O que é a tal “democracia” que o PT tanto defende?
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John Jay Chapman afirmava que Browning usava Deus em sua obra como substantivo, verbo, adjetivo, advérbio, interjeição e preposição. Edmund Wilson, em Rumo à Estação Finlândia, a maior história das idéias socialistas até a Lenin, cita o fato para cotejar com Trotsky, que faz exatamente o mesmo com a palavra “História” (da “lata de lixo da História” até o moderno “eu estudei História!” dos professores trotskystas). Nos últimos meses, o Brasil virou uma histeria coletiva repetindo a receita com o termo “democracia”.
Na votação do impeachment na Câmara, era quase uma certeza que quem falasse em “democracia” defenderia a permanência da petista Dilma Rousseff na presidência. Qualquer pessoa alinhada à esquerda considerou o impeachment um “golpe” à “democracia”. Quase a totalidade das pessoas alinhadas à direita considerou que elas próprias é que são democráticas, e o PT que esbulhou a democracia.
A palavra democracia é defendida quase como uma palavra, sem uma referência a um conteúdo claro na realidade. O que o antropólogo Claude Lévi-Strauss chama de significante flutuante – termo que pode significar qualquer coisa conforme as circunstâncias. O que importa é menos um referente concreto e objetivo do que o poder encantatório da própria palavra mágica.
Não é uma popularesca discussão entre aqueles que não alcançam os pináculos dos debates acadêmicos. Mesmo os maiores estudiosos do mundo se fiam pela defesa imediata da democracia a priori. É famosa neste aspecto a frase do jurista italiano Norberto Bobbio, afiançando que os problemas da democracia apenas se resolvem com mais democracia. Qualquer oposição à democracia é naturalmente considerada autoritarismo, obscurantismo, golpe, ditadura, reduzindo as formas de organização social e política na história a um binômio.
Raríssimos, entretanto (e, “democraticamente”, não há nenhuma vantagem dos acadêmicos em relação aos comuns mortais neste ponto), destrincharam o que significa a democracia na realidade. É nítido que a palavra tem sentidos não apenas diversos, mas no mais das vezes antagônicos na boca de um esquerdista e de um direitista, do psolista Randolfe Rodrigues e Ronaldo Caiado, no livro Is Democracy Possible Here? do progressista Ronald Dworkin e na descrença do dissidente bielo-russo Evgeny Morozov no poder da internet de “democratização” de ditaduras no livro The Net Delusion: The dark side of internet freedom. É bem provável que ambos defendam algo oposto um ao outro quando defendem a “democracia”.
Democracia clássica
Objetivamente, podemos ler na República de Platão três formas de governo. Mesmo sem estudo, instintivamente o brasileiro conhece quase todas. São dividas entre as legítimas, quando se governa para o bem geral, e as degeneradas, quando se governa apenas para si próprio.
Quando apenas um tem poder, temos uma monarquia. Degenerada, torna-se uma tirania. Quando poucos têm poder, temos uma aristocracia, degenerada, torna-se uma oligarquia. Até aqui, o mundo moderno entende bem. O problema começa mais embaixo. Quando muitos têm poder, temos uma… politéia, que, degenerada, torna-se uma… democracia.
Algo não apenas inverso do nosso sentido do termo (o que fez vários tradutores modernos do livro platônico tentarem traduzir por “demagogia”, algo que não faz sentido e só confunde ainda mais nosso entendimento de Platão), mas ainda mais complexo: simplesmente não temos mais o conceito de que um sistema em que muitos decidem possa se “degenerar”.
Basta pensar em Norberto Bobbio: crê-se, no mundo todo, e o Brasil apenas segue a manada, que qualquer problema da democracia é resolvido com a própria democracia, como se fosse o sistema perfeito por si, que só produzisse bons resultados, e qualquer problema social ou no sistema político fosse resolvido por ela própria.
Nos 6 sistemas platônicos, o mundo moderno possui uma verdadeira lacuna no slot “muitos decidem, apenas para si, modelo degenerado”. Algo difícil de ser explicado, mesmo que sistemas modernos tenham muitas pessoas decidindo através de votos e virem degenerações e aberrações sociais, como a Venezuela (essa incógnita taxonômica).
Ao contrário do que se pensa, a Coréia do Norte tem eleições freqüentes dentro dos ditames do partido e não são todas fraudadas, além de ter “democracia” no nome. O modelo plebiscitário dos fascismos, diga-se, tinha muito mais eleições e mais freqüentes do que nossas democracias. E basta pensar na Cuba dos irmãos Castro, reclamando que o impeachment foi um “golpe à democracia brasileira”, para se perceber como precisamos de outros conceitos para entender de fato o mundo.
A palavra oclocracia, sem uso modernamente e significando também a democracia em sentido canônico grego (degeneração), pode servir bem para explicar como essas tiranias não significam apenas a vontade de um ou poucos, mas uma ideologia com eleições gerais que domina todo um país.
A distinção de Platão, um pouco aprimorada por Aristóteles na Política, ainda se foca quase que exclusivamente no “bem geral”, conceito escorregadio que leva Platão à sua mítica República formada por “reis-filósofos”. Foram os latinos que levaram a idéia de “muitos com poder” ao extremo até hoje no mundo, ao criarem sua República (a tradução um pouco imperfeita da politéia platônica, ou seja, o cuidado com a coisa pública, res publica).
Neste sistema, o poder da maioria era sempre barrado por um contrapeso um pouco mais “técnico” – no caso, baseado em idade e posição social, além de um sistema de troca de governantes baseado na aleatoriedade, e não apenas na vontade da maioria (vide as explicações de Nassim Nicholas Taleb de como ainda nos estapeamos para chegar a algo muito inferior ao que os romanos já possuíam).
Não importasse quanto a maioria tentasse votar por conchavo ou por interesse próprio, iria sempre esbarrar em alguma especificidade da própria república. Num sistema democrático, tendo 50% + 1 dos votos, a decisão se torna lei e poder. Não importa, inclusive, se essa maioria tenha decidido esbulhar a minoria – o sistema atual de impostos faz exatamente isto. Numa república, não é a maioria que conta, senão para decisões pontuais: o respeito à gestão da coisa pública é mais importante do que qualquer maioria.
Por esta razão, os antigos romanos tinham orgulho patriótico profundo em defender o Senado, usando como mote o famoso S. P. Q. R. – Senātus Populusque Rōmānus, o Senado e o Povo Romano. Era o povo antigo que tinha orgulho de ter um contraponto às vontades volúveis das maiorias como em outros povos. Foi uma conquista intelectual dura, que até hoje o mundo inveja, sem conseguir imitá-lo.
No dizer de Cícero, Nihil est incertius vulgo, nihil obscurius voluntate hominum, nihil fallacius ratione tota comitiorum (“Nada é mais incerto do que as massas, nada mais obscuro do que a vontade pública, nada mais falacioso do que todo o sistema político”).
Foi a democracia que matou Sócrates, foi a democracia que matou Jesus Cristo. Foi a vontade da maioria.
Democracia petista
Neste sentido, quando o PT hoje fala que defende “a democracia”, depois de tanto falar em “respeitar as urnas”, ele está quase correto: está admitindo que coloca as vontades momentâneas das maiorias acima de qualquer lei, contrapeso ou freio às vontades do governante, desde que tenha apoio popular. O panis et circenses foi concretizado ao máximo com o PT: dar pão (ou Bolsa Família) e circo (Ministério da Cultura e Lei Rouanet) ao povo em troca de apoio e tolerância a qualquer desmando. Neste sentido, o PT não é apenas democrático: o PT é o partido mais democrático do país.
É claro que não é este o sentido do vulgo na boca do povo, portanto não adianta apenas usar o sentido correto e canônico da palavra como se as pessoas (incluindo petistas) fossem entender do que estamos falando.
A mudança do sentido, que perdurou por 27 séculos, se deu sobretudo devido ao Iluminismo, que enxergou no curtíssimo período da democracia de Péricles na Grécia um molde para o mundo moderno. Apesar de ser uma democracia em sentido platônico, foi um curto período de tempo em que mesmo a maioria simples de votos entre cidadãos atenienses gerou a filosofia, as artes, o teatro e quase tudo o que lembramos da Grécia antiga. Contudo, o próprio sistema não era o mais defensável: Platão escreve justamente contra as tiranias e as massas, que acabarão por condenar o próprio Sócrates a tomar a sicuta.
Na retomada do termo na modernidade, ele foi extremamente associado à idéia de eleições para o povo simples (demos) através de representatividade (uma cidade com 10 milhões de habitantes não será gerida da mesma forma do que uma com 5 mil) e separação de poderes, uma invenção moderna que tenta assimilar muito mais a república romana do que a democracia ateniense. O sopesamento de poderes não tem a ver com o vontade móvel das massas, mas com a coisa pública.
Os conceitos de politéia (república) e democracia (ou oclocracia) possuem um referencial maior em Roma do que na Grécia e seu “bem público” platônico, mas estão geralmente misturados em nosso vocabulário. Usamos, inclusive, “república” e “democracia” como sinônimos, e não antônimos.
O sopesamento à maioria é sempre um resquício republicano, a permissão de tudo pela maioria ou em nome da maioria de votos é sempre um caráter democrático. Neste sentido, o Brasil é uma democracia hiper consolidada: faltou pouco para o PT não atingir um estágio “hiperdemocrático” como o da Venezuela, em que não há nada sólido, apenas se dá poder ao mandante conforme ele consiga uma maioria: num plebiscito, num partido, num parlamento comprado. É a famosa “ditadura da maioria”. The mob rules.
Quem é o mais “democrático”?
Alguém pode dizer que o PT é democrático, fazendo sempre referências única e exclusivamente às suas vitórias eleitorais (o que não impede o partido de ter ganho eleições usando a máquina pública, com urnas eletrônicas discutíveis, com contas rejeitadas, usando de todos os artifícios os mais sórdidos para cada vitória). Nunca se poderá dizer que é um partido republicano, que cuida da coisa pública, que possui apreço pela lei que impede o governante representativo de fazer o que quiser (inclusive mudar as leis “democraticamente”), que respeite alguma separação entre poderes, que tenha atitudes republicanas.
No mundo moderno, com o esfacelamento das aristocracias européias após a Primeira Guerra, poucos países se tornaram de fato repúblicas, enquanto a maioria correu para o modelo democrático, tendo alguns bons governantes mais por sorte e hábitos e tradições locais do que pelo modelo político.
O maior exemplo ainda são os Estados Unidos da América. País criado por intelectuais de primeira grandeza, os Founding Fathers sabiam muito bem que estavam criando uma República, e não uma democracia. Sua Constituição tão enxuta tem como foco justamente impedir o Estado de realizar atos contra o Direito natural, não importa quanta maioria possua.
Mesmo com a maioria de votos, um governante não pode exigir que o Estado americano censure a imprensa, a liberdade de expressão, o direito às armas para defesa individual, estabeleça uma religião oficial etc. É uma Constituição inspirada em Roma que transborda republicanismo, não tendo nada de democrática. Apesar de chamarmos a América de “a maior democracia moderna consolidada”, apenas a chamamos de “democracia” por não conhecermos o conceito de um sistema de lei que faça contrapeso à maioria.
Num raríssimo caso político em que as palavras dizem exatamente o que parecem dizer, a distinção fica clara entre os dois principais partidos americanos, o Partido Republicano (GOP, o Gallant Old Party) e o Partido Democrata. O primeiro sempre lembrando que defende a lei e a Constituição, o segundo sempre declarando que possui a maioria para mudar a lei, em nome da “representatividade”.
Walter E. Williams, explicando what’s wrong with democracy?, lembrou que os Founding Fathers da República americana reconhecerem que é preciso haver governo, mas que este governo precisa ser o menor possível, pois governo implica o uso da força. Numa República, tanto governados quanto governantes estão sujeitos à mesma lei. Já numa democracia, direitos e leis dependem da formação de maioria, direitos podem ser dados e retirados. Não há uma lei fixa, como o Não matarás e o Não roubarás.
A própria construção do sistema americano segue rigorosamente o princípio republicano, como o presidente não ser eleito por voto direto das maiorias temporárias, mas este voto eleger um colégio eleitoral que irá decidir (além do próprio Senado, lá verdadeiramente federativo) pelo presidente. O voto indireto, considerado uma excrecência por desconhecedores da história da oclocracia, é na verdade um avanço enorme num sistema eleitoral, e não um retrocesso.
Não é mero detalhe, e sim a própria base fundamental do modelo americano, tão invejado pelo mundo. Os Founding Fathers sabiam bem disso: ao contrário do que Romero Jucá disse no Senado, Thomas Jefferson não foi o pai da “democracia” americana, tendo sempre se manifestado em favor de uma República, escrevendo inclusive para John Adams sobre a “aristocracia natural” que defende. Em suas obras reunidas na Monticello, a única menção à palavra “democracia” vem em resposta a uma acusação levantada contra ele por Hamilton.
Os dois conceitos, portanto, se imiscuíram em nossa visão, como se a ausência de um rei ou família real e a “representatividade” resolvesse todos os nossos problemas. Todos os totalitarismos do século XX, praticamente todos saindo de democracias (basicamente, o seu último estágio ao minar os resquícios republicanos no Estado e na sociedade), provam exatamente o oposto.
Harry Fuller Atwood, inclusive, escreve em seu livro Back to the Republic que “estamos sendo impelidos da república para a democracia, do estadismo à demagogia, da excelência ao serviço inferior. É uma era de tendências regressivas”.
Sem os conceitos corretos em mente, é impossível para alguém entender frases como esta e toda a mensagem da discussão política nos séculos entre Platão John Locke: mesmo um Bobbio, ou Dworkin ou um Robert Dahl e seu famoso On Democracy não são capazes nem de entender o que se está discutindo, reduzindo a democracia à representatividade.
Usando a definição canônica, usada por Platão, Aristóteles, Cícero, Sêneca, Agostinho, Tomás de Aquino, Dante, John Wyclif, Ockham, Maquiavel, Montaigne, Hugo Grócio, Maurras, Ortega y Gasset, de Reynold, Spengler e mesmo Tocqueville (apesar de sua república ser, justamente, o que era chamado de “democracia na América“, ou seja, a República), de república/politéia como um estágio da sociedade em que leis eternas não são discutidas e valem para todos, com contrapesos ao vulgo e impossibilidade de dominação pela maioria ou representação da maioria, nos dão um conceito a mais para enxergar a realidade, de lambuja ainda nos furtando de cair na esparrela da dominação pela maioria em nome da “democracia”.
É com conceitos mais claros (e, em 99% dos casos, da filosofia antiga) que conseguimos enxergar a realidade. Sem saber o que é uma oclocracia, a discussão sobre “democracia” vira um cabo de guerra com todos buscando defendê-la a qualquer custo, sem nem entender como (no caso de Bobbio, como “mais democracia” significa algo além de um poder mais dividido, algo que não parece condizer com seu progressismo?). Sabendo distinguir entre as duas, temos algo a mais para observar o fenômeno político – algo à margem de todos os nossos políticos.
Todos os grandes pensadores que criticaram a democracia justamente por entendê-la como entenderam os 27 séculos entre Platão e Tocqueville foram considerados “reacionários”, o que só puderam tomar como elogio: do erudito austríaco Erik von Kuehnelt-Leddihn ao filósofo aforismático colombiano Nicolás Gómez Dávila, do iconoclasta supremo da América H. L. Mencken ao tradicional pensador Joseph Sobran, do ortodoxo G. K. Chesterton ao ultra-libertário Hans-Hermann Hoppe. É praticamente uma impossibilidade estudá-los numa Universidade.
Sempre que você reclamar que a lei não é cumprida, lembre-se de que há uma democracia para mudá-la. Sempre que vir alguém dizendo que “luta pela democracia”, pode ter certeza de que essa pessoa nem sabe do que está falando, mas acaba cometendo um faux pas: luta para estar no poder, e formar uma maioria que a apóie – muitas vezes depois de já angariar algum poder.
A democracia, então, só pode ser uma ideologia de esquerda, ou seja, da crença no poder de formar uma maioria por ideologia, por algum discurso histérico momentâneo (pense-se em junho de 2013), pelo poder da “sombra das maiorias silenciosas”, segundo feliz expressão de Jean Baudrillard.
A república, hoje, só pode ser defendida pela direita, apesar de quase sempre ela crer no uso moderno do termo e falar em democracia, como se a palavra, por si, diferenciasse o sistema boliviano do sistema suíço, ou das leis, costumes, tradições e modelo de representação da Áustria, do Canadá ou de Israel em relação ao Brasil, Albânia ou Angola.
É a democracia que permite o esbulho dos bens da população através de impostos discutidos abertamente no parlamento, é a democracia que permite criar direitos específicos para determinados grupos, além de tomá-los de outros – nada disso tem a ver com o republicanismo ou o conservadorismo. Por isto, contrariando nosso uso comum do termo, o comunismo e o nazismo poderiam ser chamados, pela definição canônica e tradicional, de sistemas “ultra-democráticos” (incluindo seu fator racial), por definirem que a maioria pode mandar na minoria sem nenhum contrapeso.
Claro que não podemos simplesmente ignorar os usos e intenções comuns do termo, crendo estar mudando uma palavra já tradicional (e mundial) do dia para a noite (experimente dizer que é “anti-democrático” na rua para ver o que te acontece), mas apenas quando percebemos que nos falta um conceito básico e fundamental para comentar política entenderemos qual o problema de nosso país e de boa parte do mundo.
É por isto que o PT acaba falando a verdade quando afirma que defende a democracia – defende o poder através da maioria absoluta, nem que para isto tenha de comprar votos (o mensalão não é “desculpado” senão por isso, mesmo sendo crime totalitário contra a separação entre poderes). Contudo, ainda crê que sua pauta de cotas, Bolsas e progressismo represente “a maioria” da população – hoje, se tornou vítima de sua própria mania de “maiorias”, sem notar que há duas eleições federais vence sem nem possuir os votos da maioria do eleitorado. A maioria, volúvel como sempre, hoje quer o PT fora do poder.
Resta que seus críticos saibam que há um conceito ainda desconhecido do grande público para mostrar o que, de fato, defende, alheia aos modismos do momento.
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