Infowar e jornalismo pela manhã
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No programa Hoje em dia, da Rede Record (praticamente o único jornal televisivo que restou na TV para a hora do café da manhã de quem acorda tarde), vimos uma notícia hoje que explica perfeitamente a infowar, a construção de narrativas no imaginário coletivo para dirigir sentimentos da população.
Uma notícia fala de algo verdadeiro e óbvio: uma viatura policial flagrada por câmeras de segurança passa na contramão de uma rua de duas mãos, obrigando uma moto na pista oposta a desviar no susto. O motoqueiro perdeu o controle por razões óbvias, bateu num ponto de ônibus e não resistiu aos ferimentos. A viatura fugiu sem prestar socorro.
Outra viatura aparece. Vê a agonia da vítima, dá ré e também vai embora sem prestar socorro.
O Boletim de Ocorrência foi feito pelos policiais da segunda viatura. Diz que a moto estava sendo perseguida. Pelas câmeras, é óbvio que não: estava até na direção oposta dos policiais. E a segunda viatura não parece ter tido capacidade de ver o que aconteceu antes de chegar ao local.
O fato é claro para quem vê as imagens: um caso de um acidente provocado pela polícia, que poderia ter um final diferente caso os policiais, ao invés de criminosamente ignorarem o sofrimento da vítima e forjarem um documento oficial, tivessem socorrido o motoqueiro, que ia para uma festa a 15 metros do local onde faleceu.
Não há absolutamente nada de errado na reportagem. O que pode gerar problemas é como as pessoas enxergam e interpretam tais fatos (pois a reportagem trata mesmo de um fato consumado e filmado).
É fácil qualquer pessoa ver seguidas reportagens sobre os erros e crimes da polícia e concluir, após um reforçamento positivo behaviorista, que o problema do país é a polícia. Simplesmente porque ela é que deve zelar por nossa segurança, e quando erra, erra mais do que uma pessoa normal (visto que as conseqüências de seus erros são mais violentas), e quando comete um crime, então, significa algo muito maior do que um civil cometendo um crime (já que não temos nem a quem recorrer, já que quem deveria nos proteger está nos agredindo ou matando).
E aí, entramos num conflito lingüístico muito mais complicado do que a maioria até dos profissionais que trabalham com a linguagem é capaz de lidar.
Existem criminosos, e a população em geral não gosta de criminosos. Existem policiais, cujo trabalho (nem sempre cumprido) é punir e perseguir criminosos. E existem policiais que, além de não cumprir sua função (ou cumpri-la em parte do tempo), são também criminosos.
Mas é fácil aglutinar um amontoado de pessoas completamente distintas e com ações e valores muito diversos sob o rótulo coletivo de “a polícia” (ainda mais porque ela existe juridicamente como uma corporação, e monopolística) e não tratar da mesma maneira homogênea o coletivo “os criminosos”, ainda mais sabendo que há uma intersecção entre os dois.
Então fica fácil ver notícias necessárias, ou seja, sobre a polícia cometendo abusos (que são ruins) e crimes (que são piores), e chegar à conclusão de que a polícia como um todo é ruim. E não ver notícias sobre um coletivo específico de pessoas igualmente heterogêneas, que cometem crimes, e concluir que há um problema com a escolha de vida dos criminosos (que não forma um coletivo fechado, uma massa homogênea separada do restante da população, muito menos uma corporação).
O sentimento da população muda conforme as narrativas, e narrativas trabalham com personagens e coletivos de personagens. Estes coletivos são recortes de diversas pessoas feitos através de conceitos. Se o conceito “polícia” parece conter problemas, é difícil até mesmo definir o conceito de “assassinos”, por exemplo: há desde serial killers até assaltantes “despreparados” em seu “mister”. O conceito “polícia”, por natureza, dá uma aparência de homogeneidade incrivelmente maior.
Com o jornalismo corretamente preocupado com os abusos da polícia, sem conseguir noticiar todos os crimes de um país com 64 mil homicídios por ano (175 por dia), o imaginário popular em pouco tempo vai se voltando para a polícia, e cada vez mais ignora os crimes do país que mais mata no mundo, como se a culpa pela “violência” (outra abstração genérica de contornos pouco discerníveis) fosse muito mais da polícia do que dos criminosos. Assim começa a inversão da noção de realidade.
É evento frequente, em discussões, alguém criticar a violência, e imediatamente ser respondido com frases como: “Mas a polícia também mata” (usualmente com complementos como “sobretudo negros e pobres”). E muitas pessoas, tão despreparadas em neurolingüística e esquematologia, são tentadas a responder que a polícia está certa, que é necessário agredir mesmo etc.
Porque uma conversa, seja no bar ou na universidade, dificilmente tem um Sócrates redivivo para discernir conceitos com clareza e definir que um policial que comete um crime é tão ou mais criminoso que um criminoso, portanto deve ser contado neste coletivo, e não apenas no primeiro.
Isto é perfeito para a dinâmica de movimentos de massa e construções de narrativas como as de junho de 2013, que tenta-se repetir agora na ocupação das escolas em São Paulo, que contém um bode expiatório, em termos de René Girard: a polícia. Com um inimigo comum, reforçado pelo jornalismo, crê-se que se está lutando por liberdade, justamente quando se pede a completa dominação da vida pelo Estado.
É assim que, sem absolutamente nenhuma mentira, temos nossos sentimentos dirigidos pela confusão dos conceitos de membranas porosas antes do almoço. E assim que se cria narrativas prontas (sempre repetidas de moldes anteriores) e explicações fáceis e erradas para fenômenos complexos. É a infowar, que tanto expliquei em meu livro, dominando nossa percepção da realidade e nossos sentimentos.
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