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História

Bolsonaro precisa parar de falar de 1964. Mas o Brasil precisa entender o que foi a Marcha da Família contra Goulart

Nosso presidente erra ao falar do movimento de 1964 sem explicar que ele não pedia uma ditadura militar. Mas o Brasil precisa conhecer o que foram as marchas civis contra Goulart

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Marcha da Família com Deus pela Liberdade contra João Goulart

Jair Bolsonaro, o presidente, tem o vezo muitas vezes imperdoável de enaltecer a revolução de 1964 como o que teria salvado o Brasil do comunismo, enquanto seus críticos repetem sempre que 1964 foi o ano que “iniciou” a ditadura militar brasileira, que torturou, matou, seqüestrou, estuprou e acabou com a democracia trabalhista de João Goulart, num dos raros momentos em que a esquerda se preocupa com tal sorte de crimes.

A verdade é que Bolsonaro erra mesmo ao falar tanto de 64, sobretudo sem explicar nada do que o movimento significa. E os críticos do regime militar erram por simplesmente contar sempre a mesma narrativa sobre os fatos, o que é parte justamente da doutrinação que juram ser mera teoria da conspiração.

O presidente não é o grande professor de História da nação. E nem conseguiria realizar tal fardo, com a dificuldade de Bolsonaro em ser didático, preferindo o modelo de comunicação de identificação com os anseios da população, e até mesmo seu jeito atrapalhado de se expressar. 

Enquanto isso, a visão corrente é de que o Brasil estava calmo e pacífico, tudo tão “democrático” naqueles anos desvairados da Guerra Fria (a ditadura fascista do Estado Novo, enaltecida pela esquerda até hoje, havia acabado em 1945, há apenas 19 anos, o equivalente a 2000 hoje), quando, de repente, sem aviso e sem razão, os militares nos quartéis resolveram dar um golpe num país tão democrático, tão pacífico e tão trabalhador, e instaurar uma ditadura brutal e violenta e torturadora de inocentes que só foi derrotada porque grandes democratas marxistas conseguiram finalmente convencer os generais a pararem de torturar usando a força de suas palavras democráticas e de seus lindos olhos azuis.

O movimento de 1964 de que tanto fala Bolsonaro (e também Olavo de Carvalho) não é o mesmo que o regime militar que dominou o país pelos 21 anos subsequentes. E a esquerda quer por que quer transformar o movimento de 2015 no novo 1964.

João Goulart, vice de Jânio Quadros, que havia abdicado em agosto de 1961 prevendo uma manifestação popular que o colocasse de volta ao cargo plenipotenciário, era tudo o que causava horror ao brasileiro honesto e trabalhador. Ex-ministro do ditador Getúlio Vargas, era mais uma cria do misto de positivismo (depois chamado simplesmente “varguismo”) e fascismo do maior ditador do Brasil. 

Jango era um dos proponentes do que foi posteriormente chamado no Brasil de “trabalhismo”, um modelo de sindicalismo tão forte que unia os pontos centrais do fascismo e do socialismo, como as 22 corporações fascistas unindo empregadores e empregados na “Câmara das Corporações” da Itália fascista, integradas no Grande Conselho Fascista que unia industriais, agricultores e operários. 

No Brasil, o modelo de pressão política e negociação econômica entre os setores foi chamado simplesmente de “corporativismo”, seguindo o modelo desenvolvido na Idade Média por corporações de ofício (para mais detalhes, vide nosso podcast, “O nazismo era de direita?”). 

O grande continuador do modelo trabalhista-corporativista de João Goulart, de desabridas origens fascistas, foi o PDT de Leonel Brizola e Dilma Rousseff, que aboletou inúmeros trabalhistas em cargos de pressão na economia, como Carlos Lupi (não à toa, seu ministro do Trabalho, tal como João Goulart). Seu principal legado foi a CLT, quase uma cópia da Carta del Lavoro de Mussolini, hoje tão defendida pela esquerda para impedir avanços como a Reforma da Previdência (a um só tempo em que chama todos os que discordam de seu modelo de “fascistas”). 

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Goulart ainda trazia a marca da corrupção continental que os brasileiros de hoje conhecem tão bem: o então deputado João Goulart havia conseguido financiamento ilegal para a campanha eleitoral de Getúlio Vargas, em 1950. O dinheiro vinha de outro ditador de origem fascista que se tornou queridinho pela esquerda, quando trocou o nome para “trabalhista”: o argentino Juan Perón, no que ficou conhecido como “o caso dos Pinhos”, usando uma estatal com monopólio sobre a exploração econômica da madeira argentina, a CIFEN, como laranja. 

Como presidente, seu modelo de trabalhismo continuou garantindo “direitos trabalhistas” (o novo shibboleth da esquerda) em troca de negociatas com empreiteiras. Foram as tão propaladas “reformas de base”, outra expressão que se tornou comum no vocabulário esquerdista brasileiro. Até o método Paulo Freire como estratégia para acabar com o analfabetismo foi implantado. Algumas das reformas, como a eleitoral, exigiam mudanças constitucionais, o que acendeu a luz vermelha de quem temia por um novo golpe brasileiro: Goulart já estatizara refinarias por decreto, sem apoio do Congresso.

Seguindo o modelo de Getúlio, seu grande mentor, e de quem fora ministro, tendo sugerido “dobrar o salário mínimo” para o Congresso repudiar e então fechá-lo, Goulart implementou projeto para cobrar impostos sobre grandes fortunas, uma “função social sobre a propriedade” de moldes soviéticos (até hoje incrustada em nossa Constituição, embora nem sempre aplicada) e controle sobre empresas (a estatização de terras às beiras de rodovias e ferrovias já iria ser implementada). 

Como não conseguia fechar o Congresso, Jango insuflava greves e insubordinação nos quartéis. Seus planos trienais também naufragavam, ao sugerir “nacionalizar” (estatizar) setores como o petrolífero, de energia e farmacêutico, e para tal, nova cartada para se tornar um novo Getúlio Vargas estavam nas mangas de Goulart (o PT tentou fazer o mesmo, mas tendo já estatais o suficiente para mensalão e petrolão, não precisou ir muito além).

Como se vê, os bandidos esquerdistas brasileiros nem se preocuparam em ter alguma originalidade nos últimos anos.

Mas se tudo isso já era motivo sobejaste para o povo ver com péssimos olhos um presidente no qual, afinal, nem haviam votado (e lembremos que a sociedade brasileira ainda não havia passado por maio de 68, pela doutrinação, pela glorificação da bandidagem e pela ideologia revolucionária das últimas décadas), ainda faltava o principal.

Jango, ainda em 1960, havia feito uma visita à Tchecoslováquia – aquelas típicas viagens que só podem ser auto-explicativas. Como hoje se sabe, quase nunca Moscou se envolvia diretamente na propagação do comunismo pelo mundo na Guerra Fria – qualquer oficial de baixa patente americano sabe disso. O serviço de inteligência tcheco, a StB, a partir de Goulart, ficou responsável por cuidar do Brasil. 

Os tchecos viam com bons olhos um trabalhista que basicamente implantava o programa socialista dos anos 60 sem precisar ser um alinhado “oficial”: o trabalhismo pegava bem (ao contrário de “comunismo”), produzindo quase os mesmos efeitos imediatos (os comunistas do Leste não estavam com tanta pressa para ver o fim da propriedade privada em dois anos na América Latina, se não conseguiam de fato em meio século nos seus próprios países). A influência dos trabalhistas ingleses (os historiadores que iriam fazer a “versão oficial” da historiografia hoje ensinada em Universidades) ajudava muito.

A partir de 1961, três anos antes de os militares entrarem em cena, o Brasil testemunhou diversas ações de grupos paramilitares comunistas, treinados e financiados diretamente pela Tchecoslováquia (como hoje se sabe, embora tal fato não faça parte do que se ensina em História no ensino médio brasileiro). Os métodos eram sobretudo aqueles visando financiamento para ações futuras mais sérias, mas que inauguravam um novo ciclo de crimes que se tornariam comuns no Brasil, como assaltos a bancos. Para um país que nunca tinha enfrentado tal situação, o que hoje tratamos com uma bizarra normalidade era motivo para pânico generalizado. 

Foi contra uma espécie de petrolão da época, aliado ao financiamento de ditaduras trabalhistas na América Latina, e ainda com apoio do serviço de inteligência de países socialistas, finalizado com uma luta armada colocando pânico em uma população até então pouco acostumada a crimes violentos, que o Brasil foi às ruas, na famosa (apenas para a direita, sorry) Marcha da Família com Deus pela Liberdade, entre março e junho de 1964.

Sabendo do histórico de golpes de Estado no país de então, que mal havia passado duas décadas sem uma convulsão política de dar medo (e o próprio Jânio tentou dar um golpe com sua renúncia, mas seu populismo não encontrou eco o apoiando na população), o cenário era claro: ou se pedia pela deposição de João Goulart, ou em questão de meses o presidente daria um novo golpe no modelo Estado Novo e, tal como Getúlio tivera suas milícias sindicalistas, Goulart passaria rapidamente de trabalhista para abertamente socialista com apoio da luta armada. 

Olhando para o Brasil de Lula e Dilma, para a Venezuela de Chávez e Maduro e, sobretudo para a época, para a Cuba de Fidel Castro, o roteiro não soa familiar?

Até aquilo que nossos professores de História nos ensinaram, como o papel dos militares para derrubar João Goulart, precisa ser visto com muita cautela: Jango insuflou a revolta dos marinheiros e dos fuzileiros navais no Rio, que estavam querendo apoiar… as reformas de base de Goulart. 

O Exército brasileiro sempre foi dividido entre o generalato, mais tecnocrático e fortemente positivista muito antes de Getúlio Vargas, que domina as forças armadas desde o Império, e a ala dos tenentes, que já havia feito rebeliões como as revolutas tenentistas da década de 20, acabando com o voto de cabresto. A liberdade brasileira depende muito dos tenentes e oficiais de baixa patente, enquanto sempre teve problemas com o generalato, e continua tendo. É um entendimento que historiadores que vivem apenas de repetir “democracia” na mídia, como Marco Antônio Villa, são incapazes de possuir.

A Marcha da Família com Deus pela Liberdade reuniu cerca de um milhão de pessoas para tirar Goulart do poder, com apoio de setores como a Igreja Católica (imensamente mais influente à época do que hoje) e de oficiais de baixa patente. Foi esse movimento de ruas, cívico, que Roberto Marinho enalteceu em editorial da Rede Globo, e que foi descrito como sendo “em nome da democracia”.

Os ideais de 1964 foram traídos com rapidez assombrosa por dois fatores. O primeiro, o jornalista Carlos Lacerda, que todos sabiam que ganharia as próximas eleições, prometidas para dali a seis meses. Lacerda sabia que ganharia de seu concorrente Juscelino, mas Castelo Branco tinha outros planos, e começou os decretos que deixaram os militares no poder por 21 anos. 

O segundo problema é bem espinhoso para a esquerda. Os ideais que o generalato (e não os tenentes) tinham para 1964, tal como a meia dúzia de gatos pingados “intervencionistas” em 2015, eram tecnocratas: uma “grande nação” dirigida por um Estado forte, que promovesse desde ensino público até distribuição de renda (sic), tudo com mão pesadíssima sobre liberdades, economia e pouco se importando em dividir o poder. 

O grande problema para a narrativa da esquerda é que exatamente quem traiu o movimento cívico de 1964, que tinha os militares quase como uma nota de rodapé, pensava de maneira tão parecida com a esquerda “pós-socialista” do PT e apaniguados que é difícil notar a diferença (inclusive o positivismo é a ideologia dominante nos debates “científicos” e a acadêmicos de ambos os lados, vide o que ambos falam sobre Olavo de Carvalho). Pense em algo como a Petrobras e responda imediatamente: quem quer mantê-la estatizada, senão os generais positivistas e a esquerda socialista e social-democrata?

A narrativa da esquerda sobre 64, é só ver os faniquitos de qualquer jornalista e das redes sociais inteiras no aniversário de 31 de março, é a de que os generais estavam encastelados enquanto os jovens brasileiros estavam adorando a democracia, tudo em paz, e de repente quiseram dar um golpe militar, forçando aqueles jovens pacíficos a pegar em armas e lutar “pela democracia”. O começo deste movimento, que são justamente os ideais de 64, é que explicam uma história bem diferente, até com atentados terroristas esquerdistas antes de 64, e nada de “luta pela democracia” (já se vivia nela, afinal). Lutava-se pela ditadura do proletariado. Mas saber disso tira um pouquinho aquele brilho da esquerda, que até hoje diz “lutar contra a ditadura”. 

Bolsonaro nunca conseguiu explicar isso. É nosso dever. Mas nosso presidente não deveria acreditar que vai conseguir mudar quase meio século de doutrinação na educação de humanas (onde os militares pouco se meteram) apenas repetindo o louvor a 64 – e, quase sempre, misturando os ideais traidores dos generais que o estão traindo até agora e louvando-os no pacote.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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