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Desarmamento Civil

“Nunca reaja!”: The Walking Dead como metáfora do Brasil

A série nos ensina que não podemos abandonar a nossa vida e a daqueles que amamos ao sabor dos caprichos arbitrários de psicopatas e que devemos rejeitar o mantra do "nunca reaja".

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Walking Dead, Desarmamento, Política, Filosofia

“Quando há paz, nada assenta mais aos homens do que a humildade e a singular modéstia. Porém quando as rajadas dos combates vos soa nos ouvidos, é de urgência procurar imitar em tudo o tigre (…) Rangei os dentes, dilatai as ventas, sustai o fôlego e tendei o espírito”.

Shakespeare, Henrique V (Ato III, Cena I)

Introdução: as consequências práticas do mantra “Nunca reaja!”

Tivemos ontem, dia 16/02/2017, mais uma daquelas notícias terríveis que compõem o mosaico da tragédia diária nacional. O cenário foi mais uma vez o estado do Espírito Santo. O jovem policial militar André Monteiro dos Santos, de apenas 22 anos, foi morto a tiros numa tentativa de assalto. Ele estava de folga.

Mais dramático é saber que a vítima ainda tentou reagir, chegando a sacar a sua arma, mas sendo impedido por sua namorada, que, no desespero, o abraçou e impossibilitou o disparo. Foi uma decisão infeliz que, lamentavelmente, deu aos dois criminosos a oportunidade fatal.

Este artigo procura explicar o contexto cultural por trás da atitude da moça (que, neste momento, além de sofrer com a perda do namorado, deve estar se remoendo com um terrível sentimento de culpa). Para isso, a série The Walking Dead nos servirá de metáfora.

O artigo divide-se em três seções. Eis a primeira.

I. A antropologia política de The Walking Dead

Depois de meses de um longo (e, para os fãs, angustiante) intervalo, começou no último domingo (12/02/2017) a segunda metade da 7ª temporada da série The Walking Dead. O episódio 9 consagra uma importante mudança de atitude do protagonista Rick Grimes (vivido pelo ator Andrew Lincoln), mudança que já se havia insinuado de maneira comovente nas cenas finas do episódio anterior, que encerrou a primeira metade da temporada.

Em proveito dos que não acompanham a série, convém oferecer um brevíssimo resumo do enredo. Antes, ressalto que falarei apenas da versão televisiva, e não dos quadrinhos, nos quais ela se baseia. Vamos lá.

Sem que se saiba a origem do fenômeno o roteiro não se preocupa em explicar , o mundo foi tomado por zumbis, que, numa agonia perpétua e bestial, vagam por toda parte em busca de alimento. E, para o azar das pessoas, o cardápio dos mortos-vivos inclui carne humana fresca.

O que torna tudo ainda mais angustiante é a descoberta, por parte dos seres humanos, de que estão todos infectados com o vírus-zumbi, o que lhes dá, ainda em vida, uma terrificante e inédita certeza sobre o seu destino final. O zumbi é o espelho do homem.

In vita veritas! A esperança de vida eterna converte-se no desespero da morte eterna, selando de maneira miserável a sorte dos homens: viver em morte, em eterna danação, errando e decompondo-se indefinidamente, ou até que alguma alma misericordiosa lhes atinja diretamente o cérebro, que é a única forma de interromper o martírio dos zumbis.

Nunca reaja, walking dead, desarmamento

O zumbi é o espelho do homem

The Walking Dead encerra um curioso paradoxo, razão pela qual é capaz de exercer um poder atrativo até mesmo sobre aqueles que, como este que vos escreve, jamais se interessaram por histórias de mortos-vivos. Pois há na série, sem dúvida, muitos zumbis, que surgem às centenas, aos milhares, de todos os cantos, exibidos ao telespectador com implacável nível de detalhes. Somos fartamente brindados com seus corpos putrefatos e desmembrados, com vísceras, ossos e sangue. Antes mesmo do espetáculo visual de sua deformidade, o ruído que lhes brota do que restou de garganta, índice de um apetite voraz e insaciável, deixa-nos sobressaltados. Os zumbis estão sempre à espreita.

E, no entanto, a despeito de todo aquele ladário de cadáveres ambulantes, The Walking Dead não é uma série sobre zumbis, mas sobre a natureza humana. À medida que o enredo se desenvolve, os mortos-vivos reduzem-se à condição de pano-de-fundo, contra o qual ressaltam as verdadeiras questões, de teor tradicionalmente antropológico e político: num cenário apocalíptico, em que os homens são reduzidos às condições mais primitivas de existência, como instituir a ordem social? Como, enfim, recriar a civilização a partir de um estado de natureza? E que tipo de civilização será essa? Quem manda? Quem obedece?

Os sobreviventes da hecatombe não demoram a se dar conta de uma verdade perturbadora: mais perigosos que os zumbis são os outros seres humanos. Plauto e Thomas Hobbes tinham razão: Homo homini lupus o homem é o lobo do homem.

Nunca reaja, Thomas Hobbes e o desarmamento civil

Thomas Hobbes (1588-1679)

As pessoas agora lutam como podem para sobreviver, interagindo umas com as outras de maneira quase sempre violenta, disputando as migalhas restantes da civilização comida, abrigo, transporte, remédios, etc. É a lei da selva, a guerra de todos contra todos, onde os mais fortes submetem implacavelmente os mais fracos.

Naquele cenário hostil e dispersivo, formam-se diversos agrupamentos humanos, cada qual vivendo segundo regras próprias. De início bastante primitivos, alguns desses agrupamentos evoluem para ordens sociais mais complexas, resultando em algo como “cidades-estado”, “fortalezas” ou “reinos”, variando segundo a forma de governo e organização social adotada por seus membros.

Dentre aqueles agrupamentos, destaca-se o liderado pelo ex-policial Rick Grimes, o protagonista da série. A característica distintiva do grupo de Rick, que muito tem a ver com o caráter e a personalidade de seu líder, diz respeito a uma decisão de ordem moral. Apesar dos inúmeros altos e baixos, e em meio a uma série de crises existenciais vividas alternadamente pelos personagens, não raro obrigados a agir de modo degradante e cruel, Rick e seus companheiros decidem não apenas sobreviver, como meros organismos, mas levar uma vida propriamente humana. Querem rezar, amar, sonhar, criar, fazer arte, ter filhos e constituir família. Eis o que mantém unida a “pólis” de Rick. Eis o seu fundamento social.

Nunca reaja, Rick Grimes, desarmamento

A “pólis” de Rick Grimes

Quando as circunstâncias o exigem, os membros daquela “pólis” sabem como ninguém se adaptar à realidade brutal, reunindo forças para jogar  e vencer!  o jogo da violência. Mas, em última instância, recusam a inexorabilidade da lei da selva. Vislumbram um futuro e, seguindo a lição imortal de Viktor Frankl, guiam-se pelo sentido da vida.

Se a nova situação acabou por tiranizar os seus corpos, decidiram que não conseguiria lhes dobrar os espíritos. Tivessem fatalmente de morrer, ao menos o fariam com dignidade. Morreriam como homens, e não como presas ou animais no abatedouro.

II. Nunca reaja! o estímulo ao alquebramento espiritual

Como disse no início deste artigo, o episódio 9 da 7ª temporada marca uma mudança de atitude de Rick Grimes. Trata-se, na verdade, menos de uma mudança que de uma restauração. Rick retorna à postura habitual descrita na seção anterior, caracterizada pelo esforço de viver de maneira plenamente humana, e não apenas sobreviver. Postura que havia abandonado na primeira metade da temporada por conta de um acontecimento terrível, que muito custou a ele e aos seus, tanto física quanto psicologicamente.

Que acontecimento foi esse? O encontro trágico com um outro agrupamento humano, auto-proclamado “Os Salvadores”. Seu líder é Negan, um dos vilões mais sádicos, violentos e brutais de que se tem notícia, espécie de encarnação de Satanás, em sua acepção de “príncipe deste mundo”.

Nunca reaja, Negan e o desarmamento

Negan e “Lucille”

Sob o regime de terror imposto por Negan – este sempre acompanhado de sua companheira “Lucille”, um taco de beisebol envolto em arame farpado com o qual o tirano pune as suas vítimas -, “Os Salvadores” assumem pretensões imperiais, impondo-se por meio da força e da superioridade bélica, e subjugando os demais agrupamentos humanos (notadamente Alexandria, a cidade de Rick, Hilltop e O Reino), que se convertem em colônias de exploração, obrigadas a entregar àqueles a maior parte de sua produção para a subsistência.

Vendo em Rick um líder orgulhoso e de espírito forte, Negan decide quebrá-lo. E consegue fazê-lo através da força bruta e da humilhação, tanto física quanto moral. Quer mostrar a Rick, como faria um animal macho-alfa com o macho rival, quem é que manda. Negan é César; Rick é Vercingetórix.

Nunca reaja, Vercingetórix desarmado

Vercingetórix ajoelha-se diante da águia romana

Nunca reaja, Rick Grimes desarmado, Lucille

Rick ajoelha-se diante de “Lucille”

Tendo perdido membros queridos da comunidade para a violência de Negan, e acreditando poder poupar os sobreviventes (dentre os quais o seu filho Carl) de um sofrimento ainda maior, Rick decide se submeter, contrariando a própria personalidade e a trajetória percorrida ao longo da série. Passa a aceitar a condição de escravo de Negan, fazendo com que a sua gente trabalhe para sustentar os “Salvadores”.

Como que dando ouvidos ao canto de sereia dos “especialistas” em segurança pública da Globo News  “Nunca reaja!”, “Nunca reaja!”, “Nunca reaja!”, “Nunca reaja!”, “Nunca reaja!” , Rick decide não reagir, apesar dos protestos de alguns de seus companheiros. Abre mão não só da liberdade física, mas também da liberdade espiritual.

O resultado? Negan e seu bando revelam-se cada vez mais tirânicos e agressivos. Farejando a passividade da comunidade subjugada, moralmente enfraquecida pelo alquebramento espiritual de seu líder, “Os Salvadores” redobram a infâmia, impondo normas cada vez mais humilhantes e arbitrárias, cuja transgressão resulta em punições de dantesca crueldade.

Parece ser o triunfo definitivo de Negan, o príncipe daquele mundo desolado. Esse é o angustiante enredo da primeira metade da 7ª temporada, que deixa na garganta do telespectador uma desesperada sede de vingança. E na mente uma pergunta: onde foi parar o bom e velho Rick Grimes?

III. O que tem o Brasil a ver com isso?

Para o alívio dos fãs, o bom e velho Rick Grimes dá sinais de haver retornado na segunda metade da temporada.

Ainda não sabemos como ele e seus amigos enfrentarão “Os Salvadores”, já que uma das primeiras medidas imperiais impostas por Negan foi, significativamente, o registro e imediato confisco de todas as armas das comunidades subjugadas (sobre The Walking Dead e desarmamento, aliás, ver este ótimo artigo de Bene Barbosa). No entanto, a decisão de fazê-lo já está tomada. Com ela, Rick renova a força e a fé de seus liderados.

A decisão baseia-se numa lição que o nosso herói tardou em compreender e assimilar, mas que finalmente parece tê-lo atingido: Não podemos abandonar a nossa vida e a daqueles que amamos ao sabor dos caprichos arbitrários de psicopatas.

Eis a lição que a sociedade brasileira já deveria ter compreendido há muito tempo, em vez de se sujeitar ao mesmo canto de sereia que desviou Rick Grimes de seu caminho  “Nunca reaja!”, “Nunca reaja!”, “Nunca reaja!”.

Repetido de maneira dogmática e fetichista, aquele conselho, ademais de não proteger contra a maldade gratuita dos criminosos (que, aliás, passaram a adotá-lo como justificativa para matar), gera ainda o mesmo dano que acometeu Rick e sua turma: o enfraquecimento do espírito, a perda da dignidade, a prostração, a passividade suicida. Quantas vezes a namorada do policial morto no Espírito Santo não terá sido exposta ao mantra do “Nunca reaja!”, veiculado incessantemente nos meios de comunicação?

Nunca reaja, o slogan que mata

“Nunca reaja!” o lema que caiu na boca dos criminosos

Aquele estado de mórbida letargia propaga-se de maneira contagiosa pela sociedade. Quanto menos modelos individuais de heroísmo e coragem estão disponíveis no mercado, mais passivos e apáticos nos tornamos. É assim que, reféns de um pânico paralisante, e confiando nossa vida a esta entidade mágica que chamamos de Estado, entregamos tudo aos nossos algozes, na esperança vã de, anulando-nos espiritualmente, ao menos sobrevivermos fisicamente.

Mas não sobrevivemos. Estamos morrendo aos milhares. Das maneiras as mais indignas. Somos abatidos a tiros e facadas por marginais de 12, 13, 14 anos de idade. Moleques franzinos que, antes da maioridade, já terão matado covardemente dezenas de pessoas honestas, destruído um sem-número de famílias cujo sofrimento, se chegar a render algumas capas de jornal, logo será esquecido pela opinião pública.

Vivemos hoje como num cenário de The Walking Dead. Quem acha que exagero basta olhar para o que aconteceu no Espírito Santo com a greve da PM. Além dos assassinatos, roubos e estupros cometidos por criminosos, um bando de aves de rapina em forma humana aproveitou-se da situação para saquear o comércio, em cenas verdadeiramente apocalípticas.

Sim, muito embora tenhamos rotinizado a nossa tragédia nacional, vivemos numa situação de anomia, um estado muito próximo do pesadelo hobbesiano que se vê na série. E, tal qual Rick Grimes, temos o espírito alquebrantado. Estamos entregues a milhares de Negans que, como o seu protótipo original, também é legião. Mas, diferentemente da ficção, a nossa não parece ser uma situação passageira e excepcional. Não há no horizonte sinais de reviravolta. Não parece haver possibilidade de um final feliz.

Lá, as vítimas do arbítrio já começam a reagir, recusando a passividade desumanizadora que seca a alma e não evita a morte do corpo. Como disse no último episódio a personagem Tara Chambler (Alanna Masterson), tentando convencer o líder de outra comunidade subjugada a se juntar na luta contra o império de Negan: “Se tiverem uma chance, as pessoas geralmente optam por fazer a coisa certa”.

No Brasil, a sua autoritária, arrogante e centralizadora elite política e cultural não permite que as pessoas comuns tenham aquela chance. E, enquanto estas não se derem conta da completa inépcia moral de seus pretensos representantes, reunindo forças para lutar, cada qual com as armas que souber manejar (incluindo aí obviamente, para quem se sentir apto, as armas-de-fogo), continuaremos sendo mortos como insetos, sob a fria indiferença daqueles.

Ou, o que não serve de consolo, sobreviveremos, conquanto aceitemos levar uma vida de perpétua agonia. Uma vida meramente orgânica, vazia de sentido. Em suma, uma vida de zumbi.

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P. S. Este artigo é dedicado à memória de João Hélio Fernandes (6 anos), Victor Hugo Deppman (19 anos), Jaime Gold (57 anos), Liana Bei Friedenbach (16 anos), Felipe Silva Caffé (19 anos), Andressa Reinaldo Friedrich (25 anos), Jucielma Isabel dos Santos (19 anos), Antônio Torres Pinho (37 anos), Thiago Rodrigues (28 anos), Nathália Zucatelli (18 anos), Hilda Silva de Paula (62 anos), Gabriel Leiria (17 anos), Célia Márcia Santos Cirne (69 anos), Jadson Gersogamo (22 anos), Willian Coromberque Barbosa (22 anos), Sérgio Rabelo (66 anos) e todas as outras milhares e milhares de vítimas de facínoras armados, bem como da estupidez ideológica de políticos, magistrados e intelectuais brasileiros. Nenhuma delas reagiu. Ninguém as defendeu. Seus nomes foram esquecidos. Elas estão mortas. Os assassinos, vivos. E, muito provavelmente, soltos.

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Assuntos:
Flavio Gordon

Flávio Gordon tem 37 anos, é carioca, casado, doutor em antropologia social, escritor, tradutor e autor do blog "O Brasil e o Universo: crônicas sobre a surrealidade política e cultural brasileira" (http://obrasileouniverso.blogspot.com.br). Twitter: @flaviogordon Facebook: https://www.facebook.com/flavio.gordon

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