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Você ainda acredita em NY Times?

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O NY Times, principal jornal americano, vive tempos difíceis. Teve de alugar metade do seu prédio para pagar suas dívidas, não consegue surpassar a imagem de um jornal de ricos alienados, vê sua tiragem minguando, sua influência se evaporar diante da população americana (é incapaz até mesmo de arranhar o fenômeno Donald Trump), demitiu um enorme contingente de jornalistas para não fechar as portas, terceirizou setores inteiros e enfrenta a maior crise de confiança perante a população americana (e mundial) de sua história – o mesmo que a Rede Globo enfrenta no Brasil.

Contudo, basta que uma reportagem do NY Times diga qualquer coisa sobre o Brasil ou algum evento de interesse do noticiário brasileiro no mundo para que todos os jornais do país se curvem imediatamente à sua autoridade. Deu no New York Times é inclusive o título do livro de Larry Rohter, o correspondente do jornal que foi quase expulso do pais por comentar, en passant, dos consabidos hábitos etílicos do então presidente Lula.

Se o NY Times disse tal coisa, tal coisa só pode ser a verdade mais canônica e indisputada da humanidade, como água ferver a 100° C ou triângulos não serem redondos. Assim falou o New York Times. Ipse dixit. O que “deu no New York Times” é considerado a Verdade Revelada, as tábuas da lei descendo o Sinai. Quem ousa ir contra o que diz ele, o único, o NY Times?

A reverência pelo jornal aumenta na proporção inversa de quanto ele já foi lido pelo acreditante do momento. Nem mesmo os evangélicos caudatários da doutrina Sola scriptura possuem uma reverência tão grande por um versículo no Livro quanto um jornalista brasileiro por uma manchete do NY Times.

Um americano que se informa por NY Times e pela CNN é ridicularizado como alguém no Brasil que diga que confia primeiramente na Globo e na Record, ou que se fie pela Folha e e G1. É um jornal para o típico público alienado nova-iorquino que nada conhece da realidade fora da ilha de Manhattan. Um jornalista brasileiro que cite o NY Times como fonte é saudado como o descobridor da pólvora. Um jornalista com fontes de respeito. Um modelo arquetípico. Um jornalista que, como Prometeu, vê a diferença entre o bem e o mal antes de eles se concretizarem no mundo.

De acordo com a notícia do dia, o governo Temer ganhou “medalha de ouro em corrupção” do jornal americano. Um jornalista divulga o fato, todos os outros portais, incluindo os mais concorrentes pelo mesmo público e os de tendência editorial mais antagônica, repetem a mesma notícia, na típica autofagia jornalística denunciada por Rolf Kuntz: jornais e jornalistas se alimentam do que outros jornais e jornalistas dizem. A realidade, se vai de encontro a um jornal, é uma fonte secundária e de menor peso do que o editorial e a manchete berrante de um colega de profissão.

O editorial do NY Times

No editorial Brazil’s Gold Medal for Corruption de hoje, não se lê que o governo de Michel Temer merece uma medalha de ouro como o mais corrupto do mundo: o Brasil, como um país, foi considerado um país com medalha de ouro em corrupção.

Não surpreende: um país como a América, com escândalos de corrupção colossalmente maiores do que a média dos europeus ocidentais (Mãos Limpas inclusa) só pode ficar assustado com o grau de corrupção brasileiro, sobretudo pós-PT. Se Collor tinha um Fiat Elba, se FHC enfrentou os Anões do Orçamento, as malversações do PT de Lula e Dilma envolvem cifras maiores do que o PIB de países subdesenvolvidos. Além, claro, da compra de poder que fere a separação de poderes da democracia e o financiamento, legal e ilegal, de ditaduras violentas, aliadas da ideologia do partido.

Portanto, o que dizem que o NY Times afirmou está completamente errado. Fosse Dilma Rousseff que continuasse no poder, o interesse repentino do jornal e do mundo pelo Brasil graças às Olimpíadas poderia escancarar a mesma reportagem. Não parece haver muitos jornalistas no país interessados em usar a realidade como fonte, e não o que algum espertalhão afirmou sobre o editorial. O contato com a verdade, no Brasil, é sempre via intermediários.

O NY Times, todavia, possui erros de reportagem do começo ao fim. O que explica sua baixíssima credibilidade entre quem lida cotidianamente com o jornal e pode ver a verdade dos fatos, muitas vezes inversa do que dizem as páginas do diário.

A publicação progressista abre comprando a litania da falta de mulheres e negros nos ministros indicados por Temer. A “pauta” foi feita por spin doctors da própria esquerda brasileira, que precisava criticar o recém-empossado presidente logo no primeiro dia,para causar uma impressão de “governo injusto”. Tal fato não é dito pelo Times.

Nem que a presidente afastada Dilma Rousseff também tinha apenas um negro entre seus ministérios em muito maior número: justamente o da “Igualdade Racial”, que ninguém sabe para que serviu. Certamente, não para promover a igualdade racial entre ministros. Foi apenas o Ministério da Cota, o Ministério para dizer que existe. Nem para fazer pressão no próprio governo serviu.

A grande tônica do artigo é um questionamento que precisa de olhos americanos para se enxergar o Brasil. Os jornalistas e membros do palpitariado que tentam tirar conclusões para nossa própria realidade apenas atiram para longe do alvo.

O que o NY Times questiona é como um governo recém-empossado pode continuar com ministros envolvidos em denúncias de corrupção, e como Temer, em menos de um mês de governo, já demitiu três ministros por problemas com a Justiça (o último, na verdade, por tentar dar uma “carteirada” num vôo para Curitiba, o que tampouco é mencionado).

Até se poderia dar uma colher de chá para um dos jornais menos confiáveis do planeta: o público americano realmente não entenderia isso. Não apenas nossa cultura e mentalidade são completamente distintas: o que mais se precisaria explicar no caso é como nosso sistema político é distinto.

No sistema bipartidário americano, partidos de médio porte, cuja principal função é fazer lobby eleitoral para um lado ou outro, são engolidos pelos dois grandes partidos. Ao invés de eleições gerais com vários candidatos, a briga ocorre dentro dos grandes partidos.

Seria como toda a ala mais progressista ou de esquerda do Brasil se unisse num único partido, e as disputas de candidatura entre Marina, Lula, Luciana Genro ou Mauro Iasi ficassem dentro do partido, para a maioria dos eleitores do partido votarem em peso em um único candidato contra o adversário do outro partido. O mesmo ocorrendo na ala conservadora ou de direita.

Não significa, portanto, que os dois grandes partidos americanos pensem em bloco homogêneo, como é mais próximo do modelo brasileiro. São “partidos” muito mais heteróclitos e capilosos. Mas têm, entre inúmeras outras vantagens, a virtude de ter debates ideológicos claros, sem tentativas de abuso da “linguagem de diplomatas” para não ofender possíveis eleitores do campo oposto, além de não precisarem ser mediados por algo fisiológico e sem ideologia além do poder puro e simples como o PMDB: assim que um candidato é escolhido nas primárias (quase que as “verdadeiras” eleições), ele tem a base de apoio de todo o partido, sem precisar negociar cargos e poder com um “meião” que tem poder de voto enorme, sem possuir idéia nenhuma.

Um americano que olhe para a situação de Michel Temer, portanto, pensaria: “Como um vice, que é de outro partido, pode estar envolvido nos mesmos casos de corrupção do partido anterior?”

O que o NY Times poderia explicar, se tivesse gabarito e vontade para tanto: o vice é do “meião”, inexistente na política americana. Os ministros indicados por Temer, portanto, não são seus “amigos” e nem seus companheiros de ideologia: são políticos com muito poder de voto, num coronelismo que americanos nunca entenderiam, protegidos em seu federalismo, e que ganham cargos em troca de apoio.

O governo Michel Temer teve 3 ministros que já rodaram? O jornal poderia muito bem explicar que isto é um avanço enorme para o Brasil: no governo de Dilma, não apenas os ministros só caíam quando já estavam quase indo para a cadeia ou ameaçando dedurar a presidente em escândalos palacianos.

Pior: o maior escândalo brasileiro em moralidade, embora não em somas vultuosas ou espalhamento em jornais autofágicos, é a indicação de Lula para um ministério, a maior vergonha para alguém que tenha coerência, por ser uma indicação para se ganhar foro e fugir da Justiça.

Ao invés de explicar isso no editorial, o NY Times apenas repapagaia a litania de que Temer e Dilma possuem ministros que “obstruíram a Justiça”. Nem mesmo o número de acusados de cada lado é citado, muito menos que os de Dilma o fizeram, ao que tudo indica, a mando da própria Dilma, que seria a grande ou única beneficiária, enquanto os de Temer, já com poder dentro do governo Dilma, só queriam salvar seus próprios couros.

Há um Freudian slip, um ato falho do jornal, que revela de fato a que veio e a que, ou quem, serve seu editorial: a preocupação é que Temer supostamente precisaria agradar aqueles que consideram que o impeachment de Dilma Rousseff foi “um golpe”. Nem mesmo os menos de 34% de brasileiros que não aprovam o impeachment perfazem o total de pessoas que acreditam na lenga-lenga de “golpe” (e bem provavelmente nem 50% de quem repete roboticamente tal bordão acredita no que diz). Por que Temer, ou qualquer pessoa, precisaria se preocupar justamente com radicais ideólogos impermeáveis à realidade dos fatos?

O jornal ultra-progressista, considerado por americanos algo como uma Caros Amigos com dinheiro (ou pelo menos que já teve), tenta até dar a entender que Dilma Rousseff estava empenhada na luta contra a corrupção. Por que não cita a indicação de Lula a ministro? por que não comenta que Delcídio Amaral foi pego tentando comprar o silêncio de Nestor Cerveró para não prejudicar Dilma, e Aloizio Mercadante ele próprio tentou então comprar o silêncio de Delcídio com ameaças veladas, até hoje não investigadas?

O editorial ao menos termina sugerindo o que Temer deveria fazer, além de garantir autonomia das investigações de corrupção: acabar com o foro privilegiado de autoridades. Bem, é o que se deveria exigir sobretudo de Dilma, que indicou Lula a um ministério logo após sua condução coercitiva e, não só possui foro, como está até agora torrando dinheiro do pagador de impostos brasileiro, mesmo afastada. Portanto, fica-se a dúvida: será que o mesmo empenho teria sido dito se Dilma continuasse no cargo? Ou a agenda do jornal, que já convidou Lula para ser “colunista” (sic), não ficaria um pouco abalada em sua estratégia de puxação de saco de progressistas?

O grande problema da autofagia jornalística não é apenas a síndrome de vira-lata brasileira: também o próprio NY Times não parece ver o Brasil, senão o que jornalistas e blogueiros fracassados têm a dizer sobre o país.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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