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Indignação com Paris x Mariana: por uma VERDADEIRA polêmica

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Cristo Redentor França

As discussões de redes sociais, geralmente ainda mais distanciadas da realidade escoradas por uma Torre de Marfim do que as discussões acadêmicas (ok, exageramos: não chegam a tanto), seguem sempre um script pré-determinado, tentando vender alguma agenda à luz de sentimentos irrefletidos.

Geralmente, são acusações de preocupação apenas com alguma coisa grande, quando muitas outras ocorrem sem causar a mesma indignação. Mesmo que sejam coisas absolutamente distintas, como um atentado terrorista com potencial para colocar o mundo de joelhos ou uma tragédia ambiental.

No caso, houve muita exigência, choro, ranger de dentes, faniquitos, ataques de pelanca e dorsos da mão à cintura, com pézinho a fustigar violentamente o assoalho, a respeito da manifestação de solidariedade de algumas pessoas com o ataque jihadista em Paris, que colocaram fotos nas redes sociais com as cores da bandeira francesa. Reclamam estes de que não houve o mesmo grau de solidariedade (na verdade, a mesma externalização) no caso da tragédia ambiental com uma barragem na cidade mineira de Mariana.

Nosso amigo Gustavo Nogy brilhantemente expôs o caso:

Um dos paradoxos mais célebres da história é elaborado por Zenão, filósofo grego. Este nos conta a infausta disputa entre o intrépido Aquiles e a morosa Tartaruga. O herói, certo de sua acachapante vitória, houve por bem conceder a sua oponente alguns poucos metros (ou centímetros) de vantagem.
Ocorre que, para assombro de todos, Aquiles não consegue ultrapassar a Tartaruga, porque para fazê-lo ele teria de percorrer o espaço já percorrido por ela. Mas para percorrer esse espaço, ele teria de percorrer a metade desse espaço. E para percorrer a metade desse espaço, ele teria de percorrer a metade da metade desse espaço. E assim por diante.

Aquiles nunca logrará sair do lugar. A Tartaruga vence a disputa.

No Brasil, me parece que temos uma interessante atualização desse paradoxo. Aproximadamente 150 pessoas morrem em Paris e José, o Aquiles brasileiro, quer muito sinceramente se indignar com o horror em França. Mas antes de se indignar com todo horror em França, ele aprende que tem de se revoltar por causa do terror em África. Mas antes de se revoltar por causa do terror em África, ele deve se mostrar consternado com a tragédia em Minas Gerais. Mas antes de se mostrar consternado com a tragédia em Minas Gerais, ele tem de necessariamente chorar pelos 200 mortos na boate Kiss. E assim por diante.

José, o Aquiles brasileiro, nunca conseguirá verter uma lágrima sequer de piedade por ninguém. A Indiferença vence a disputa.

O radar de indignação e os fiscais de indignação alheia são muito bem colocados por Nogy para mostrar como esta tentativa pós-iluminista de escalonizar, hierarquizar e racionalizar segundo um esquematismo mental o sentimento humano de empatia só dá lugar à Indiferença como rainha triunfante (aprofundaremos isto em artigos vindouros).

Entretanto, há outros motivos mais sérios do que a disputa do eu-sou-mais-humanitaristicamente-indignado-do-que-você para se recusar a usar a bandeira da França no avatar.

E o motivo é a própria bandeira da França.

Suas três cores até hoje fazem menção ao Liberté, égalité, fraternité, mote tanto da República Francesa após a derrubada da monarquia na Revolução Francesa, quanto da República do Haiti.

revolução-francesaA Revolução Francesa é o evento mais mal estudado (quando estudado) do Brasil. Aqui, crê-se que o “absolutismo” era o mal em si, que todo o povo era oprimido como se Louis XVI fosse tão tirânico e plenipotenciário quanto Hitler ou Stalin (obviamente que a educação brasileira não trata Stalin como “tirânico e plenipotenciário”, a não ser como “traidor do marxismo original”, e não comenta nada sobre Mao, Kim Il-sung, Ceaușescu, Milošević, Enver Hoxha, Khrushchev, Walter Ulbricht ou outros totalitários socialistas). E, claro, que a Revolução Francesa foi um movimento horizontal, espontâneo, pacífico, sem líderes e apartidário que tomou o poder para distribuí-lo ao povo, mas que por acidente no meio do caminho foi tomada por uma minoria de vândalos.

Todo o pensamento brasileiro, quando não é positivista, é iluminista (ver o imperdível livro de Bruno Garschagen, Pare de Acreditar no Governo. Por que os Brasileiros não Confiam nos Políticos e Amam o Estado). E crê firmemente que a Revolução Francesa é a libertadora suprema do mundo, que não seríamos livres sem a Revolução, que tudo o que veio antes dela era “direita” e que se hoje alguém vive sem o peso de uma ditadura, é pelo surgimento da esquerda jacobina tirando o poder dos nobres para dá-lo ao povo.

Revolução Francesa TerrorNada mais distante da realidade – e nada que, quando questionado com base em leituras, não ganhe como resposta um automático “Vá estudar História!” de alguém que nunca leu um livro a respeito. Apenas o momento do Terror, na Revolução Francesa, em questão de 8 anos matou cerca de 10 vezes mais do que 4 séculos de Inquisição Espanhola.

E o Terror foi apenas um dos momentos em que intelectuais progressistas do escol de Robespierre e Saint-Just tentaram “reformar” a sociedade segundo um plano “racional”, mandando para a guilhotina quem não se encaixasse em seu Eldorado glorioso. Ambos acabaram eles próprios degolados, por quem notasse falta de progressismo nos progressistas originais.

A mesma futura situação da Revolução Russa caçando seus criadores. A mesma situação autofágica da esquerda contemporânea. Quem conhecia a Revolução de Saturno está muito mais bem informado do que os “racionais” de plantão.

La Marseillaise era uma canção para encorajar soldados no Reno quando a França declarou guerra à Áustria. Com a popularidade que ganhou na Revolução, foi alçada à hino do país, agora republicano.

E “República”, neste contexto Iluminista (que tanto iria confundir Karl Marx, a ponto de fazê-lo acreditar que o motor da história era uma tal “luta de classes”), significa: trocar o poder do Rei, limitado pela fé, pela Providência e pela própria nobreza, e colocá-lo inteiro nas mãos do primeiro totalitário em larga escala da humanidade, Napoleão Bonaparte.

Napoleão Bonaparte, esta figura estranhamente ignorada por um Brasil tão envesso ao Iluminismo, foi o cume da Revolução: quando todo um povo está “democraticamente” pensando igual, só é preciso uma cabeça para representá-lo. Um esquematismo vazio, chamado de “racionalismo” por gente que usa pouco a razão, teve como zênite as primeiras guerras, o primeiro homem com poder total sem um deus a refreá-lo, o primeiro genocídio a ultrapassar 1 milhão de mortes na história mundial (o equivalente, na época, a muito mais do que Hitler, ombreando Stalin).

Tudo isto foi feito com… La Marseillaise e as três cores da bandeira francesa até hoje, representando aquele Liberté, égalité, fraternité mais brega do que o Falcão.

Revolução Francesa

É uma referência adequada para uma bandeira hoje? Para um hino? Para ser usado como um símbolo de, ehrr… liberté? Fora a égalité da cova comum, certamente. Para a fraternité da guilhotina, também. Mas é um símbolo adequado para um país, a não ser pela velha tática do revisionismo, do “não foi bem assim”, de ignorar aquelas páginas sobre genocídio?

Foi Fouché quem mandou imprimir na entrada dos cemitérios a frase La mort est un sommeil éternel (“a morte é um sono eterno”), negando qualquer valor à vida além de um amontoado de átomos, em sua política de déchristianisation. O resultado foi que estes obscuros e atrasados cristãos morreram às mancheias por inadequação a este novo futuro glorioso de “liberdade, igualdade e fraternidade”.

As pessoas usam as cores da França como se fossem simplesmente… cores. Sem significado. Apenas por que alguém achou bonito, como se compra uma camiseta na C&A. Mas num dia em que lamentamos mortes promovidas por aqueles mesmos que querem uma nova déchristianisation?

“Descristianização” esta curiosamente defendida pelos mesmos ateus e seculares da esquerda, que supostamente são “racionais”, “iluministas” e “tolerantes”, mas que defendem qualquer propaganda islâmica de imigrações em massa até voto a imigrantes ilegais, desde que sejam contra o “inimigo comum” cristão? (quem pensou no Charlie Hebdo, pensou corretamente.)

Revolução Francesa 2Logo estas cores precisam ser utilizadas? Se há alguma bandeira que precisava de uma reforma no mundo moderno, esta bandeira é a francesa. Se nos livramos da simbologia, das cores e dos signos da Alemanha nazista e da União Soviética, fora a dificuldade em inverter o que já está assentado, por que a França manteve intacta toda a sua imagética derivada de outro banho de sangue?

E o que significa todo esse esquematismo oco, que acha que repetir liberdade, igualdade e fraternidade é “razão”, e não, justamente, apelo sentimento cada vez mais desconectado de alguma investigação filosófica séria?

Tal como fazem as músicas ultra-populares (da dor-de-corno ao hip hop, da MPB à música de cópula e hedonismo grupal), são meras generalizações extremas. Como um horóscopo de jornal de ônibus. Qualquer um se diz defensor de alguma forma de liberdade, de igualdade, de fraternidade. Basta definir o que é que o pau come. Mas enquanto se mantém apenas numa abstração, todos se consideram representados, todos garantem que defendem tal idéia.

É exatamente o que é defendido nas cores da bandeira da França. Muito mais sensatas são nossas cores, representando o verde-Bragança e o amarelo-ouro dos Habsburgos de nossa imperatriz Leopoldina. Isto sim é uma bandeira de respeito.

Paris Je taimeApesar da aparência de inocência, o que é simbolizado pela bandeira da França não é um morticínio muito diferente do morticínio do dia 13 de novembro (o alvo é o mesmo, o perpetrador de hoje foi o promovido pelo progressismo égalitariste de ontem).

Esta sim é uma discussão de verdade, não uma verborragia júnior de perebas discutindo em redes sociais.

E por que não usar a bandeira de Minas Gerais para falar de Mariana? Em primeiro lugar, por que bandeiras não são argumento contra a natureza. E em segundo, por que a famosa bandeira da Inconfidência Mineira (evento histórico nulo de efeitos, apesar da bela intenção anti-impostos, aclamado apenas por ter ocorrido no mesmíssimo 1789) não foi inspirada senão… na Revolução Francesa.

Agora que tiveram um esbocinho de história a ser realmente estudada, podem voltar para suas discussões nulas no Facebook e no Twitter.

Je Suis Paris

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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