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Crônica da semana

O suado caminho da história: novos começos

Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo

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Agora que nem brisa golpeia o Adriático, que as cadeiras estão no lugar e, numa árvore próxima, disparei alguns tiros, alvejando-a; agora que vejo o mapa do mundo me desafiando na parede de uma casa trêmula, no forte Bastiani e penso, nesse dia inútil, em como compor uma sonata; agora que sei de cor as leis do Maradagal, posso falar um pouco mais sobre começos. 

 

A verdade é que boa parte dos meus leitores (dois, pra ser mais exato) me abordaram a respeito do meu texto da semana passada. Muito educadamente, quase me esmurrando, disseram: “você esqueceu de mencionar grandes inícios de histórias, Carlos!” 

Como sou um sujeito democrático (já fui até chamado de sujeitinho formidável, vejam vocês!) lancei uns impropérios e os mandei às favas. 

Mas, refletindo um pouco, bem que eles tem razão. Deixei de fora grandes inícios, grandes conversas. Falarei brevemente de mais alguns desses instantes. Como esquecer de 

“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes.”

do Nabokov?

 

Muito foi deixado de lado mesmo. Resolvi então fazer uma visita à minha surrada biblioteca. Rafael, o pintor, disse que a natureza o fez sensível aos encantos femininos. Posso dizer que a minha natureza é como a dele. Bem, voltemos ao objetivo do texto: começos.

A seleção dessa vez obedeceu aos mais variados critérios, o que equivale a dizer que não obedeceu a nenhum. Manuel Antônio de Almeida, em Memórias de um Sargento de Milícias, nosso grande romance: “Era o tempo do rei”. E devia ser mesmo.

Carlo Emílio Gadda explica, no começo de O Conhecimento da Dor:

 “Naquela época, entre 1925 e 1933, as leis do Maradagal, que certamente não é um país rico, davam aos donos de terras a possibilidade de pertencer ou não às associações provinciais de vigilância noturna (Nistitúos provinciales de vigilancia para la noche)”.

 

E o belíssimo começo de Lições de Abismo, do Gustavo Corção, que, enquanto espera, pensa que há alguma ordem nele mesmo, mas que essa ordem vai se organizando aos poucos e pergunta: “Mas não será sempre assim? Quem poderá inventariar a disparatada soma de tentativas, de extravios, de dias inúteis, de sofrimentos perdidos, que precederam a composição de uma sonata?”, e conclui: “no entanto, em meia hora, ela chega diante de nós, diz tudo, e agoniza mais depressa do que as rosas.” Nunca mais tive dias inúteis desperdiçados.

Kunt Hamsun que depois desse começo: “Naquele tempo, com a barriga na miséria, eu vagava pelas ruas de Cristiânia, cidade singular, que deixa marca nas pessoas…”, só poderia chamar seu livro de Fome. Assim como Iris Murdoch, “O mar que está diante de mim… “, chama seu romance de O Mar, O Mar. Graciliano Ramos demonstra a ineficácia da divisão do trabalho, do pensamento coletivista, na concepção e produção de um livro, em São Bernardo. 

“Pare com isso, idiota”, pede o personagem de O Agressor, de Rosário Fusco, após ser acordado pelo barulho da construção fronteira. Quem nunca? A verdade fulminante de Tolstoi: ” Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, no começo de Anna Kariênina

 

“Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus Esteja. Alvejei mira em árvore , no quintal, no baixo córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade.

Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

 

“Em tardes assim como as de hoje, cansado de esperar não sei por que milagre, desanimado diante do mapa do mundo que da parede me desafia desde a meninice, começo a pensar no Senhor Ventura.”

Miguel Torga, Senhor Ventura

Thomas Bernhard desata o carretel frenético de seu O Náufrago :

”Mesmo Glenn Gould, nosso amigo, e o mais importante virtuose do piano deste século, não passou do cinquenta e um, pensei ao entrar na pousada.”

 

A Criança que prefere um livro a um chocolate, em Auto de Fé, de Elias Canetti. O misterioso telefonema em Memento Mori, de Muriel Spark, feito a pessoas idosas contendo a seguinte ameaça: lembre-se de que vai morrer!. 

“Estou vivendo na Vila Borghese. Não há um resquício de sujeira em parte alguma, nem uma cadeira fora do lugar. Estamos completamente sozinhos aqui e estamos mortos.”

Henry Miller, Trópico de Câncer

 

Taciturno e absorto, muito embora esteja bem junto do meu tio-avô – um desembargador aposentado – , viajo rente à janela do vagão D do trem noturno, no último banco do lado direito.”

José Geraldo Vieira, A Ladeira da Memória

Juan Rulfo coloca seu personagem em Comala, após receber da mãe moribunda a notícia de que lá vivia seu pai, um tal Pedro Páramo.

Grande gênios conversam ao longo dos séculos. O “Arma virunque cano” ( as armas e um varão eu canto), de Virgílio, se transforma em “As armas e os barões assinalados”, de Camões.

Abro uma exceção para o começo de um conto do Herberto Helder, cujo nome me escapa: “Se eu quisesse, enlouquecia.” 

Os mais simples e, no entanto, belíssimos, fica por conta do Nobel japonês Yasunari Kawabata: 

 

“ – Não faça nenhuma brincadeira de mau gosto, por favor. Não vá, por exemplo, enfiar o dedo na boca da menina adormecida – recomendara insistentemente a mulher da hospedaria ao velho Eguchi.”

A casa das Belas Adormecidas

“Atravessava-se um longo túnel e lá estava o País das Neves. A noite assumiu um fundo branco. O trem parou num entroncamento.”

O País das Neves

 

Não sei bem a ordem dos diálogos platônicos, mas o começo de A Apologia de Sócrates me dá a impressão de que ali, sem saber qual a impressão que os acusadores deixaram nos atenienses, Sócrates revela e faz a paixão de conhecer possuir o ser humano.

Será que T. S. Eliot desmente a doce aragem de abril, de Chaucer, dizendo que esse é o mais cruel dos meses?

 

“Nomeado Oficial, Giovanni Drogo deixou a cidade numa manhã de setembro para alcançar o forte Bastiani, seu primeiro destino.”

Dino Buzzati, O Deserto do Tártaros

 

“Em tempos como esses (que muitos creem serem os primeiros), em que não só nas roupas a moda dita as regras como controla também as ideias, contar uma história, sobretudo uma história como essa, biográfica, é tarefa das mais inúteis. E, vindo de uma linhagem tão improdutiva, também eu resolvi preencher o mundo com algumas trivialidades. Contarei, portanto, uma história sem pé nem cabeça para os dias atuais, ou seja: com começo, meio e fim.”

Gunnar Adolfsson, Mingau Sem Aveia ou A Estupidez a Priori Logo no Café da Manhã

E Hermann Broch nos enche de beleza ao descrever o Adriático encontrando a armada imperial e, numa das suas naves, vítima de enjôos, e com o signo da morte traçado na sua fronte, vinha Virgílio, o autor da Eneida.

 

“A casa parecia suspensa na luz trêmula, e tudo afastava de si, em esquisito encantamento.”

Cornélio Penna, Dois Romances de Nico Horta

Nunca passamos pelo mesmo rio, diz Heráclito. Nunca começamos um mesmo livro do mesmo modo. Numa certa medida, talvez não a mais apropriada, o livro deve ter uns 20 centímetros de altura, para caber bem na estante. 

 

“- Algum compromisso?

– Não. Apenas o desejo de fugir da sua agradável companhia. – E com a bengala afastou o sujeito para o lado, despedindo-se já à distância com um brusco aceno.”

Dennis Adamastor, Quem É o Agradável Sujeito com a Bengala?

 

Eu também sinto que “meu pai ou minha mãe, ou na verdade ambos, já que estavam igualmente obrigados a tanto, tivessem posto mais atenção no que faziam quando me geraram; que houvessem levado na devida conta o quanto dependia do que então faziam”, como o Tristram Shandy, de Laurence Sterne, esse romance memorável. 

A lista, claro, é inesgotável. As palavras que, segundo Borges, um dia foram apenas som e que depois chegaram a ser letras, despertam no espírito as mais diversas sensações. E, se é de fato verdade que a inteligência é o balanceamento, no espírito, das nossas diversas forças vitais, o intelecto, as emoções e, por que não, as indisposições físicas, são elas, as palavras, que fornecem o mais sútil dos alimentos para manter a devida hierarquia nas funções. 

Esses são alguns momentos nos quais os mais brilhantes homens que tropeçaram por aqui deixaram sua marca ou, sem muito equilíbrio ainda, o começo de suas grandes Histórias.

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Assuntos:
Carlos de Freitas

Carlos de Freitas é o pseudônimo de Carlos de Freitas, redator e escritor (embora nunca tenha publicado uma oração coordenada assindética conclusiva). Diretor do núcleo de projetos culturais da Panela Produtora e editor do Senso Incomum. Cutuca as pessoas pelas costas e depois finge que não foi ele. Contraiu malária numa viagem que fez aos Alpes Suiços. Não fuma. Twitter: @CFreitasR

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