Barraco na Câmara? Hora de ler os clássicos
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A polissemia, ou seja, os vários sentidos do vocábulo “político” confundem mais o Brasil e os jovens países do que os lugares abençoados há séculos pelo advento da civilização. Aferrando-se à etimologia, “político” vem de pólis, a cidade (mais no sentido de “civilizada” do que de “distrito”). Como na pólis todos precisam conviver, é necessário criar regras para o convívio, sob as quais todos deverão obedecer, mesmo que não desejem (não andar pelado na rua, por exemplo).
Saber do que acontece na pólis pode ser chamado, pela flexão das línguas modernas, de um saber político. Atuar na pólis também é ser político. E modificar a pólis pela força das regras dela também é um agir político.
Saber do que acontece na pólis (seja uma cidade ou, hoje, o país e o mundo) é o que podemos chamar de ser politizado, e isto é positivo. Transformar questões privadas, ou tentar modificar a pólis para que ela se encaixe em nossa estreita visão de mundo, através de um esquematismo mental (o legado do Iluminismo e seu pretenso “racionalismo” ao presente) também é ser politizado, e isto é negativo.
Basta ver como qualquer corrupto adora sacar palavras como “político” ou “democracia”, sempre apelando para o sentimento positivo que tais palavras evocam, justamente para defender o que fazem – incluindo os ataques à liberdade e ao nosso bolso. Quem se lembra do galalau que atacou ao vivo a jornalista Monalisa Perrone, e em sua defesa se considerou “muito politizado”, mesmo sustentado pela mamãe?
Ontem escrevi no Twitter e em minha página no Facebook o seguinte post:
A porradaria na Câmara é engraçada. Mas é ela que deixa a política no front, enquanto Thomas Mann, Shakespeare e Hölderlin mofam na estante. A política nos torna escravos do presente. É por isto que os “politizados” precisam sair do poder: para nos permitir pensar no que é Eterno. Nunca seremos um país decente enquanto tivermos de nos preocupar com notícias, enquanto o mundo civilizado se preocupa com a existência. Boa parte dos brasileiros lê todos os dias. Mas notícias que não duram 2 dias. Temos prazo de validade muito curto. Cultura é o contrário. Enquanto o país não estiver mais preocupado com a ficção e a filosofia, significa que estamos condenados a uma cultura doente pela política.
A política do nosso país é ruim (ao contrário da política da Suíça, da Austrália ou do Canadá) não por nos “faltar” consciência política (este terrível adjetivo), mas justamente por nossa vida ser politizada em excesso.
Qualquer questão privada, como a educação dos filhos, a economia doméstica, o planejamento familiar, o sexo, as escolhas do indivíduo em busca de contratos mútuos com outros indivíduos, são tratados politicamente em nosso país.
Basta ver o grosso das discussões na Câmara: o que não for autofágico, ou seja, não disser respeito à própria Câmara e sua relação com outros órgãos políticos, é invasão da política em nossa vida privada.
Isto, naturalmente, nos obriga a sermos “politizados”, no sentido de termos de saber o quanto algum político engravatado e endinheirado está tentando controlar nossas carteiras e, mais importante, nossas vidas – sejam os planos de educação que não querem mais ensinar que houve algo entre a Assíria antiga e as papagaiadas sobre “imperialismo” ou as “glórias” da Revolução Russa (sem nunca falar em Holodomor, Gulag, Stalin ou KGB), sejam os planos econômicos do governo que pagam os próprios rombos com o nosso dinheiro. Sem falar, claro, em nosso dinheiro roubado para ser dado para ditaduras, em planos totalitários de compra de poder, em cifras que vão dos bilhões aos trilhões etc.
Mas o problema que disso surge é nos preocuparmos eternamente com o presente, e não olhar o presente sob a ótica do Eterno. Qualquer revista ou jornal do mundo civilizado possui algumas páginas de política, e provavelmente metade ou mais do conteúdo dedicado à cultura. À literatura, à história, aos pensamentos perenes e sempiternos.
É assim que se enxerga o presente. De nada adianta tentar entender a variação do dólar sem ler algo como Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos, de Jesús Huerta de Soto, ou tentar compreender algo como o petrolão ou as pedaladas fiscais e toda a jogatina do PT entre os três poderes sem buscar uma obra basilar como O Poder, de Bertrand de Jouvenel.
Infelizmente, a urgência que certos temas levantam exige-nos alguma resposta imediata, e o resultado mais comum é nos tornarmos monotemáticos – eternamente comentando notícias, criando páginas e perfis em que o tema político é único, findo e universal, em que queremos os detalhes de cada tramitação de cada parlamentar no nosso ridículo Congresso. Não à toa, também, que sejamos uma nação de advogados (temos mais advogados do que todo o restante do mundo somado), por termos tantas preocupações com o presente e com o lado jurídico da vida política.
Mas urge fazer escolhas. E saber ignorar a política vez ou outra. Ou umas boas vezes por dia. Até há poucos anos, antes de o PT politizar nossa vida (no pior sentido possível) de cabo a rabo, tornando-nos engrenagens do poder público (as mais rebeldes engrenagens que sejam), vivíamos sem saber o nome de um único ministro do STF, mal lembrávamos se o cidadão X era senador ou deputado (nem pergunte se estadual ou federal), operações da Polícia Federal não tinham seu nome conhecido até pelo tio da venda.
E éramos um país melhor, com uma política até em certos aspectos menos pior (os políticos eram praticamente os mesmos, só a ascensão do PT que mudou). Porque éramos menos políticos. Ou politizados.
É assim que devemos parar de desperdiçar nosso talento falando tão somente de política, e voltar para a cultura perene. Fachin empacou o processo de impeachment? Excelente semana para ler Amores & A Arte de Amar, de Ovídio. Alckmin promete que vai aumentar o tom sobre o impeachment? Aproveite para entender como Vicente Ferreira da Silva conjuga a filosofia da mitologia e da revelação, de Schelling a Mircea Eliade, para articulá-la com a fenomenologia de Heidegger e o existencialismo de Kirkegaard. Quer entender por que Dilma não cai? O primeiro passo é revisitar Édipo Tirano, em suas agruras para fugir do destino que sabe ser seu e do qual não precisaria fugir se não soubesse, analisar suas ações e pensamentos que crê serem seus, quando há algo muito mais forte anterior à vontade em si mesmo (quem tem vontade de sentir uma vontade?), o que o faz tentar resolver um problema de ordem cósmica através da arrogância do poder político (não se esqueça de pedir ajuda a Jean-Pierre Vernant para se blindar contra a ridícula interpretação psicanalítica e sua falsificação do mito, de quebra dando muita risada de quem acredita que Édipo tem um “complexo” que todos temos de desejar matar o pai e dormir com a própria mãe). E se faltar coragem para entender as dinâmicas e conseqüências dos pactos demoníacos por conhecimento – seja em Marlowe, Guimarães Rosa, Thomas Mann ou Goethe – que tal assistir a obra de arte da adaptação deste último no cinema expressionista de F. W. Murnau? E tem algo sobre o poder, sobre a sociedade, sobre o ser humano que já não tenha sido tratado com esmero supremo por Shakespeare – pode ler em companhia de Harold Bloom ou René Girard – e suas peças e poemas que nos lembram de ler versos antes de ler prosa?
Só ignorando um pouco a aparência de urgência do presente e voltando nossos olhos, atenção e preocupação para a eternidade da cultura, da civilização, da literatura, da filosofia, da história distanciada, que podemos ter alguma sanidade e mesmo percepção correta do presente (imagine-se vendo uma notícia sobre Cunha e Dilma sem nunca ter ouvido falar do que ambos os personagens fizeram de ontem para trás).
O desastre da política nacional não é só a alienação do povo, mas também seu repuxo: a politização do que não deveria ser político. Em uma sociedade civilizada, política serve para a segurança e para discutir cores de prédios públicos ou nomes de viadutos – discussão de velhinhas fofoqueiras mesmo. Nosso verdadeiro interesse na vida deve ser em saber se Nutella é feminino ou neutro em alemão ou no modelo narrativo do videogame Shadow of the Colossus; Precisamos tirar os partidos da politização para termos uma vida livre novamente.
Mas até para isso precisamos abdicar um pouco das minudências de cada notícia e focar nossos esforços no que é eterno ou atemporal. É por isso que países da civilização ganham Prêmios Nobel e têm uma literatura fortíssima (mesmo quando devastados por guerras ou políticos ruins), enquanto nós temos pessoas geniais, que são desperdiçadas pela discussão política em moto perpetuo.
E você, quando foi a última vez que parou para ler um poema épico como Omeros de Derek Walcott?
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