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Cruzadas

Reclamar de “Deus vult” é confessar ser ignorante ou pró-califado (ou ambos)

Desde que virou uma nova divisa dos que querem salvar o Ocidente, reclama-se do lema "Deus vult", tratando as Cruzadas como algo negativo. Só somos livres hoje graças a elas

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Deus vult - Cruzadas

Dada a fraqueza e terrível ideologia anti-colonialista de Barack Obama e Hillary Clinton (sua Secretária de Estado) quanto ao Oriente Médio, que deixou a região que era controlada de longe pela América em um morticínio sem fim com Estado Islâmico, Irmandade Muçulmana, al-Aqsa e afins tacando o terror, muitos apoiadores de Donald Trump usaram o lema da primeira Cruzada, Deus vult (“Deus [assim] quer”), como mote de uma nova defesa do cristianismo e do Ocidente.

Todavia, temos os inteligentões. A turma que acha que consegue passar uma grande impressão simplesmente repetindo alesmaiadamente palavras de forte teor emocional (como “Cruzadas” ou “nazismo”) sem fazer idéia do que estão falando. Causa uma impressão entre os pares mongolóides, ainda dá tempo de criticar o Deus vult como algo repugnante. O difícil é estudar e saber do que se está falando.

Cruzadas contra sarracenosÉ natural que pessoas que “estudaram História” pelos esquematismos reducionistas que são ensinados nas escolas, mormente no Brasil (luta de classes, colonialismo, imperialismo etc), ouvem uma palavra como “Cruzada” e já atiçam os ouvidos em sinal de perigo, achando que estão falando de autoritarismo, censura, morte, fanatismo religioso, teocracia, violência, matança de infiéis, irracionalismo, talvez até racismo, homofobia, machismo e algum outro -ismo moderninho, comprovando por que é tão importante afastar doutrinação e reducionismos esquemáticos e aprender história de verdade, longe da dicotomia dos bobões.

O mais tragicamente engraçado é ver pessoas cheias de fotos de biquini no álbum “Verão!!!! ☀️ 😎” do Facebook, ou defendendo amigos gays, ou ainda atéias, ou defensoras do Estado laico, ou a turma manjada que fala “democracia” a cada duas frases, assustadas com a palavra “Cruzadas”, achando o lema Deus vult algo parecido com Sieg heil!, sem fazer a mais puta idéia de que sem as Cruzadas, não poderiam defender nada do que defendem (ou qualquer uma dessas coisas acontece em sociedades islâmicas?).

As Cruzadas não foram “imperialismo”, convenção forçada, confisco de terras. Os árabes começaram uma conquista na região por praticamente quatro séculos. Havia um problema geopolítico grave: apesar de regiões como Alexandria, Constantinopla, Antioquia (onde Paulo fez seu primeiro sermão, e primeiro se falou em “cristãos”) e Jerusalém (por óbvio) serem de extrema importância para o cristianismo, a região vivia um racha entre igrejas (Ortodoxa, Ortodoxa Copta, Ortodoxa Síria, Apostólica Armênia, Patriarcado Ecumênico de Constantinopla etc), que acabou nunca permitindo uma unidade de ação e um crescimento unificado.

Na vira do primeiro milênio da era cristã, a situação econômica, política e mesmo cultural do Império Romano do Oriente, também chamado de Bizantino, tendo Constantinopla como capital, era periclitante. Até hoje um dos maiores entrepostos comerciais do mundo, o milenarismo e, ehrr, até a situação do Império indicava que ele se esfacelaria em pouco tempo. A unidade política e religiosa era perdida ano a ano.

Mapa das conquistas árabesA situação se agravava terrivelmente pelas invasões de árabes e persas, que já haviam montado um califado (que posteriormente seria o Império Otomano, só desfeito na Primeira Guerra Mundial, e ainda posteriormente recriado como o Estado Islâmico) e praticavam a hégira, ou seja, a imigração em massa de terras não-muçulmanas (dar al-Harb) para se tornarem terras muçulmanas (dar al-Islam), conforme é o método de conquista muçulmano desde os primórdios (a hégira marca o início do calendário islâmico). O outrora vastíssimo Império Bizantino, que já dominara Itália, África setentrional, Oriente Médio e Arábia, estava resumido à Grécia, e sua morte nas mãos de seljúcidas parecia iminente, confirmando profecias milenaristas.

Se alguém acha que o Estado Islâmico é “medieval”, precisa lembrar a que período esse tal “islamismo medieval” se refere, e quem o combateu na época. Na verdade, ele é apenas islâmico, e faz o que o islamismo sempre fez ao conquistar um território e torná-lo dar al-Islam: impõe a shari’ah, subjuga mulheres, oferece conversão forçada, impostos escorchantes ou pena de morte a infiéis, decapita pagãos, atira sodomitas de montanhas, apedreja mulheres adúlteras, chicoteia quem falta com os ritos religiosos etc etc etc. Nem mesmo uma mulher sentar na mesma mesa de um homem, mostrar o cabelo ou usar adereços na mão esquerda, como relógios, é permitido. Tal situação perdurou por 4 séculos. Como se chama o movimento de resposta cristã, para alguma normalidade de terras outrora cristãs?

Apesar de considerar o papado uma instituição cismática, o Imperador Oriental Aleixo I Comneno engoliu o orgulho e suplicou ajuda de seus primos europeus, pedindo ajuda para não morrerem pela fé através de embaixadores ao papa Urbano II no Concílio de Piacenza de 1095. As Cruzadas não foram um ímpeto imperialista: foram uma reposta do Ocidente atendendo o pedido de socorro de um imperador em apuros.

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O lema Deus vult, Deus [assim] quer, usado sobretudo pelos Primeiros Cruzados, tem duplo sentido. Em primeiro lugar, a referência a 1 Timóteo 2:3-4 (“Deus quer que todos os homens se salvem”) mostrava uma materialização da vontade de Deus na Terra (tão repetida em cada Pai Nosso), e que, apesar da violência da guerra, há um propósito até para o sacrifício feito pelos soldados de Deus que transcende sua mera existência individual.

Há também uma referência mais teológica. Pela religião cristã, Deus é o Verbo, o logos grego. Deus tem razão, mesmo quando os homens não conseguem perscrutá-la. Já Alá é pura vontade. O que Alá quer, assim o será. Pode parecer uma mera discussão bizantina (!), mas há uma diferença gritante.

Um Deus que é logos, razão, age não apenas com bondade, mas com a bondade discernível pela razão (o que tanto aproxima os filósofos gregos do cristianismo). Se Deus é bom, ele só agirá com bondade, nunca fazendo o mal. Já no islam, Alá está acima dos conceitos de bem e mal, pois sua vontade é que é soberana: Alá pode fazer o mal, pois pode fazer tudo, inclusive o mal.

Os muçulmanos chamam essa visão de um Deus que “só pode” fazer o bem como tendo a mão cerrada. E o Corão responde: “Os judeus dizem que a mão de Alá está cerrada. Cerrada é a mão deles, e foi amaldiçoada pelo que disseram! Qual! A mão de Alá está bem aberta: Ele gasta como Lhe apraz” (Corão 5:64).

Cruzados - Deus VultQuando se diz Deus vult, seguindo os ensinamentos sobre vontade de São Tomás de Aquino, refutando o filósofo muçulmano Averróis (“De unitate intellectus, contra Averroistas”, que advoga uma unidade entre o Bem e a vontade do Criador), o que se está expressando, além da vontade de Deus de retomar tais terras e permitir liberdade, é um Deus que tem vontade e atua no mundo (daí a oração), mas cuja vontade se confunde com o bem. A possibilidade do relativismo teológico islâmico explica por que nossos digníssimos palpiteiros de questões absurdamente maiores do que suas inteligências acabam sempre errando quando falam de temas de adultos, seja um atentado terrorista, sejam as Cruzadas.

Mesmo para um ateu, é fácil perceber que apenas com as Cruzadas, que permitiram que a expansão muçulmana pela espada e dominação numérica se refreasse, após quatro séculos, é que podemos ter algo como a noção moderna de “Estado laico”, ou ciência moderna, dependem justamente da mentalidade cristã, de um mundo inteligível (e não que tem causalidade por pura vontade), ou mesmo de liberdade religiosa. Basta pensar se o Renascimento foi possível numa sociedade católica com suas imagens sacras, ou se foi possível no Estado Islâmico.

Cruzadas em Jerusalém - Deus vultReclamar de um lema como Deus vult é apenas confessar o que todos sabem: que você não entende porcaria nenhuma do que vai acima. É ridiculamente risível tentar imaginar José Fucs, Ricardo Noblat, Paulo Pachá, a turma do Diário do C. do Mundo, Marlos Apyus e quejandos tentando entender tais questões, que determinaram no passado se eles podem conversar com um amigo judeu ou se podem escolher a própria religião, se podem comprar uma calça jeans de presente para a namorada ou se poderão ler algo no Kindle (mais livros foram traduzidos para o espanhol no último ano do que para o árabe nos últimos mil anos). Mas todos se sentem bem inteligentes com a impressão que dá falar em Cruzadas, enchendo a boca no vocábulo e escandindo bem as sílabas.

Se bem que pra essa galera não importa. A única coisa que lêem mesmo é artigo que sai no Estadão, nunca livros complexos, além das notícias da semana. Tal como nunca poderíamos nos ofender se nos comparassem aos soldados americanos que combateram o nazismo, tal como sempre devemos agradecer pelos gregos ganharem as Guerras Médicas, sem a qual não teríamos filosofia até hoje, só podemos ter um pensamento em relação às Cruzadas, ignorando tudo o que aprendemos na escola: Deus vult!

 

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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