O Estado Islâmico é um Estado? É islâmico?
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O Estado Islâmico (Daesh, ou داعش) chamou a atenção do mundo por suas decapitações “cinematográficas”, ou, na verdade, por filmar e mostrar ao Ocidente um método de punição típica do islamismo por toda a sua história, mas que choca a noção de crime e punição de uma civilização baseada na filosofia grega e no cristianismo.
O que mais complica o debate a seu respeito, já que uma decapitação é uma linguagem bastante universal, além do vezo típico de tratar qualquer tradição milenar islâmica como “reação ao capitalismo estadunidense”, é seu nome.
Por que o Estado Islâmico se chama Estado Islâmico? Por que Estado? Ele é islâmico?
A tônica mundial das premissas se deu quando Barack Hussein Obama fez seu famoso discurso dizendo: “Vamos deixar duas coisas claras: O ISIL não é islâmico. Nenhuma religião compactua com a morte de inocentes, e a vasta maioria das vítimas do ISIL é de muçulmanos”. Todo o palpitariado mundial tratou suas palavras como Verdade Revelada.
Obama, pouco tempo depois, diria que o Estado Islâmico foi “contido” e que “não representa mais uma ameaça”. Isto foi pouco antes dos atentados ao Charlie Hebdo, do massacre em Paris no fim de 2015, do atentado em Bruxelas no começo de 2016. Infelizmente, podemos adicionar: and counting. Obama, cuja avó é muçulmana, também já declarou coisas como “O futuro não pertence àqueles que ofendem o profeta do Islam” ou “O mais doce som que eu conheço é o chamado à oração muçulmano” (mais aqui).
Obama usa o nome ISIL (Islamic State of Iraq and the Levant), ao invés do mais usado ISIS (Islamic State of Iraq and Syria). A distinção é cabal, importantíssima e definidora do poder dos terroristas que mais matam no Ocidente.
O Levante compreende o oeste da Síria, o Líbano, o oeste da Jordânia, a Palestina (Faixa de Gaza e o West Bank), Israel e o Sinai, no Egito. Outras fontes também consideram parte da Turquia. O Levante, portanto, desde a Antigüidade, ou talvez desde a pré-história, engloba o que foi a parte mais rica do mundo por milênios, enquanto civilizações surgiam e caíam na Europa, Ásia e arrebaldes.
Ou seja: ao usar o termo “ISIL”, Barack Obama comete um faux pas, um ato falho revelador: o Estado Islâmico, que ele clama não ser islâmico (e que nunca possuiu um nome uniforme, sendo uma dissidência ainda mais violenta da al-Qaeda com atuação no Iraque a na Síria) possui uma espécie de autoridade sobre regiões que ainda nem sequer controla. E a razão disto é, justamente, a religião islâmica.
Obviamente, Barack Hussein Obama pode confiar na ignorância do Ocidente em relação ao islamismo, e pode apostar alto na incapacidade da classe falante e da intelligentsia de ser coerente. É quase lucro certo.
O islamismo, uma das religiões mais territoriais do mundo, possui como cidade sagrada Meca. Maomé iniciou a pregação do islam em Meca, praticamente de porta em porta, mas foi expulso da cidade. Refugiado em Medina, escreve versos mais aguerridos do que aquelas da época de Meca (os famosos versos de “não maltratar judeus e cristãos”, que sempre são citados em discussões sobre o islamismo ser a “religião da paz”).
Maomé volta a Meca com espírito belicoso, irascível. Pela jurisprudência islâmica, os versos de Medina, por serem posteriores, têm predominância interpretativa sobre os antigos versos de Meca.
A migração de Meca para Medina e a conseqüente conquista da cidade pelo islamismo são tão importantes que marcam o início do calendário islâmico, a Hégira (Hijrah ou هِجْرَة).
É o movimento de conquista pela migração que os muçulmanos buscam fazer em massa, repetindo os feitos do “profeta” conforme descritos nos Hadith. O que explica a “crise de refugiados”, que o Ocidente, sem conhecer tais conceitos, trata como mera conseqüência geopolítica. A maioria dos xiitas rejeita os hadith – e não é mera coincidência que cerca de 90% dos muçulmanos imigrando para a Europa a partir de 2012 sejam sunitas, o mesmo braço muçulmano do Estado Islâmico.
Seu objetivo é a conquista mundial para instalar a “paz” (salaam, سلام), palavra que significa pacificado, submetido, indisputado. Ou seja, o reino da shari’ah, da submissão (Dar al-Islam), em oposição ao reino da guerra (Dar al-Harb), o mundo não ordenado pela shari’ah. O “nosso” mundo.
Para tal, o islam, que não é apenas uma religião, mas um código cosmológico, metafísico, moral e até civil – há regras no islamismo para casamentos, contratos comerciais e tipos permitidos de comida – precisa também de seu lado político. A conquista pela dominação territorial já é conhecida.
O que poucos ocidentais entendem é o conceito de califado. Ou seja, quando uma grande autoridade em assuntos teológicos muçulmanos se auto-proclama um califa (خليفة), um sucessor ou representante de Maomé.
O califa é um chefe de Estado, e teoricamente tem poder sobre toda a Ummah, a comunidade mundial dos muçulmanos. Apesar de isso indicar que só existiria um por vez, o califado original foi se dividindo, gerando até o conflito entre o Califado Fatímida e o Califado Abássida. Graças a tais conflitos periféricos, o califado que despontou como o principal foi o do Império Otomano, que durou até o seu esfacelamento na Primeira Guerra Mundial.
O primeiro califado foi o chefiado por Abu Bakr, sogro de Maomé. O que o Estado Islâmico está fazendo é, justamente, propondo um novo califado, afirmando que toda a Ummah lhe deve obediência. Seu atual líder e auto-proclamado califa é Abu Bakr al-Baghdadi, nascido Ibrahim Awad Ibrahim al-Badr.
Um califado é, por definição, um Estado. Estados, em sentido moderno, ocidental e ONU-friendly, precisam ser reconhecidos por outros Estados. Por isso a Palestina, dominada pelo grupo terrorista Hamas na Faixa de Gaza e com a Autoridade Palestina reclamando os mesmos territórios e mais a Cisjordânia, não é reconhecida por toda a ONU como um Estado. Antes do conflito entre judeus e palestinos, é imprescindível entender o conflito entre Hamas e Autoridade Palestina.
O Estado Islâmico, se auto-proclamando um califado (é como se pode haver um califa hoje, após o esfacelamento do único califado que restou do original, o Império Otomano), não é um Estado em sentido moderno, mas o é para seus admiradores e, não só para eles, como boa parte da Ummah que o reconhece como califa.
Curiosamente, a esquerda quer eternamente o reconhecimento da Palestina como um Estado sob controle do Hamas, mas esta mesma esquerda, como mostra o sr. Barack Obama, recusa-se a chamar o Estado Islâmico de “Estado”, justamente porque ele mostra já em seu nome como é, de fato, um Estado Islâmico aos olhos ocidentais. E como os Estados islâmicos sempre foram em sua história com a shari’ah.
Afinal, é a shari’ah do Corão que prevê decapitações, 5 orações voltadas para Meca (originalmente, Jerusalém, mostrando a territorialidade muçulmana) por dia, o pagamento do imposto da jizya ( جزية) pelos “infiéis”, ou sua decapitação, o leilão de escravas sexuais capturadas de exércitos e povos inimigos, tratados civis e comerciais seguindo a lei islâmica, sistemas de assistência social aos pobres etc etc etc.
Afinal, o salafismo, corrente que o Estado Islâmico segue, busca justamente o islamismo tradicional, mais próximo ao de Maomé. São versos do Corão que os exortam a matar infiéis (2:191), decapitá-los (47:4) ou açoitar adúlteros e apedrejá-los até a morte (Sahih Muslim, 17:4192).
A única diferença disto para todo o reinado de Maomé e dos Estados islâmicos que o sucederam, sobretudo os que reconhecem um califado, é que desta feita há vídeos viralizados no Youtube de seu interior e seu plano expansionista está acelerado e globalizado.
Todo o problema está apenas em o Ocidente admitir como funciona um Estado islâmico – e o islamismo em si.
Uma passagem pela história dos califados e por um país aliado do Ocidente como a Arábia Saudita é mais do que suficiente para mostrar que apenas não tínhamos vídeos das decapitações – e que os “muçulmanos moderados” não são os “verdadeiros muçulmanos”, e sim justamente os “contaminados” por outras religiões.
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