Muhammad Ali: o ocaso das estrelas
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Muhammad Ali foi provavelmente o maior boxeador de todos os tempos, com uma técnica até hoje, literalmente, imbatível: enquanto todos os boxeadores ocidentais lutavam para força e robustez, Cassius Clay (seu nome de batismo) se esforçava pela agilidade e rapidez, características consideradas secundárias num esporte de contato absoluto.
Se especializando no aparentemente periférico, trazendo o que aparentava ser auxiliar para o cerne de sua técnica, Muhammad Ali foi quase imbatível (perdeu apenas 5 lutas em sua carreira). Mais: assim como gênios do quilate de Ayrton Senna, Pelé, Michael Jordan, Eddy Merckx, Anderson Silva, Mireya Luis ou Sebastien Loeb, mudou o próprio esporte, fazendo com que as pessoas parassem de assisti-lo assim que estes saíam de cena.
A técnica inesperada transformava qualquer grande adversário numa isca fácil. Era impossível lutar contra Ali pela técnica tradicional (lição que Bruce Lee não cansou de explicar em seus livros e ensinamentos em vida). Para conseguir bater em Ali – simplesmente acertá-lo – era preciso reestudar completamente o que se aprende em academias de boxe.
Para conseguir vencê-lo, não se treinava boxe: treinava-se Ali. Ele estava fora de todas as regras do esperado. Ou alguém se preparava para lutar contra Ali ou para lutar boxe. Os dois eram quase mutuamente excludentes. Sua técnica de defesa só conseguiu ser superada pelo argentino Nicolino Locche, “O intocável”, que não tinha grandes outras virtudes além da esquiva. Em feliz expressão do título de sua auto-biografia, Muhammad Ali era uma borboleta numa terra de lagartas. Ninguém esperaria que o melhor boxeador do mundo, afinal, pudesse ser comparado a uma delicada borboleta, e fosse o melhor por isso.
Tendo o auge de sua carreira nos emotivos anos 60, quando o mundo guinava tanto para a esquerda que a crença total do Ocidente não era mais se o comunismo seria uma realidade, mas quando o mundo inteiro iria ser tomado pela potência soviética, Cassius Clay sofreu no meio daquela década a mudança que o marcaria fora dos ringues: sua conversão ao islamismo. Ainda “fora de moda” no Ocidente, ou ao menos longe do centro dos noticiários, sua conversão, após lutar na África, foi dada como mera excentricidade quase estética. Algo como ter um amigo budista ou que acredita em tarô.
Já com o nome que o imortalizou, Muhammad Ali foi um dos maiores ícones daquilo que marcaria a torção do discurso e método da esquerda mundial: a mudança do eixo econômico do discurso para a questão das “minorias”, com forte verniz vitimista, que permitia e permite que até os mais abastados pelo capitalismo e os trabalhadores que mais enriqueciam com seus esforços, protegidos da Cortina de Ferro pela liberdade e mercado ocidentais, se sentissem vítimas de alguma grande injustiça social fomentada pelo pensamento tradicional.
Era a gênese de discursos como a luta anti-racismo, que trocava os elementos da luta de classes por questões estéticas e igualmente secundárias na organização social. Muhammad Ali passou a ser o garoto-propaganda do grupo terrorista Black Panthers, tendo inclusive feito um dos discursos mais famosos dos Panteras Negras como convidado especial.
Se a mudança de eixo mudou o mundo na década de 60 e quase mudou o Ocidente, pode-se dizer que a luta de Ali fora dos ringues logrou êxito sobretudo nesta década de sua morte. Hoje, o discurso progressista deixou de ser uma massa de operários guiada por líderes sindicais, preferindo circundar celebridades capazes de angariar jovens e qualquer pessoa com uma frustração que sirva como causa de revolta para se tornarem a nova infantaria revolucionária.
Muhammad Ali, um dos maiores esportistas do século XX e, o que é mais significativo, um dos maiores ícones americanos de um esporte com grande platéia americana, lutou com corpo e alma, literalmente, contra tudo o que a América, que lhe deu tudo, representa. Sem o poderio americano, a imprensa, o incentivo ao lazer como segundo motor econômico graças à poupança e ao acúmulo, sem a enorme industrialização americana que permitia que o país se dedicasse a atividades simbólicas, nada do que Ali era poderia ter acontecido. Na mais normal das hipóteses, seria um varredor de rua sem instrução. Na melhor, viraria um escravo do regime, como são os grandes esportistas vivendo sob o socialismo.
O esporte, na América que Muhammad Ali tanto se sentia desconfortável, movimentava a economia e dava oportunidades (e faculdades) a quem não conseguiria pagá-las de outra forma. Não era um culto neopagão ao corpo aliado à propaganda, como no caso socialista (ver A Origem Desportiva do Estado, de Ortega y Gasset, o Homo ludens de Johan Huizinga ou The KGB Plays Chess, de Yuri Felshtinsky e Boris Gulko). Era o que permitia Ali a ter suas crises espirituais, tão dependentes do tédio – aquilo que já foi spleen, já foi existencialismo, já foi náusea, já foi queda e se tornou -ismo adolescente.
Muhammad Ali buscou no islamismo a solução para seu vazio espiritual. O próprio nome que escolheu deixa antever a mentalidade do desajustamento moderno: sobretudo jovens que não “se encontram” nos padrões da sociedade, ao invés de viverem fora de uma infantil expectativa de aceitação, preferem um modelo de sociedade ou espiritualidade onde todos são iguais e homogêneos, crendo que igualdade e justiça se equivalem, que todos os desajustes são abolidos na submissão completa a um molde único universal. Quantos Muhammads e quantos Alis o islamismo produziu no mundo?
É o contra-fluxo quase inescapável da era da celebridade: alçadas ao estrelato por um talento específico, muitas vezes grandioso (no caso de esportistas, quase inegável), pessoas sem um estofo espiritual e intelectual para suas vidas apelam a ideologias e ícones pregadores para cobrir um rombo de solidez de personalidade.
Quando a celebridade ainda possui algum ranço social capaz de dar pasto ao vitimismo e à mentalidade revolucionária total, a festa é completa: Muhammad Ali era negro num estado sulista rural, como outros podem sentir uma “pressão” por estar fora de algum padrão: ser mulher, ser gay, não ser filho de Donald Trump.
O novo modelo de mentalidade revolucionária permite unir a bela vida nas sociedades cristãs e capitalistas do Ocidente, com toda a pompa de uma Quinta Avenida e a liberdade de expressão para criticar as bases civilizacionais em Washington e ainda ser louvado e convidado à Casa Branca por isso, sem os inconvenientes de ser mesmo um perseguido ou um sofredor nas mãos de tiranos, flagelo da pobreza ou tentar ter uma vida minimamente confortável sem tudo aquilo que o capitalismo produziu, a começar pela comida farta.
Muhammad Ali foi o molde a celebridade envolvida com política do século XX, que ganhou tanta rapidez em sua ascensão no reino das redes do século XXI: alguém com issues, pessoas com algum (ou extremo) talento, um carisma muito peculiar (o wit de Ali dificilmente se coadunaria com qualquer muçulmano no mundo) e uma vontade de mudar o mundo, desde que haja uma boa platéia.
Sempre pedem clichês, da igualdade ao respeito, da luta racial ao feminismo e ao multiculturalismo. Não mais enxergam a ordem social pelo prisma de uma lei para todos (uma criação que não foi de nenhuma das “minorias” defendidas), mas querem tomar o lugar de quem criou esta ordem. Muhammad Ali ele próprio declarava sem parar sua vontade de escorraçar “os brancos” do establishment e transformar seus cupinchas no próprio establishment.
Curiosamente, o belíssimo filme Ali teve como protagonista o não menos genial Will Smith interpretando o boxeador. Will Smith ele próprio não costuma perceber a grandeza de suas obras, como a do filme À Procura da Felicidade, em que, no papel de Chris Gardner, interpreta um representante comercial que vai à falência, dorme no metrô, tem de sair correndo de um estágio não remunerado para conseguir vaga em um abrigo para moradores de rua com seu filho – tudo para, com seu próprio talento, se tornar um dos investidores de maior sucesso na gloriosa história americana.
Chega a chocar ver um ator tão brilhante, fazendo uma história tão sensível, se submetendo aos flertes com a cientologia e protagonizando um show de vitimismo barato com o último Oscar, que não teve indicação de atores negros.
Assim também foi Muhammad Ali: um gênio dos esportes que, numa era de celebridades palpiteiras, tentou ser um símbolo de uma luta que ia contra tudo o que ele próprio era. Concretizando seu islamismo sufista e o terrorismo Black Panther (homenageado no último Super Bowl, embora Marcelo Rubens Paiva nada tenha entendido e tenha até encontrado um “racismo branco” ali), a América seria um país completamente diferente.
Não um país melhor, como crêem os socialistas seguidores de celebridades, modismos e -ismos do século XXI: seria um país em que nunca poderíamos render loas ao talento dentro do ringue de Muhammad Ali.
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