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A curiosa posição de Olavo de Carvalho no cânone filosófico

De tudo que é dito - e maldito - sobre Olavo de Carvalho, há algo que seus haters não admitem: o velho da Virginia mudou a relação com o cânone filosófico

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Há filósofos que formam o cânone do que se aprende num curso de filosofia. Nem todos tiveram grande reconhecimento em vida – Schopenhauer chegou a ter 3 alunos, enquanto Nietzsche conseguiu a façanha de não ser lido mesmo tendo amizade com Richard Wagner e Lou Salomé.

Via de regra, um ou outro filósofo destaca-se por geração – e, na modernidade, torna-se quase porta-voz do Estado. Aliás, entre as várias definições de “modernidade” em contenda, podemos assumir que a bajulação do poder oficial pelos intelectuais, logo transformados em burocratas, parece uma constante – e é (mais) um acerto de diagnóstico do filósofo Olavo de Carvalho. Modernidade é a destruição das autoridades naturais, harmônicas e orgânicas pela burocracia, e o controle social por uma elite que cuida da papelada enquanto faz engenharia coletiva.

Em sua crítica a Maquiavel, Olavo destaca que o filósofo italiano oficializa a distância entre ética (virtú) e atuação (práxis) – distância esta que se torna infranqueável a partir dele – iniciando um novo modelo de pensamento que era de todo incompreensível e incomunicável com o que se entendia por “filosofia política” antes dele. Há diálogo entre Aristóteles e São Tomás, com quase um milênio de separação. Entre Marsílio de Pádua e Maquiavel, separados por pouco mais de um século, a linguagem, o objetivo, o método são alienígenas.

Maquiavel fora o primeiro. Viriam muitos depois dele. Hegel talvez seja o exemplo mais notável e conhecido: um “filósofo oficial”, cuja palavra, no mais das vezes hermética e pernóstica, tornava-se praticamente política de Estado – é difícil analisar sua filosofia sem analisar em conjunto o Estado moderno e a política alemã no século XIX: “Hegel e o Estado” é o nome de um livro de Eric Weil, e também de um de Franz Rosenzweig.

Porém, poderosos em vida ou não, estes filósofos vão formando um cânone que hoje estudamos. O aluno que chega aos 18 anos em uma faculdade de filosofia, via de regra, quer conhecer o filósofo que descobriu a verdade – e em não muito tempo o testemunharemos aderindo a um “-ismo” moderno e sendo mais um marxista, kantiano, foucaultiano – ou termos coletivos, variando de um impreciso “pós-moderno” até algo francamente engraçado, como o tipicamente europeu “filósofo continental” (sic).

Contudo, filósofos costumam ser inacessíveis não apenas para o público amplo, mas mesmo para a elite intelectual que colhe seus próprios frutos. Filosofia, que era curiosamente chamada de “A Ciência” (com maiúscula e no singular), é uma matéria “difícil” para os não-versados, depois da espatifação dos saberes que é o nosso brave new world. Se até o medievo a formação intelectual partia da conexão divina entre medicina, Direito e ontologia, hoje as muralhas armadas que os separam encerram-se sobre si mesmas, rejeitando qualquer saber que não seja “especialista”, salpicando com veneno termos como “genérico” ou “generalista” – o saber dos gregos, dos latinos, dos escolásticos, dos renascentistas e dos românticos hoje seria chamado de “anti-científico” ou mesmo “negacionista”, por “especialistas” de Globo News.

Este caráter hermético da filosofia – ou melhor, dos filósofos – geralmente se dá pela sua verborragia, com escritos eivados de um estilo que não raro força-se a ser impenetrável. Estudiosos de filosofia acadêmica passaram por muitas aulas cujo objetivo era, basicamente, reescrever mentalmente o que liam, desta vez em “humanês”, enquanto aluninhos ficavam boquiabertos com a “sapiência secreta” dos filósofos – e dos próprios acadêmicos que os traduziam. Marx, Heidegger, toda a Escola de Frankfurt – pensadores que sofrem do que Roger Kimball diagnosticou como “Síndrome October”, o cacoete de escrever de forma propositadamente truncada, apenas para parecer mais profundo, não raro com idéias francamente simplórias (é preciso ser bem detalhista para explicar o marxismo gastando-se mais do que um minuto).

Já Olavo de Carvalho era completamente incomunicável para o establishment acadêmico, midiático e mesmo político que analisava não pela imporosidade, senão pela crítica tecida a um modelo de filosofia fechado em si mesmo – ou seja, que não era filosofia, não era observação da realidade e pureza de conceitos, mas era, justamente, fechamento ao real, um poder burocrático umbigocêntrico em sua auto-referência monomaníaca.

Ora, “filósofos” que estão, justamente, na câmara de ecos artificiais da Academia dependem destes trejeitos para sua profissão. Alguém que não os tenha – pior, que os critique – só pode ser visto como um inimigo. Não um êmulo qualquer, mas um tabu vivo, um perigo feito carne, de nome mais impronunciável do que vilões de histórias de bruxaria.

Toda a graça que dá prestígio a alguém chamado de “filósofo” em meios sociais é sua aparente intransponibilidade. Alguém capaz de refletir sobre abstrações de longos parágrafos em um mundo pragmático, de linguagem direta e extremamente simplificada, dedicando seu tempo não à vida concreta, mas às idéias. É o que se espera de alguém chamado para um jornal televisivo, quando o convidado é apresentado como “filósofo”: uma fala pausada, uma roupa com algum desleixo cirurgicamente escolhido, alguma maluquice dita depois de 7 minutos, algo ininteligível, um muxoxo sobre ninguém ler os acadêmicos e ecce homo, temos um “filósofo” pronto para causar uma impressão no fim do dia e todos se esquecerem do que ele disse na manhã seguinte.

O tanto que Olavo de Carvalho era diferente de tudo isso não pode ser explicado em mil histórias sobre o “velho da Virginia”. Um de seus últimos livros foi sobre Edmund Husserl – que Olavo considerava um dos melhores filósofos do século XX – e sua incumbência foi justamente explicar um texto impenetrável como se contasse o que fizera ontem no café-da-manhã. Nada da liturgia “October” (ironicamente, criadora de seitas, enquanto juravam que Olavo é que formava uma “seita de adoradores”), nada de tentar parecer profundo com um vocabulário petulante, nada daquela pose calculada na qual até os erros são “descolados”. Nada da troca de referências e citações entre professores, sem produção filosófica alguma.

Olavo e os filósofos, para desespero dos não-filósofos que o chamam de não-filósofo

Esta é a parte que todos comentam terem percebido em Olavo de Carvalho – sempre com o mesmo roteiro de estranhamento-completo-que-vai-sendo-tolerado-até-virar-admiração-depois-de-muita-resistência. Mas creio que há uma contrariedade adicional na relação entre o establishment e Olavo, e talvez a única que tenha alguma complexidade (além da demonização do estamento e da mídia, e da querela esquerda x direita): sua relação com o cânone filosófico. Aqueles filósofos famosos, que todos passam uma vida lendo, justamente para ensinar outros a passarem a sua vida lendo – e assim, garantir que ler apenas aqueles filósofos seja o essencial, e que estudar filosofia seja repetir os mesmos jargões, ler os mesmos livros com as mesmas conclusões, macaquear as mesmas firulas. Os filósofos são importantes porque os professores dizem que são importantes, e alunos gastarão o tempo com o que seus professores leram, dizendo que estão aprendendo a pensar sozinhos, sem nunca ler filósofos “desconhecidos”, que não são, afinal, importantes, já que eles próprios não os lêem. Este moto perpetuo é chamado de Academia.

Olavo falar palavrões seria facilmente perdoável para acadêmicos (quanto é engraçado ver progressistas dizendo que Olavo tem fixação com o oritimbó, sendo que 90% do assunto dessa turma envolve a fase anal?). Ter trabalhado com astrologia? Spoiler: qualquer cátedra de filosofia medieval séria vai ter alguns professores que estudaram o mesmo simbolismo que Olavo de Carvalho estudou, porque astronomia e astrologia foram separar-se há pouco mais de um século (tente imaginar ler Blake ou Eliot sem a tal “astrologia”).

Não ter diploma? Pela mesma régua, Paulo Freire também não seria pedagogo, e nem Gramsci qualquer coisa que Gramsci era – o cúmulo da contradição é quem critica Olavo com o argumento do diploma, garantindo que leu mais Gramsci do que ele na faculdade – este Gramsci que não tinha diploma de nada. Meio mundo vende curso de filosofia no Instagram e nunca pediram a credencial de ninguém.

Criticar Newton? (sim, crianças, o debate sobre o olavismo era mais sério há meros 10 anos) As críticas dele são idênticas às de Goethe, Husserl, Schopenhauer, Einstein. Só não deixe os seus alunos com cultura de gibi e youtuber descobrirem.

A quizomba mais original de Olavo não é falar de marxismo cultural ou noticiar a parceria comercial da Pepsi com a Senomyx, que fazia pesquisa com células de um rim de feto abortado – a linha celular HEK-293 – para desenvolver adoçantes artificiais. Tudo isto seria até mais tolerável em Olavo, desde que ele se comportasse mais obedientemente em relação ao cânone universitário.

Para você ter direito à credencial do estamento, você não deve desacreditar o trabalho do departamento vizinho. A Academia, todos sabem, é uma troca de favores. É este o principal acordo de cavalheiros que fazia a mera existência de Olavo intolerável. Para ser um grande estruturalista, você deve rejeitar a fenomenologia – mas nunca tratar com menoscabo autores fenomenólogos, ou seus companheiros de ofício precisarão se manifestar de volta sobre você. A mesma dinâmica é válida para os pragmatistas e os metafísicos. Os racionalistas (incluindo iluministas e iluministros) e todos os românticos, schopenhaurianos, nietzscheanos e mesmo psicanalistas (inclui Lacan, Foucault, Derrida e toda a análise do discurso). Os jusnaturalistas e os utilitaristas. And so on. Todos se consideram uma fraude mutuamente, todos parecem tratar suas discordâncias sem nenhum efeito prático. Afinal, é mera filosofia. Quase como uma brincadeirinha.

Mas a grande verdade é que os filósofos terçam armas no palco, enquanto os professores e “estudantes de filosofia” nunca comentam que escolher A implica tratar B como uma mentira total e completa, um erro – ou mesmo uma tolice, uma vigarice, um charlatanismo, um mal ao mundo. Porque não podem criticar o coleguinha do lado, que se especializou em idealismo alemão, enquanto sua área foi filosofia da ciência – dois pólos opostos que se anulam como ímãs com pólos iguais.

Pior ainda: quantas vezes você viu um professor de filosofia comentando qualquer filósofo consagrado, como um Kant, um Descartes, um Nietzsche, um Deleuze, um Perelman, um Dworkin, um Rancière, um Habermas, mas descascando sua obra, desnudando a roupa do rei, até o ridículo do autor de renome mundial ficar exposto? Pois Olavo de Carvalho refazia o cânone acadêmico diante de nossos olhos. Chega a chamar Charles Sanders Peirce de “um filósofo de quinta categoria” logo no começo de “O Imbecil Coletivo” (Nietzsche não chamou John Stuart Mill de “cabeça-oca”?). Respondendo a um crítico lá nos anos 90, prova como Kant e Hegel pioraram a filosofia – e o mundo. Richard Rorty, o queridinho dos americanistas naqueles idos, é destruído em tantos detalhes que terminamos quase com dó do pragmatista (mas passa logo). Melhor nem lembrar da surra de gato morto que Fritjof Capra leva enquanto ensina a empresários uma macumba holística, supostamente unindo taoísmo, I Ching e física quântica, para chegar a um ambientalismo a la Greta Thunberg. E a lista prossegue interminavelmente.

Acadêmicos da Vila Nhocunhé

Isto sim é uma esculhambação que deixa qualquer membro do estamento burocrático – do qual as Universidades são o centro irradiador, e não órgãos de reflexão e dúvida, como se vendem – de cabelos em pé. Como assim, vamos deixar de ler os autores que fizeram nossa cabeça para passar a ler nomes dos quais nunca ouvimos falar? Como assim, reler o cânone sem deixar os filósofos consagrados por cima – para manter a cátedra exatamente estanque, como sempre foi e como deveria sempre ser – e passar a considerar que Robert Nozick fulminou a obra de John Rawls? Que Allan Bloom revelou os podres de todo o sistema universitário e seu reflexo na sociedade (curioso como tantos filósofos de peso dizem o mesmo que Olavo lá fora)? Que Arthur Koestler provou que “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” está errado quase de ponta a ponta (embora Max Weber seja um excelente sociólogo, justamente em suas obras menos conhecidas)?

E que tal usar essas leituras para alguma coisa? Pode haver maior heresia do que ler o Fedro e O Banquete e aplicar a maio de 68 – e Platão sair ganhando na briga? Ou, ao invés de concordar com a leitura de Heidegger sobre Parmênides, lermos Heidegger à luz de Parmênides? Anátema supremo: ler padres e monges, preferindo os estudiosos do tomismo para entender o século XX do que marxistas, psicanalistas, positivistas e estruturalistas! E que tal constatar que Capra, Rand e Guénon foram péssimos para a direita?

E aquela montoeira de autores dos quais nossos alterosos comunicadores midiáticos nunca ouviram falar? É facílimo imaginar que um Paulo José Cunha, um Eudes Lima, uma Lola Aronovich ou uma Caroline Farah tenham uma, digamos, opinião sobre Sartre ou Schelling – estes que fazem análises a toque de caixa de sua obra na grande mídia, para depois voltarem à nulidade intelectual que são – mas quem é do ramo sabe que até professores universitários esquerdistas nunca tinham ouvido falar em Eric Voegelin, em Louis Lavelle, em François Mauriac, em Henri de Lubac, em Xavier Zubiri, em Bernard Lonergan, em Mário Ferreira dos Santos, em Vicente Ferreira da Silva, em Eugene Webb, em Lionel Trilling, em Leopold Szondi. E Olavo, em suas obras, está constantemente conversando com os maiores autores do século e dos séculos. Tem coisa mais ridícula do que fazer análise de filósofo baseando-se em… post de Facebook?!

Ao invés de uma seita, o professor abria um manancial de leituras que só expandiam as perspectivas. Por isso é difícil continuar acreditando que podíamos nos bastar com o cânone de sempre – por isso Olavo é perigoso ao estamento. Após ler Olavo, percebíamos que era preciso ler o cânone e mais. Como é fácil agarrar-se à primeira desculpa para não ler com a qual a mídia mimoseia qualquer um que a obedeça! Mas como é difícil participar deste diálogo nas esferas: por razões humorísticas, vale imaginar Benjamin Fogel, Mauro Cezar, Gregório Duvivier e tantos outros que tripudiaram de sua morte juntando o máximo de suas sinapses para entender o que Olavo de Carvalho estudava sobre a apreensão instintiva via Zubiri, a teoria dos quatro discursos em Aristóteles (sério, só tente imaginar alguém do Estadão tentando compreender), a paralaxe cognitiva, a anamnese como prólogo para as doze camadas da personalidade…

Tudo isso é uma bomba atômica não apenas no ego ferido de algum colunista da Folha que foi avacalhado em público, mas para a estrutura fundamental do complexo acadêmico – que é, afinal, o que determina o que será dito na mídia, as ideologias que serão repetidas como se tivessem sido refletidas, os assuntos e vocábulos que as expressarão. O aviltamento não é só alguém discordar dos professores do departamento, mas terçar armas contra os maiores nomes da filosofia mundial – e ganhar. O que nenhum desses professores conseguiu fazer com um autor – que dirá às mancheias.

(Spoiler secreto: cada vez há mais professores universitários que adoram Olavo de Carvalho. E bem no centro da Academia nacional, como a USP.)

Os imbecis coletivos imbecilizando-se coletivamente

Filosofia, afinal, não é apenas diálogo, é discordância. Na fórmula de George Santayana, filosofia não é A = B, e sim A é B, e não C. Está sempre em conflito com alguma idéia vigente – dos sofistas ao UOL, que não tem sofisticação nenhuma. É a busca por um saber mais sólido e acima das meras opiniões grupais. O que temos hoje é, justamente, sofística, e bem pouco sofisticada: grupos com vocabulários próprios feitos para acusar outros grupos com base em opiniões sem fundamento na realidade. E todos estes filodoxos têm opiniões fanáticas que tornam-se acusações chanceladas pelo estamento, cheias de -ismos e -fobias, sem nenhuma preocupação com a investigação da realidade.

Esta nova relação com o cânone é que o verdadeiro opróbrio causado por Olavo. Aqui, a marcha da história de Hegel não significa nenhuma melhora na vida. Quem fala em luta de classes dificilmente sabe a qual classe ele próprio pertence. O Iluminismo e sua “razão” significaram na prática tão somente controle social por uma elite burocrática cometendo o primeiro gigantesco genocídio da história. Foucault discorrendo contra o poder do Estado interrompe suas críticas à punição física para ser amarrado e chicoteado por prazer. Descartes, com seu cogito ergo sum, não restabeleceu um racionalismo que a “Idade das Trevas” encobriu, mas sua distinção entre res extensa e res cogitans criara uma bifurcação que invertera a hierarquia do pensamento: o que é propriamente mental e racional é chamado de “corpo”, enquanto o que não pode ser conhecido pela pura lógica, necessitando do sentido, vem rotulado como “mental” (a própria palavra “mensuração” trai sua origem na mens). A confissão filosófica de como Olavo diz ter escapado da gaiola conceitual kantiana – em uma narrativa que alguém com 20 anos entende – é algo para ser lido em todo curso de filosofia que se pretenda sério.

Este foi o trabalho mais imperdoável de Olavo: mostrar que filosofar não é seguir receitas de bolo, repetir fórmulas prontas, ter uma visão esquemática e irreal da filosofia, dos filósofos e sobretudo da realidade. A filosofia é parricídio: é difícil encontrar um discípulo que tenha seguido perfeitamente o mestre. E filosofar (aprendi curiosamente com um grande professor acadêmico na UFPR) é uma atividade contrária à Academia por si, que é o estamento, a produção de burocracia, o círculo fechado sobre si mesmo. É engraçadíssimo ler Schopenhauer referindo-se a Hegel como “ma che imbecille”, enquanto morreu sozinho vivendo numa pensão. É engraçadíssimo ver analfabetos na mídia dizendo que Olavo não é filósofo, porque não gosta de Hegel (bilu-bilu!).

Nesse sentido Olavo de Carvalho logrou êxito considerável em produzir uma nova elite intelectual, como ele sempre reiterava: uma geração interessada em estudar e pensar, não apenas em passar na prova. Não que seus discípulos não tenham uma missão bem mais difícil agora, já aduzida por pensadores como Francisco Escorsim, Ronald Robson, Melquisedec Ferreira (d’A Formação do Imaginário), Rodrigo Gurgel e Pedro Sette-Câmara: estudamos e produzimos nossas obras ainda como outsiders, à margem do sistema. Passou e muito da hora de tomar as cátedras. De deixar não a esquerda, mas todo o sistema auto-referente em desespero com o melhor professor de Direito, de literatura, de língua grega, de relações internacionais, de jornalismo, de economia do país serem todos olavetes. Aqueles professores tão bons que até os inimigos são obrigados a reconhecer a cultura, o conhecimento, a influência. E que não precisam dizer “conservador” a cada 3 palavras. Este trabalho ainda nem começou.

Alguns fenômenos são até estranhos na passagem de Olavo. Como Sir Roger Scruton, que morrera sem conhecer muito do Brasil, ser hoje mais lido num país tropical e pouco afeito à sua prudência do que na sua própria Inglaterra natal. Ou haver tantos cursos sobre Eric Voegelin, cujas obras mais caras estão esgotadas (um pensador certamente um tanto árido). Ou editoras inteiras, como Vide (e seus vários subselos), É Realizações, Kírion, Concreta, além de editoras menores, quase que exclusivamente dedicadas à publicação de livros indicados pelo professor – e como ainda os faltam! Claro, é para o público leitor, e não quem vive com o celular na mão buscando manchetes e tretas de redes sociais: mas esta é a elite intelectual. Nenhum professor – nem mesmo os de áreas feitas para isto, como o Direito – pode se gabar de tanto.

A filosofia é sempre este diálogo, quase sempre silencioso, com os mortos em corpo de idéias vivas. Olavo de Carvalho, em um país antagonista da leitura aprofundada, sem uma vasta tradição filosófica (ainda que ela exista), fez mais de uma geração ler Aristóteles no busão sacolejando. Fez jovens largarem a balada para assistir a aulas sobre Goethe, São Tomás de Aquino, Al-Gazali e Ananda Coomaraswamy. E mesmo à parte do estamento, em uma língua falada por poucos no mundo (o único grande país que fala português é o próprio Brasil), nos legou algumas das melhores análises sobre ontologia. geopolítica, educação, sistemas de poder e tantos outros assuntos da atualidade. E isto em diálogo não com Marx e Freud pela trilionésima vez, mas com Feyerabend, Dooyeweerd, Lee Penn, Pascal Bernardin, Ricardo de la Cierva, Bertrand de Jouvenel…

Mais uma vez, que diversão imaginar qualquer comentarista da Globo News, qualquer jornalista da Folha ou Estadão, qualquer colunista de Istoé ou Congresso em Foco que repita obedientemente “astrólogo” com empáfia de superioridade tentando entender qualquer uma dessas coisas – que dirá participar deste diálogo dos grandes mortos, que dirá ter destaque na tradição, que dirá vencer um debate com os gigantomakía perí ten oisías! Olavo de Carvalho lidou com a filosofia – e mesmo tradições como o perenalismo – não com hermetismo, mas precisamente com clareza, que o permitia falar às massas e aos intelectuais na mesma clave. E é impossível voltar ao cânone de sempre, às mesmas litanias da câmara de ecos acadêmica, com os mesmos olhos e a mesma paciência.

Estivesse sua obra em inglês, francês ou alemão, já teria abalado o centro do pensamento atual, como certamente o fará. Os pensadores anti-sistêmicos cuidam de um assunto. Olavo era uma biblioteca. E que incomodava as outras. Cada incomodado com o seu trabalho, thank God, confirma o seu trabalho. Descanse em paz, professor.

Post Scriptum

Uma das primeiras manifestações da grande mídia sobre a morte de Olavo de Carvalho foi do site de besteirol “Sensacionalista”, do grupo Globo, que disparou: “Onda de calor foi causada por porta do inferno se abrindo para receber Olavo de Carvalho, diz meteorologia”. Se eu cuidasse de vestibular, faria uma análise do tweet cair na Fuvest. Imagine as questões de múltipla escolha que podem ser feitas sobre a análise textual da “piada”. Não poderia haver melhor homenagem ao professor.

O maior problema, afinal, é que o tweet não é uma piada. É só um desejo tosco. Nenhum dos 136 mil que curtiram o tweet riram. Porque Olavo sabia fazer humor negro. O Sensacionalista só sabe destilar raiva, sem nenhuma criatividade – convenhamos, pensar que alguém de quem não gostamos foi pro Inferno quando morre é o primeiro pensamento da humanidade inteira. A isto foi reduzido até o humor negro: à mera maledicência, à criação de ódio em massa, à propaganda política sentimentalista da esquerda, à autolobotomia para pertencer à patotinha, ao sacrifício ritual que René Girard estudou. Se Lula morrer, a “piada” “Lula pergunta onde fica seu tríplex no Inferno” é muito óbvia, e mesmo assim ainda tem mais produção sináptica do que o Sensacionalista.

De minha parte, ri comigo mesmo imaginando Olavo querendo conversar com outros filósofos. Logo quererá ser apresentado a Mário Ferreira dos Santos, que Olavo garantia ser o único filósofo no mundo no século XX capaz de conversar no mesmo tom com Platão e Aristóteles. Um dos últimos livros de Olavo foi uma sistematização da filosofia de Mário. Só que Mário Ferreira reclamava até quando escritores usavam termos como “inútil” em obras sérias. Foi bem mais legal imaginar Olavo abrindo os braços e dizendo: “Pô, Mário, sempre quis te conhecer!” e Mário, hirto, obtemperando: “Não se fala ‘pô’ no Céu, Olavo!”.

Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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