em ruínas, o que, lamentavelmente, parece ser o objetivo de alguns.

Com seu discurso de abolição dos crimes e das penas, os militantes dessas ideias estão conseguindo o inverso, ampliar a violência.

É certo que o Estado precisa ter um limite, e em muito boa hora alguns comportamentos outrora punidos criminalmente deixaram de sê-lo, como foi o caso do adultério, questão sobre a qual não deveria haver ingerência estatal, mas controle do próprio senso moral da sociedade.

Contudo, há um exagero em se buscar a despenalização de tudo e a vitimização do agente criminoso. A quantidade absurda de entidades de proteção aos que praticam crimes e a absoluta ausência de amparo para as vítimas e aqueles que combatem o crime já é percebida pelo cidadão comum, há tempos, como uma insustentável inversão de valores.

A aplicação da lei e da punição exclusivamente pelo Estado teve por objetivo afastar a vingança privada, de modo que a aplicação da pena servisse de lenitivo à vítima e/ou aos seus familiares, que perceberiam que a conduta criminosa não restou sem resposta, de exemplo para a sociedade, de maneira que outros indivíduos fossem dissuadidos de realizar práticas semelhantes sob pena de punição equivalente, e para o criminoso em si, com o objetivo de afastá-lo do corpo social, protegendo a sociedade de novas condutas delituosas, e, se possível, recuperando-o, o que não depende só do Estado, mas do agente criminoso ter o desejo de mudar sua conduta.

Quando o Estado deixa de punir, estimula o criminoso a continuar a praticar seus crimes, e eis que não haverá consequências, e novas pessoas não são demovidas de praticar condutas criminosas, ao mesmo tempo em que engendra na população em geral a descrença no Estado como a melhor forma de vida e como suficiente para a satisfação das necessidades do corpo social.

Obviamente, os crimes passam a crescer e, sem qualquer tipo de proteção, o indivíduo busca meios de ou evitar o crime, ou de vingar-se com suas próprias mãos.

Daí surgem os adolescentes com a testa tatuada, ou acorrentados a postes em vias públicas, criminosos espancados e às vezes até mortos em linchamentos – isso quando um inocente não é confundido ou indevidamente acusado de um crime e “justiçado” pela população.

Logo em seguida a esses fatos, os mesmos defensores da despenalização, isto é, da impunidade, surgem para acusar os que praticaram essa conduta contra os criminosos e pedem, curiosamente, a punição deles. Punição sumária e pungente, a mesma punição que em outras oportunidades se manifestaram contra.

O discurso de vitimismo do criminoso e de descriminalização de condutas tipicamente nocivas, ou, no mínimo, de despenalização pelo Judiciário, que, por vezes, com sua interpretação enfraquece a já tíbia lei penal brasileira, tem o efeito contrário ao esperado e serve apenas para aumentar a violência, desacreditar o Estado e romper com a segurança do contrato social e os ajustes que ele necessariamente precisa.

Segundo o ordenamento jurídico em vigor, é claro que aquele que agride alguém injustamente ou, no mínimo, busca fazer justiça com as próprias mãos pratica um ato ilícito e deve responder por ele. Contra ou a favor da testa tatuada, não é esse o ponto. É preciso entender a causa dessa consequência para impedir que volte a acontecer.

O principal é aproveitar o fato para refletir sobre como o Brasil tem lidado com a impunidade, seja no âmbito do Legislativo e do Judiciário, seja na esfera das universidades, academias e produção doutrinária.

Um país fundado em direitos egoístas individuais e responsabilidades diluídas coletivamente gera o que temos visto: violência e corrupção. Como mencionamos no começo do texto, nos unimos para garantirmos o direito um do outro, mas, para isso, precisamos antes reconhecer que temos deveres também uns para com os outros.

Nenhuma sociedade baseada apenas em direitos sobrevive.

Um pinheiro nunca gerará uma maçã, não importa quantos doutores digam isso até morrer. E, a continuarmos a espiral descendente de violência, talvez não sobre ninguém para afirmar ou negar a verdade.

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Assuntos:
Eduardo Perez Oliveira

É pós graduado em Processo Constitucional pela UFG e em Filosofia pela USCS. Mestrando em Filosofia pela UFG. É juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, escritor, articulista e palestrante.

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