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Polêmica

Não existe “Dia das Bruxas”, só existe Halloween

Halloween é uma festa muito específica. "Dia das Bruxas" não é tradução: é uma invenção. Para não falar do "Dia do Saci" do Aldo Rebelo...

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Helloween - discografia

Sempre que o Halloween ressurge no calendário, a data festiva menos compreendida no país gera um novo celeuma por tão pouca gente entender por que comemorar o “Dia das Bruxas”, quase homenageando os monstros que habitam nosso imaginário.

As questões religiosas e políticas se imbricam com força no 31 de outubro: cristãos podem comemorar uma data tão pagã? E brasileiros devem festejar uma data tão estrangeira?

Saci com abóbora de HalloweenNão é preciso ir muito além de lembrar do ridículo em que o deputado comunista Aldo Rebelo caiu ao tentar instituir por lei que o Brasil comemorasse, no lugar do Halloween, o “Dia do Saci”. Para evitar ridículos parecidos, urge entender do que estamos falando.

A parte óbvia: o Halloween NÃO é americano, é celta. Para piorar, é uma tradição do séc. III, quando o cristianismo ainda lutava para conseguir ser uma religião menos destinada aos leões no Império Romano.

A data marca um mês e uma semana depois do equinócio, quando se festejava a última colheita “cheia” antes das plantações mais duras que já viam o inverno no horizonte – ou seja, o último período de mesa farta antes do solstício de inverno, que marca o Natal. Uma data cultural bastante comum em trocentos povos que vivem de agricultura. Os antigos hebreus, que viviam de pastoreio, não eram cultuavam deuses das plantações como seus rivais mesopotâmios, gregos, cananitas, egípcios e afins.

A festa marcava o ano novo celta, o Samhain (fim do verão), que segue o calendário lunar, e não o nosso calendário solar. Pergunta óbvia: marcar estações e colheitas tem alguma coisa a ver com imperialismo americano? 

Sendo uma data de colheita e cultivo (“cultura” vem exatamente da terra, do cultivo), é uma data sagrada por definição. Passe fome por 12 horas para entender como surgem as culturas – afinal, lida com alimentação, algo vital. Mas também é uma data “secular”, ou ao menos “natural”, por não ser uma festa de uma religião específica – festas que comemoram datas ligadas à plantação, como as cerca de 43.681.379 religiões que comemoram equinócios e solstícios, não podem exigir lá muita propriedade intelectual. 

Helloween - My God given right. Abóbora na estátua da liberdadeAlém disso, não tem nada a ver com a América (abençoada terra da liberdade) ou o “imperialismo yankee“. Em verdade, se você quer ser contra a cultura judaico-cristã-sionista-republicana-imperialista-capitalista-conservadora, deveria cultivar o Halloween muito fortemente: a Igreja Católica marca a data como o “Halloween” justamente por ser uma festividade inicialmente pagã, quando, entre os dias 30 e 2, se celebrava a junção do céu e da terra, se lembrava dos mortos e se trazia à terra um pouco da felicidade de Annwyn, o mundo dos mortos sem dor e sem sofrimento, ao contrário deste vale de lágrimas. Já assistiu A Noiva Cadáver? Perceba como o mundo dos mortos é extremamente alegre e divertido, ao contrário do sisudo e tuberculoso mundo dos vivos. É um conhecimento de causa muito maior do que o de um Aldo Rebelo.

Caso você seja cristão, também não há motivo para pânico: em nenhum lugar o sincretismo religioso entre o cristianismo e as antigas religiões primordiais ficou tão claro quanto nas Ilhas Britânicas e no contato dos cristãos com os celtas, povo que até utilizava cruzes antes do advento do cristianismo. Will Durant bem disse que fica até difícil saber quanto o cristianismo converteu estes povos e quanto por eles também foi convertido. Tanto é que trocaram o culto a “todos os deuses” (panteon) pelo “dia de todos os santos” (All hallow’sexatamente no meio da festividade do Samhain (que ia do dia 30 ao dia 2).

A véspera deste dia é que ficou com nome famoso: All Hallow’s Eve > Hallow’s Eve > Halloween. No entanto, até o dia de finados continuou seguindo a tradição pagã, mas com nome cristão (“Dia de Finados”). Assim, entendemos a natureza de nosso calendário, sem artificialidades políticas malucas.

Estranho Mundo de Jack (Nightmare Before Christmas), abóborasEm verdade, o druidismo dos celtas já não existia sequer no século II d. C. Todo mundo ficou amigo sem precisar de tanta violência (na verdade ali foi onde rolou guerra sem fim por milênios a fio, mas você pegou a idéia). Vamos todos celebrar juntos. All hallow’s

Exceto as wiccas, óbvio. Essa religiãozinha new age não tem nada a ver com os celtas: quase tudo no que ela se baseia são, justamente, lendas cristãs a respeito dos pagãos, a maior parte delas de literatura vagabunda do séc. XIX. É como fazer uma religião hoje baseada nos rituais de Harry Potter e querer se levar a sério.

Se você quer trocar o Halloween pelo Dia do Saci, aquele “bem brasileiro”, é bom saber que as tribos que habitavam esse país continental se odiavam, viviam em guerras umas com as outras, não falavam línguas sequer parecidas e chegavam a ser canibais com os inimigos (como os tupinambás). A festividade do Halloween é inclusiva: para todos (um primeiro caminho para o monoteísmo). As tribos indígenas, cada qual com os seus deuses, se matavam entre si. Nada de all hallow’s

HalloweenNa verdade, NÓS é que chamamos tudo de “índio” (ou guarani-kaiowá) como se fossem todos irmãos na floresta. Aliás, sabia que a tribo “ianomâmi” é invenção nossa, nunca existiu, fomos nós, imperialistas brancos classe média burguesa metida a antropóloga, que inventamos um lugar onde eles “habitavam”?

Pois é, agora, nesse continente de tribos rivais, sabe quantas acreditavam em “saci”? Não deve ser um contingente maior do que a população de Sergipe. Será que Aldo Rebelo sabe se era uma população no norte ou no sul do país? Qual tribo que era? Se era mais de uma tribo? Se foi um sincretismo entre índios e negros?

Será que depois da terceira pergunta não dá para admitir de uma vez que, com maioria da população com origem européia, falando uma língua européia num mundo globalizado, temos muito mais resquícios de cultura européia e americana do que de caipora, cuca, alamoa e iara?

Por curiosa coincidência, o português, até por proximidade geográfica, é a língua latina que mais sofreu influxos celtas – tanto que chamamos cerveja de “cerveja”, e não de algo parecido com beer como as outras línguas continentais (italiano birra, francês bière, alemão Bier, romeno bere, turco bira etc). Vide como a forma de contar em gaélico irlandês é muito parecida com português: 0 náid, 1 aon, 2 dhá, 3 trí, 4 ceathair, 5 cúig, 6 sé, 7 seacht, 8 ocht, 9 naoi, 10 deich. Alguém aí sabe contar até 10 em tupi?

Para piorar, índios não viviam de agricultura. E nem sequer estavam antecipando as duras colheitas do inverno no “Dia do Saci”. Portanto, o dia 31 de outubro pra eles significa mais ou menos isso: nada. Quer algo mais terrível para nossa cultura do que inventá-la e substituir a antiga e verdadeira? A história precisa lembrar de nossas tradições ou de Aldo Rebelo? Para o nacionalismo panacão de certos ideólogos, basta olhar para a realidade do mundo e substituir qualquer referência ao que soe pouco verde-e-amarelo por um símbolo jabuticabístico do que só existe no Brasil, mesmo que os brasileiros nem entendam.

Note-se, ademais, que a confusão já começou quando tentaram “traduzir” o Halloween por “Dia das Bruxas”. Não é uma mera tradução, como traduzir Christmas por Natal: o Halloween não é um “dia das bruxas”, é uma lembrança cristã de que há almas vagueando antes do batismo e, sobretudo, das almas no Purgatório, com ritos anteriores ao cristianismo.

Michael Myers, HalloweenQuando inventaram o “Dia das Bruxas” brasileiro não simplesmente importaram uma complexa e profunda simbologia de uma tradição folclórica: inventaram um novo conceito. Que tem mais a ver com um Carnaval com roupas escuras do que com uma festividade tradicional. Não é sem razão, portanto, que aqueles que conhecem a simbologia, tradições e ritos do Halloween através do cinema queiram emulá-lo no Brasil: o “Dia das Bruxas”, num país que nem bruxas tem, é uma simbologia tão fraca que soa mesmo oca. E tudo o que não é tradição sempre tem 99% de artificial.

Há, portanto, um Halloween. “Dia das Bruxas” é invenção com péssima tradução para brasileiras que nada tem a ver com o original.

Charlie Brown - Halloween. Grande AbóboraImportar ad hoc o Halloween, sua acepção artificial de “Dia das Bruxas” e trocar “bruxa” por “saci”, além de revisionismo histórico xarope, é burrice: vamos comemorar uma data anglo-saxã, num dia anglo-saxão, por motivos anglo-saxões, com uma figura folclórica que nem 10% dos índios cultivavam (aliás, era inimiga da maioria deles). E tudo, sem perceber, usando a propaganda da mesma religião “imperialista” que os converteu aqui (ou seja, trocou a dieta deles, de coração humano por pecuária extensiva).

Se a data do Natal foi tomada de empréstimo de várias religiões antigas, ela tomou uma simbologia própria dentro do cristianismo. Já o Halloween, como o próprio nome indica, não: é uma festa pra todos, for all, agregadora e capaz até de unir vivos e mortos.

É justamente contra essa data tão inclusiva que se faz chororô, para a seguir dizer que você é que é tolerante, multicultural e sabe conviver com as diferenças? 

Halloween é uma coisa: tradicional, antiga, com história para contar, popular, folclórica, como tudo o que é bom na vida. “Dia das Bruxas” é invenção de burocratas. Que tal deixar a frescurite de lado uma vez na vida e se submeter à realidade? Ela anda em tamanho descrédito hoje em dia que quem se submete a ela parece ser um crente na Grande Abóbora.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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