Refundando a narrativa do Brasil pós-PT
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Se o Brasil mudou pós-2014 não foi porque o país se dividiu (tudo mundo sempre se odiou, só estava mais fácil disfarçar), e sim por uma quebra da narrativa de seu mito fundador atual, o partido que desafiou as elites e que, se recebe uma critica, é por alguém querer manter privilégios iníquos que este partido ameaça em nome da justiça social.
É um mito fundador que só funciona num país já predisposto à sua aceitação. Não é possível entender o Brasil sem os seus maiores analistas, ainda que com seus erros, como Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre ou a Fenomenologia do Brasileiro de Vilém Flusser. Mas mesmo com este arcabouço é difícil explicar por que o brasileiro repudiou Collor e chama o impeachment da Dilma de “golpe”, ou por que acusa Maluf de corrupção, mas não vê crime nas pedaladas fiscais.
Nosso grande amigo Alexandre Soares Silva descobriu uma livreto perdido que pode ser considerado o primeiro estudo mitógrafo do Brasil, e curiosamente o mais atual. O mito brasileiro mais que sobrevive na política atual não é o do homem cordial de Sérgio Buarque ou os bandeirantes, sendo muito mais próximo a nós uma aldeia esquecida de nossa historiografia.
Em 1637 o capitão de fragata Alphonso Vasconcellos de Tomilho e Toscano desceu o delta dos rios Carukango e Paquequer, descobrindo atrás dos montes a aldeia nhocunha, alienada das outras tribos ao redor, que já operavam tecnologia portuguesa e holandesa, aprendiam línguas européias e avançavam seus hábitos, roupas, pertences, modelos de caça, agricultura e sistemas sociais.
Após cerca de uma década estudando seus hábitos, redigiu o libelo Dos hábitos e costumes permanentes das tribos Goitacás e a aldeia dos nhocunhas, em que tenta decifrar por que a aldeia perdida parava no tempo enquanto as guerras entre tribos e as alianças com europeus para destruir inimigos ensejavam um avanço notável em tribos bem mais complexas.
O curto livro de Alphonso Vasconcellos de Tomilho e Toscano nota admirado que na aldeia nhocunha da tribo Goitacá havia um sistema de distribuição social extremamente desigual, em que o cacique possuía muito mais poder do que a média da organização social pré-colombiana, o que lhe permitia praticar de estupros coletivos ao hábito difundido do escambo interno, prometendo quinquilharias para seus caçadores não questionarem seus hábitos além de seus poderes.
Ocasionalmente, Alphonso Vasconcellos de Tomilho e Toscano viu mais de uma vez durante seu tempo na aldeia, os mais desafortunados tentavam se rebelar contra o cacique, sobretudo após travarem algum contato com tribos mais avançadas ao redor. Mas o cacique, que precisava justificar seu poder e manter a unidade da aldeia, sempre apelava ao sentimento tribal perante os inimigos poderosos, gritando o nome da aldeia: “Nhocunha!”, ao que a aldeia inteira passava a repetir, com orgulho coletivo: “Nhocunha! Nhocunha? É, nhocunha? Nhocunha! Mas nhocunha?!”
Qualquer possibilidade de mudança e avanço era sempre esmagada sob o peso da obediência imediata ao nome da aldeia, repetido em uniformidade absoluta por todos os que poderiam ver alguma possibilidade de progresso e de um cacique que melhor cuidasse da aldeia.
Se o cacique tomasse de um aldeão sua caça, seu trabalho e sua esposa, deixando seus filhos sem o de comer, não se precisaria de nada além do grito de guerra “Nhocunha! Nhocunha?” para que os aldeões até agradecessem se o cacique, com menoscabo, ainda atirasse as cascas frias de tatu como alimento para os desfavorecidos, que só poderiam existir graças às bênçãos do cacique nhocunha.
Se a aldeia inteira passasse fome, todo questionamento ao cacique só precisaria de um grito “Nhocunha?!” para ser silenciado, trocando a indignação pela suave aceitação do consumo de grama como iguaria da terra.
Ainda que o próprio cacique se locupletasse em comportamentos os mais bárbaros, do qual ele próprio deveria ser zeloso guardião, como a proteção dos bens dos nhocunhas, bastava a eles serem lembrados de seu nome, da defesa de seu sistema de manutenção de poder, para que até os mais impávidos guerreiros e os que mais sofriam com o cacique repetissem em uníssono: “Nhocunha! Nhocunha!” pintando-se de vermelho com estrelas cintilantes até o lado esquerdo das nádegas em defesa de seu próprio carrasco.
Mesmo um estupro coletivo poderia ser ignorado quando o cacique batesse seu cajado gritando “Nhocunha! Nhocunha?”, até pedindo para as próprias estupradas mostrarem o estado de seu clítoris à toda a aldeia, o que elas faziam imediatamente avisando a quem pudesse ver o estado do seu prazer sexual.
E havia os índios responsáveis pela informação dos outros nhocunhas da situação da aldeia em relação a outras triboss e às intempéries da natureza. Estes, paulatinamente, deixaram de possuir qualquer forma profunda de conhecimento ou algo próprio a pensar e dizer, e apenas adiantavam o apotegma de seu cacique, já informando as pessoas apenas nos termos “Nhocunha! Nhocunha! Nhocunha! Mas Nhocunha!”
Alphonso Vasconcellos de Tomilho e Toscano acabou sendo morto a flechadas ao tentar avisar por carta ao diário Tempos de Cidade Nova sobre os hábitos do cacique com o alambique, antes de concluir seu libelo, não permitindo que se soubesse que rumo tomou a aldeia dos nhocunhas e seu restrito vocabulário quando os índios nhocunhas perceberam que a tribo vizinha estava com um surto de disenteria mais forte do que sua capacidade em adquirir folhas para a limpeza, e quando uma outra vizinha se livrou de seu cacique, servindo de inspiração para que um novo caçador questionasse o poder do cacique nhocunha, e o que a triste aldeia de tão restritas faria com sua própria crise intestina sobre o novo caçador.
De toda forma, o libelo descoberto por Alexandre Soares Silva mostra o poder real dos mitos fundadores sobre o Brasil, e como eles se repetem, primeiro como farsa, depois como tragédia, hoje como meme, como mito explicador da mentalidade brasileira e sua grande diferença jabuticabística em relação ao mundo.
Resta saber se os limites infranqueáveis das mitomanias nacionais superará os limites de sua própria capacidade de se cegar à realidade.
Agradecemos a Alexandre Soares Silva, por nos permitir o uso do libelo que sua imaginação descobriu.
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