Uniforme unissex: a ideologia de gênero exige o Estado total
A ideologia de gênero que exige o uniforme unissex no colégio Pedro II não é uma "liberdade individual": é mediar até o sexo pelo Estado.
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O colégio Pedro II, um dos mais tradicionais do Rio de Janeiro, acabou com a distinção de uniformes por gênero. É a chamada ideologia de gênero, que tenta entrar nos currículos escolares brasileiros. A manchete repercutiu e gerou debates na semana, indo parar até mesmo no Encontro com Fátima Bernardes. Meninos, por exemplo, agora têm o direito de usar saias.
Os debatedores, no caso, são na verdade unânimes em afirmar que o colégio está certo em não demarcar a diferença entre gêneros para alunos que não se sentem confortáveis com sua “identidade de gênero”. Não foi preciso haver debate, pulando-se para uma comemoração coletiva da conclusão.
Há questões instrumentais que poderiam ser colocadas em questão: uniformes demarcam mesmo a sexualidade? Uniformes escolares da maioria das escolas modernas são quase unissex por definição: short/calça e camiseta. A diferença fica no corte para o corpo. Não há “identidade de gênero” que possa fazer um corpo com curvas ficar bem em um uniforme projetado para um corpo reto, por exemplo. O colégio Pedro II pertence à linha antiga, em que as meninas usam saia. Um simples pedido para que pudessem usar calças seria o suficiente, sem a necessidade do alvoroço.
Ou mesmo se é mesmo uma questão relevante, como parece ser o único assunto recente. Afinal, a questão se impõe para os alunos, como se diz hoje, “transgêneros”. Em um colégio para adolescentes. Alguém conhece algum adolescente “transgênero”? São mesmo uma realidade sofrível, como se um dos principais problemas do mundo fosse uma quantidade enorme de jovens travestis e adolescentes querendo mudar de sexo, sofrendo a cada esquina?
Uma pesquisa do Instituto Williams, ligado à Universidade da Califórnia (UCLA), liderada por Gary J. Gates de abril de 2011, revela que apenas 0,3% dos adultos americanos se consideram “transgêneros”. Falamos, no caso, de adultos. Entre adolescentes, é de se esperar por um número substancialmente menor. É fácil encontrar “minorias” com problemas tão ou mais urgentes do que os “adolescentes transgêneros”: adolescentes com doenças graves, deficientes, com problemas intestinais, depressão etc.
Não é uma aposta difícil crer que há mais adolescentes com dificuldades para comprar uniformes do que jovens insatisfeitos com a demarcação corporal que “identifique seu gênero” com o qual não se sente confortável.
Há também a ideologia, chamada desabridamente “ideologia de gênero”. Conhecendo-se o desejo mimético do ser humano, tão bem exposto por René Girard, sabemos que seres humanos costumam desejar o que é desejado por outros. Jovens, já confusos em seus preparativos para assumir um papel individual na sociedade, consabidamente sofrem muita mais pressão de grupo do que sofrerão em outras fases da vida.
Será mesmo que tantos jovens, repentinamente, se descobriram “transgêneros” exatamente quando a chance de se tornar o centro das atenções aumenta exponencialmente com tal receita? Alguém pode duvidar de que grupos que tanto pregam a ideologia de gênero não acabam também comemorando a cada novo jovem recrutado para suas hostes. Basta ver como posts aparecem glorificando cada pai que “deixa seu filho de 3 anos usar vestido” pela aceitação da transexualidade – como se uma criança que nem sabe o que é sexo fosse um transexual, e não apenas alguém confuso.
Há algo perigoso se o recrutamento lida com questões problemáticas e seriíssimas. Em 1990, a CID 10 (Classificação Internacional de Doenças) cataloga nos itens F66.0, F66.1 e F66.2 uma lista de transtornos de maturação e orientação sexual que já levaram muitos pacientes ao suicídio (ver com mais detalhes em meu livro, Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs, na análise da “cura gay” que foi “discutida” em junho de 2013).
Contudo, há uma questão mais séria para o todo da sociedade. Entender, afinal, o que é a assim chamada “ideologia de gênero”.
Ideologia de gênero: tudo flui
O grosso da propaganda da ideologia de gênero foca-se na “defesa dos direitos dos transexuais”, pessoas insatisfeitas com sua própria “identidade sexual”. Há casos sérios e tratados com psiquiatria avançada. Há também o sério risco de se confundir comportamentos sexuais temporários, sobretudo na afloração da puberdade, com um transgênero necessitando de ajuda.
Poder-se-ia então traçar um limiar entre os casos “sérios” e as confusões típicas do comportamento, que não representam nenhum transtorno “mental” substantivo. O grande empecilho é que para a ciência psiquiátrica, determinar tais casos vai de encontro ao pilar básico da ideologia de gênero: praticando um dos reducionismos obrigatórios para ideologias, tudo o que um ser humano “sinta” em relação à sua sexualidade deve ser considerado normal, natural, saudável e mesmo incentivável. Não há crítica que se poderia fazer a um comportamento sexual, por ser um moralismo obscurantista.
Casos que ultrapassaram este limiar compreendem alguns dos maiores tabus da psiquiatria moderna. Por exemplo, o famoso caso David Reimer, cuja premissa é a mesma da ideologia de gênero em voga.
David Reimer nasceu menino no Canadá, em 1965, mas uma circuncisão destruiu seu pênis. Crendo poder usar o bebê como cobaia humana para comprovar uma tese que ficaria hoje famosa, o psicólogo John Money convenceu a família a tratá-lo como menina, relatando o sucesso da prova de que a identidade de gênero é aprendida. John Money pode ser considerado uma espécie de pai da ideologia de gênero.
Entretanto, o sexólogo Milton Diamond revelou que, ao contrário do propagado pela ideologia que acredita na fluidez absoluta da identidade de gênero, uma espécie de Rousseau sexual, David Reimer não se comportava como uma “menina”: odiava a cor rosa, qualquer referência feminina, e após descobrir a verdade com os pais, passou a viver como homem a partir dos 15 anos. Reimer posteriormente expôs sua história para que seu mórbido experimento científico não se repetisse. Após uma vida de depressão, instabilidade financeira e casamento conturbado, David Reimer se suicidou em 2004.
A lição de David Reimer não ficou para a posteridade, crendo-se tão científica: a ideologia de gênero apregoa hoje, desabridamente, que toda a identidade de gênero deve ser “respeitada” e tratada como verídica, ganhando o respeito de Fátimas Bernardes e escanteando todos os seus críticos sob rótulos como “homofóbicos” ou “preconceituosos”.
Sexualidade mediada
Ainda assim, ignorando-se casos como o de David Reimer e crendo-se na autoridade de John Money, a ideologia de gênero conquista espaço com causas escamoteadas, como o do colégio Pedro II, sempre invocando-se a “liberdade individual” e falando-se em “respeito” ou “preconceito”.
Se as batalhas contra vários preconceitos ainda não foram vencidas, é contraproducente crer que a ideologia de gênero possa ser uma boa arma – sobretudo sob auspícios da liberdade individual. As diversas entidades que surpassam qualquer respeito ao individualismo que investem mundos e fundos em pesquisas modelo John Money (sic) na causa da identidade de gênero deveria ser uma pista para aqueles que crêem tanto numa fácil dicotomia entre liberdades individuais e imposições estatais.
As normas jurídicas que regulam a vida moderna começaram mediando crimes de sangue – como o Direito Penal é a base de tudo. Quando leis passam a ser criadas para regular aspectos cada vez mais secundários da vida, o poder do Estado aumenta por definição – e de maneira muito maior do que o aparente beneficiado por um novo “direito”.
É a lição que Olavo de Carvalho, o filósofo mais odiado do país, explica tão bem, como o faz na primeira parte do documentário O Jardim das Aflições, filme de Josias Teófilo que as distribuidoras deveriam correr para deixar em suas salas de cinema. Simone Weil, explica Olavo, mostra que um direito não tem substancialidade própria, é apenas o efeito da obrigação de outrem:
Se você diz que as crianças têm o direito de ser protegidas, mas não consegue apontar precisamente QUEM tem a obrigação de protegê-las, então o pretenso direito é apenas uma bolha de sabão. Mas, se não há nenhuma criança em torno, você JÁ tem a obrigação de protegê-la quando ela aparecer. Não existem “direitos humanos”, só obrigações para com os seres humanos.
O resultado é o que pensadores, variando de Betrand de Jouvenel a Robert Michels, notaram a respeito do poder: no Estado moderno, o poder do Estado cresce sempre, de uma forma ou de outra, e sempre verticalizado.
Quando se inicia todo um “debate” de cartas marcadas na sociedade a respeito do “direito” de alunos usarem roupas unissex, mesmo que uma cambulhada de efeitos de nulidade se apresente sobre a questão debatida (os uniformes já são majoritariamente unissex, ou poderiam ser com facilidade; a medida afeta apenas 0,3% da população; a questão não poderia ser tratada pelo método da adesão imediata; juventude é uma época confusa etc), todo o “debate” se revela apenas um nome fantasia, cuja razão social permanece oculta até dos “debatedores”: a urgência de leis contra o “preconceito”.
Uma campanha (quase uma centelha) cujo tema sejam os possíveis alunos “transgêneros” do colégio, dificilmente ultrapassando os dedos de uma mão, traz sempre em seu bojo a discussão sobre “preconceito”. Seguindo Simone Weil, como nos explica Olavo de Carvalho, novas normas para mediar aspectos da vida que sempre foram tratados fora da esfera jurídica começam a surgir.
A urgência de leis, de regulações, de direitos é o próximo passo: direitos, novamente, que apenas se concretizam com obrigações a terceiros. Kuehnelt-Leddihn, em resposta a um chiste de H. L. Mencken que afirma que cada nova invenção tornava um padre desnecessário, obtempera que cada nova invenção também exige uma nova lei, uma regulamentação e um policial para aplicá-la.
A despeito da crença numa possível “liberdade individual” perante a tirania do Estado, todo o comportamento que apenas em aparência nasce do indivíduo passa a ser mediado: das palavras que podem ser ditas, da educação e organização dentro mesmo de uma família ou até a sexualidade.
Não à toa, a atividade sexual virou a pauta política número 1 da década de 2010: da prefeitura à presidência, políticos não debatem mais metas, orçamento, gestão – escolhe-se candidatos pela sua aceitação a transexuais ou não. Consubstanciando o totalitarismo proposto por Michel Foucault, o sexo não é mais a atividade privada absoluta: é antes, e tão somente, algo mediado pelo Estado, para se tornar a política e tomar todo o seu lugar.
Se a questão é aceita com unanimidade, sem averiguação das premissas, escorraçando todos os seus críticos, ainda que os pouco estudados, à anátema categoria de “homofóbicos”, como se a crítica à politização da sexualidade, o aproveitamento da confusão juvenil por políticos repentinamente preocupadíssimos com a identidade sexual de adolescentes, o caminho da sexualidade mediada está pavimentado: a exigência cultural e penal de “respeito”, a grita por “direitos”, a imposição de “obrigações” aos arranjos sociais que independiam do Estado se torna completa.
Não à toa, a família, que sempre foi o bastião de civilidade pré-Estado, garantindo aos mais fracos proteção, saúde, educação e segurança, é o alvo preferencial das novas ideologias, que abusam do grotesco, da violência, da divisão e da dialética da inveja e do ressentimento para angariar seus fiéis, que nunca podem ser não-fanáticos.
Se um jovem precisa do apoio de leis e normas e “respeito” e toda uma mudança na mentalidade coletiva até mesmo para seu prazer sexual ou sua forma de aceitação na sociedade, engabelando os crentes em liberdades individuais que, ao invés de livres, são dependentes de imposições, proibições e exigências de revoluções valorativas a terceiros, todo o prazer privado do sexo e da auto-realização, satisfação e aceitação desaparecem, e sob a batuta de uma simples vestimenta pública, num proscênio que ninguém percebe que é uma “discussão” inexistente sobre algo inexistente, a glorificação de toda a agenda de políticos querendo substituir a auto-organização dos homens pelo Estado total se revela apenas quando for tarde demais.
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