Uma lição de jornalismo de André Forastieri
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André Forastieri deu uma lição de jornalismo ao Brasil nesta semana. Num artigo fortíssimo, o colunista do portal R7 explicou Por que você precisa defender Bolsonaro. A polêmica já começa no título, e o conteúdo promete ser nitroglicerina pura para a hipersensibilidade típica brasileira.
Lá, Forastieri explica que “Ele é um troglodita. Ele defende a tortura. Ele é machista. Ele tem preconceitos com as minorias. Ele é… Donald Trump”.
Mas Forastieri sopesa os fatos, contrabalanceando o fato de que “O que não se vê nos Estados Unidos é uma tentativa de calar Trump”.
Disto, extrai suas razões:
Bolsonaro tem todo direito de dedicar seu voto a quem quiser. Tem direito de defender que a tortura deveria ser legalizada no Brasil. As declarações de Bolsonaro te causam horror? Mais uma razão para defendê-lo. A liberdade de expressão que importa é a de quem te causa horror. Porque é o certo. E por interesse próprio: o que você diz também pode causar horror a alguém.
E conclui: “Mas os canalhas também têm direito à liberdade de expressão. Mesmo os deputados. Mesmo os perigosos”. E também dá outros exemplos:
É patético que Bolsonaro seja perseguido por exercer sua liberdade de expressão, enquanto gente que teve participação direta na ditadura está tranquila por aí. O bandido que torturou Dilma Rousseff vive tranquilamente no Guarujá e nunca passou um dia na cadeia, nem enfrentar abaixo-assinados ou perseguição. Harry Shibata, legista do Doi-Codi, é meu vizinho de bairro. E, claro, tortura acontece todo dia em alguma delegacia do país.
Aliberdade de expressão é um conceito quase oco no Brasil. Não temos idéia do que isto significa – apenas importamos a palavra de uma cultura liberal, de defesa da individualidade e do contraditório, do e pluribus unum, ficamos apatetados diante da força de comoção da expressão.
Liberdade de expressão significa defender as palavras de quem você discorda – até Ceaușescu ou Hitler defendiam a liberdade de expressão de quem concordava com eles.
Hoje são famosos os memes (nossa intelectualidade pensa por memes) dizendo monstruosidades como “Liberdade de expressão não é liberdade de ofender”, quando a única liberdade de expressão que merece o nome é a que ofende outrem. Falar o que não vai ofender é o que se faz na missa ou quando se vai conhecer os sogros.
Em tempos em que o único refúgio da esquerda não é mais a economia ou a promessa de liberdade política (como se vê, é a tentativa de impedir a liberdade política dos adversários), seu apelo está em proteger as pessoas de idéias, de palavras, daquilo que não as atinge em nada. É a ideologia por trás de conceitos como micro-agressão ou discurso de ódio: aquilo que alguém de esquerda odeia ou queira censurar só precisa “micro-agredir” alguém (ou algo, ou uma idéia contrária, ou um pontinho amarelo no meio da floresta) para ser passível de se passar a borracha por cima.
O AI-5 nunca tentou censurar nem as ofensas mais pesadas à ditadura – se preocupava muito mais com o comunismo e, burros dos milicos que eram, com o que parecia comunismo (Carlos Taquari, em Tiranos & Tiranetes, conta como tentaram censurar até a exibição de uma peça sobre O Vermelho e o Negro, pois se tinha vermelho, deveria ter comunismo ali).
Até uma frase que não é de Voltaire, mas de sua biógrafa Evelyn Beatrice Hall, já no século XX, ficou famosa para explicar o caso: “Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até o ultimo instante seu direito de dizê-la”. O exato oposto da situação daqueles que gritam “ditadura!” para cima e para baixo no Brasil.
O que é exatamente o caso de André Forastieri.
Sua maior aula de jornalismo brasileiro é como se faz de fato jornalismo em nosso país. Você espera a tal nitroglicerina pura para a hipersensibilidade brasileira pelo seu título fortíssimo, e tudo o que lê é mamão com açúcar, é fuga da polêmica, é medo de pegar mal, é o adesismo imediato a qualquer modismo como se justamente obedecer fosse uma contravenção, é a aplicação do apotegma de Homer Simpson: “Nunca diga nada a não ser que tenha certeza de que todo o mundo pensa o mesmo”.
São as referências de Forastieri que contam, não seu “raciocínio” (a diferença entre sentido e referência, Sinn e Bedeutung, tão maravilhosamente trabalhada por Frege). Raramente leitores de portais estão no alto nível da busca por argumentos e formas de pensamento, o que apenas aparentemente todo o seu artigo tenta fazer – o que seria o seu “sentido” interno, independente de se referir a algo no ar.
Pelo contrário, Forastieri mostrou como se faz jornalismo brasileiro: apenas com o que é universalmente aceito, apenas com aquilo que pega bem de se falar num volume normal de voz na Vila Madalena.
Suas referências são ridiculamente fracas, quando não francamente mentirosas, de proa a popa. “Ele é um troglodita. Ele defende a tortura. Ele é machista. Ele tem preconceitos com as minorias. Ele é… Donald Trump”?! Basta xingar Jair Bolsonaro de coisas genéricas, indefiníveis e, sobretudo, sem provas suficientes (a “defesa da tortura” da tortura pelo deputado precisa de uns 5 subníveis de analogias para ser levada a sério) e voilà, você tem o seu artigão jornalístico para mostrar tanto sua coragem em polemizar com o que todos concordam quanto esperar aplausos gerais justamente por isso.
Melhor ainda pinçar de seu arrazoado trechos risíveis como:
O argumento é que como Ustra jamais foi condenado pela Justiça, é “inocente”. Mesmo após dezenas de testemunhas apontarem o coronel como um sádico que chegou a torturar crianças e grávidas. É o argumento frouxo de um canalha, que é o que Bolsonaro é.
Mesmo após citar a irrefutável resposta de Jair Bolsonaro sobre seu voto, o jornalista conclui que quem não foi condenado pela Justiça, agora, só é “inocente” entre aspas. André Forastieri é “inocente”.
Tampouco passa pela caçoleta de Forastieri questionar uma afirmação dada como Verdade Revelada, a de que “dezenas de testemunhas” apontam o coronel como um sádico (PÉIM! Em seu processo, é uma testemunha, que afirma que reconheceu sua voz [sic]), estas mesmas testemunhas que afiançam que não houve pedaladas e, se houve, não são crime e, se são crime, todos cometeram, que o mensalão não existe e se chama “ação penal 470”, que Dilma é uma mulher honrada e não cometeu crime algum e viva Che Guevara, Marighella e Carlos Lamarca!
E torturar crianças e grávidas? O telefone sem fio do jornalismo-para a-galera-descolada vai ficando cada vez mais hilário. Primeiro, foi a afirmação de que o coronel Ustra torturou a própria Dilma Rousseff e arrancou seus dentes com um soco, o que nem a própria presidente nunca acusou. Depois, falou-se da grávida Crimeia Schimdt (porque a ditadura estava perseguindo os pobres Joões da Silva), cujo filho foi batizado no capelão militar e teve enxoval pago pelo próprio Exército. Agora Forastieri adiciona “crianças” aí e corre para o abraço da torcida organizada. No próximo texto sobre Ustra, já podem adicionar na lista de “torturados” pelo endiabrado Ustra “velhinhos, cachorros e animais de médio porte”.
E quando Forastieri, para mostrar que não está para brincadeira, jura que tortura acontece “em qualquer delegacia do país” (afinal, todo policial é torturador, e nenhum bandido nunca torturou ninguém, muito menos num seqüestro, muito menos gente do Comando Vermelho, que não tem este nome por mera coincidência)?
Melhor é quando um esquerdista como Forastieri, além de atribuir crimes a “inocentes” e praticar o telefone sem fio do jornalismo brasileiro, precisa acusar aliviando. É o que faz com Delfim Netto, o pior economista que o país teve antes de Guido Mantega, que, palavras de Forastieri, foi “mandante” de tortura, ” fazia a ponte com o empresariado paulista, para [sic] o financiamento da tortura” e “[h]oje é conselheiro de Temer”.
Apesar de comentar que também foi conselheiro de Lula, por que não mostra que Delfim Netto está há anos tão mergulhado na esquerda que apoiou o PT, apoiou Lula, apoiou Dilma e tem coluna em nada menos do que a Carta Capital? Revista, aliás, ultra-petista, mas de um ex-apoiador da ditadura, Mino Carta, que depois flertou com Orestes Quércia antes de se fazer de petista com o PT já quase no poder.
Fico imaginando o que André Forastieri diria se alguém dedicasse uma abstenção a Delfim Netto. Foi voto pró-ditadura? Foi voto pró-Dilma? Tira no cara-ou-coroa ou no palitinho?
Para alguém que defendeu tanto a liberdade de expressão, vê-se apenas alguém cheio de dedos para conseguir criticar até mesmo um partícipe da ditadura, quando ele debanda para a esquerda. Um cuidado exageradíssimo para não “micro-agredir” ninguém. Uma defesa do livre pensamento de dentro de uma gaiolinha cerebral minúscula.
André Forastieri é uma aula de como se faz jornalismo num país de jornalismo ridículo como o Brasil. Basta tomar qualquer boato, sobretudo de internet, como verdade suprema, e trabalhar com o aceito pela turminha das redes.
Questionar a narrativa, mesmo que ela esteja entupida de mentiras? Não, o jornalismo só precisa concordar com o que um grupo escolhido toma como verdade, não informar. Fazer perguntas, então, é muito pior do que defender a ditadura. Ou Marighella, que não merece questionamento nenhum por Forastieri e sua turma.
O jornalismo desta gente nunca atravessa a fronteira do que pensam gente como PC Siqueira, Porta dos Fundos, Mônica Iozzi, Pablo Villaça, Zé de Abreu, Ivete Sangalo, Emicida e qualquer tuiteiro que consiga dizer “Eu estudei história”, “machista”, “defensor da ditadura”, “não vai ter golpe” e “fora Cunha”. Eles confundem verdade com aquilo que a Vila Madalena aceita em uniformidade sem nunca buscar as fontes.
André Forastieri sempre foi uma aula de jornalismo brasileiro – e por que o nosso jornalismo não vale pra segurar os protestos com excrementos contra os não-esquerdistas em público, hoje. Mas hoje, até para falar algo que poderia finalmente sair do mais do mesmo, resolveu mergulhar fundo na boçalidade. André Forastieri é o jornalismo brasileiro que se fez carne.
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