Winter on Fire: documentário obrigatório sobre a agitação política na Ucrânia
Em suas semelhanças e diferenças com o Brasil, o filme da Netflix sobre a Ucrânia ensina muito sobre a política das ruas - e como ela deve e não deve ser feita
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“O povo ucraniano determinará quem manda. Escolhemos esse presidente e podemos tirá-lo.”
A distante e gélida Ucrânia foi sempre esmagada pela “Mãe Rússia” que a tratou como um mero satélite, um não-país, por séculos de existência. Se o tsarismo a menosprezava, a Revolução socialista e seu ímpeto para a instauração do comunismo mundial invadiu praticamente todos os países “afluentes” da Rússia e lá instaurou as ditaduras que formavam a Cortina de Ferro.
A coisa parecia ter melhorado a partir do esfacelamento da União Soviética e da independência da Ucrânia do imperialismo vermelho, em 1991. Mas entre 2004 e 2005, uma eleição extremamente questionada fez surgir a Revolução Laranja, que não aceitou a vitória fraudada de Viktor Yanukovych. Novas eleições foram conclamadas.
Mas Yanukovych voltaria ao poder em 2012, prometendo um pacto comercial com a União Européia, que permitiria que a Ucrânia, pela primeira vez, tivesse instituições sólidas e um governo que elevasse o padrão de vida do país, tendo como modelo os países liberais do Ocidente. Viktor Yanukovych, entretanto, traiu a plataforma que prometia nas eleições, voltando para o Leste e pretendendo tornar a Ucrânia novamente num peão de xadrez geopolítico dos ideais neostalinistas do presidente russo, Vladimir Putin.
Este fogo cruzado no gelo é retratado no excelente e obrigatório documentário da Netflix Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom. Um dos mais violentos protestos recentes é mostrado com todas as suas cores e seu resultado – afirmar apenas em números, que a convolução gerou 125 mortos, 65 pessoas ainda desaparecidas, 1890 feridos e uma guerra que já ultrapassou os 9 mil mortos (atualizando os números do filme) não mostra, de fato, o dia a dia se transformando em Kiev.
A palavra mais significativa do filme para se entender agitações políticas como as do Brasil, seja em 2013 ou 2016, está em seu título: liberdade. Esta palavra é praticamente inexistente nos protestos que varreram o mundo a partir do Occupy Wall Street. Não se viu nunca uma manifestação pedindo liberdade – nem mesmo contra a ditadura. Muito menos junho de 2013.
A liberdade, como o oxigênio, só é percebida quando falta – só é exigida quando o Estado gigante e controlador da sociedade sufoca a garganta. É a palavra que parece fazer com que a maior parte do filme, apesar das circunstâncias diversas, lembre tanto o Brasil em 2016. Um presidente que trai o seu discurso de campanha e que se alia a uma cada vez mais indisfarçada ditadura, enquanto o povo anseia pela civilização e pela aliança com a tradição européia (liberalismo, livre comércio, cultura ocidental, liberdade política, Estados enxutos, aversão ao terrorismo e ao neoimperialismo). Cenário que faz Ucrânia e Brasil se entenderem.
A palavra traidor também aparece muito na boca dos ucranianos. Se fosse usada no Brasil, explicaria sozinha por que presidentes eleitos (sobretudo quando de maneira bastante discutível) devem também ser apeados do poder, justamente pela vontade do povo. Depois, também aparece muito o vocábulo vergonha. Outro termo aparentemente simples, mas que evoca a honra e o sentimento de dever-ser. Substantivo que mostra a distância milenar, não apenas geográfica, entre ucranianos e brasileiros.
Os primeiros 25 minutos do filme mostram uma frustração enorme e uma manifestação pacífica que é reprimida violentamente pela Berkut, a força especial da polícia ucraniana (desfeita após os eventos do filme). “Reprimida violentamente” possui um sentido bem diferente do usado nos protestos de 2013 no Brasil: não significa bombas de gás contra um protesto atolado de “minorias de vândalos infiltrados”, mas uma polícia usando bastões de ferro, cercando pessoas e espancando quem ficar pelo caminho – cair e permanecer indefeso e inofensivo significa apenas ser cercado para apanhar mais, em cenas realmente chocantes do filme.
Mas as cenas lamentáveis que impressionam pelo continuum. Os protestos ucranianos não cabem em palavras, precisam de imagens – e o diretor Evgeny Afineevsky brilha em mostrar todos os ângulos do mais sangrento protesto ocidental – ou ao menos para ser ocidental – que transformou a capital num verdadeiro cenário de guerra, não apenas metaforicamente. Dos tiros e bombas cada vez mais pesados ao semblante do policial ouvindo e refletindo um discurso pedindo para eles servirem aos ucranianos, e não ao criminoso Yanukovych, o filme arrepia tanto sob rajadas de metralhadoras quanto no silêncio.
Políticos da oposição tentam discursar na Maidan, a principal praça de Kiev, e como cá, são rechaçados. A Ucrânia, o que não se vê no filme, é um país tão corrupto que consegue a façanha de ter uma avaliação pior do que a própria Rússia no Índice de Percepção de Corrupção (130.ª posição contra 119.ª). Líderes oposicionistas contra políticos corruptos são presos por corrupção anos depois. Lindbergh Farias e Collor seriam facilmente entendidos pelo povo ucraniano, que tampouco tem representação política de suas verdadeiras aspirações em tradições e valores.
A noção de que o protesto existe por algo que é certo, mas que não encontra eco nos políticos e no parlamento, mostra a universalidade do problema da “representação”, tão almejada quanto irreal.
O hino nacional ucraniano, bastante melancólico e parecendo conhecer a realidade em que é cantado, mostra o vácuo da crítica aos símbolos nacionais usados em protestos. Um símbolo ainda mais belo e emocionante são os sinos tocados pela catedral para ressoar o choro do povo. Entender a tradição, o passado como conhecimento, e a beleza que se extrai de um momento tão trágico e infeliz arranca suspiros de uma pedra.
Algumas cenas marcantes também mostram a diferença entre os protestos conhecidos dos brasileiros e a luta por liberdade. Assistir a homens fazendo um cerco protegendo as mulheres da polícia é uma cena que deixaria nossas feministas (com suas críticas ao Femen que vêm direto dos órgãos putinescos) em estado de confusão irreparável.
Um último termo também chama a atenção por sua total ausência em nossa história recente: herói. Diante de um governo brutal e uma polícia realmente assassina, faltam pessoas que realmente se sacrificam por algo maior do que um partido, uma ideologia ou uma vontade ou causa, e sim por uma verdadeira noção de justiça e de liberdade, maior do que a própria vida.
Há uma dinâmica comum a todos os protestos de rua na história, mas uma dinâmica específica daquilo que se chama tecnicamente de movimentos de massa, os movimentos sem foco e objetivo, que apenas geram a concentração de poder e a planificação total da sociedade sob um Estado “garantidor” de tudo. O primeiro grande movimento de massa foi a Revolução Francesa, e todas as grandes tiranias modernas surgiram com uma, da Rússia à Alemanha, da China ao Irã.
Os protestos brasileiros como os de junho de 2013 tinham certos componentes comuns a Kiev, como uma causa aparentemente menor (o valor da tarifa de ônibus ou algo muito mais justo e defensável como a prometida integração à União Européia) se dissolvendo em algo mais abstrato e genérico (o protesto pelo protesto ou a liberdade perante o Estado). A diferença de propósitos, todavia, marca o heroísmo.
Em Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs, as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, conto a história de Rafael Lusvarghi, que aqui era black blocker e, fluente em russo, foi lutar junto aos rebeldes pró-Rússia (ou, mais exatamente, pró-Putin). Se aqui quem estava na rua reclamando de uma polícia despreparada (e, por isso, xingada de todos os nomes) eram pessoas buscando um Estado nos moldes do de Putin-Yanukovych, lá as pessoas tinham diante de si exatamente a realidade que entidades como MPL, CUT, MST, UNE e tantas outras querem impor ao Brasil, e precisavam daquilo que se sente falta quando o Estado domina toda a sua vida: liberdade. Como aquela encontrada nos países europeus. Lusvarghi, sem surpresas para quem entende a dinâmica mundial, chama a deposição de Yanukovych de “golpe fascista”, repetindo a cantilena mundial da esquerda.
É onde sentimos falta de uma provocação maior em Winter on Fire. O mundo livre rejeita Vladimir Putin, seja em House of Cards ou por não tratar bem os gays. Mas raríssimas pessoas sabem entender o que Putin pensa e qual sua forma de governo e seus objetivos. Posto apenas como um caso de dois personagens autoritários, Yanukovych e Putin, tem-se a impressão de que há apenas vontade cega de tirania – não um ideário por trás.
Vladimir Putin prega o chamado eurasianismo – um misto de tudo o que é anti-ocidental para reerguer a Rússia do stalinismo. Dos comunistas e bolivarianos ao movimento neonazista. Da Igreja Ortodoxa dominada pela KGB aos braços xiitas não-wahhabitas do islamismo. Do ultra-nacionalismo ao movimento ambientalista controlador do capital. Quantas pessoas, sobretudo no Brasil, sabem explicar os conflitos nos Bálcãs ou a guerra civil na Chechênia, qual lado defende o que, quem é defensável, se há um lado a se defender?
Seu grande mentor, chamado sempre de “cérebro de Putin”, é o filósofo russo Aleksandr Dugin, que, por sinal, já debateu (e admitiu a derrota) com o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho – debate compilado no livro Os Estados Unidos e a Nova Ordem Mundial. Dugin prega uma nova forma de poder total, declaradamente autoritário e contra as chamadas “democracias liberais” (o que os ucranianos pediam) centrado em Moscou. O que explica um dos pontos mais chocantes de Winter on Fire: o uso de mercenários sem ideologia, apenas violência, nos moldes rejeitados por Maquiavel para a conquista do poder. Dugin rejeita o materialismo europeu e, o que é dificílimo de ser entendido tendo educação brasileira, prega uma nova forma de espiritualismo ortodoxo.
Entender seus anseios (inclusive sua participação no Brasil) é de importância extrema – nada mais comum do que deslumbrados se espelhando “na luta por liberdade dos protestos mundiais” que, sem perceber, defende aqui justamente o ideário político das forças policiais que mataram incontáveis pessoas na Ucrânia.
Putin não é o que se pode chamar facilmente de “socialista”, afinal. Graças a isso, confunde até mesmo analistas extremamente gabaritados da direita, como Pat Buchanan, que já chegou a considerá-lo um grande expoente moderno do conservadorismo (confusão estranha com o neotradicionalismo eurasiano). Nada mais claro do que uma cena de House of Cards em que o fictício presidente russo Viktor Petrov diz que os carros Lada soviéticos eram um lixo, e que os atuais Lexus são maravilhosos. E ele quer um Lexus.
É a versão pós-socialista de uma economia com atuação autoritária do Estado. Exatamente o que muitos manifestantes pedem em passeatas apenas parecidas na forma com a ucraniana, como o Occupy Wall Street, os Indignados espanhóis, o movimento estudantil do Chile, o junho de 2013 no Brasil (e, hoje, a UNE, a CUT, o MST e derivados chamando de “fascistas” quem quer a liberdade perante a traição e o autoritarismo de Dilma Rousseff e do PT).
Evgeny Morozov, um dos maiores intelectuais públicos do mundo hoje, avalia em seu obrigatório The Net Delusion: How Not to Liberate The World, que o cyberutopismo está fazendo com que pessoas creiam numa litania sobre a força da internet para derrubar governos opressores e promover a democracia, sem nunca perceber que os próprios governos tirânicos estão usando a internet e a riqueza ocidental fortemente controlada pelo crony capitalism (tão comum à Rússia e Ucrânia quanto ao Brasil sob o PT – inclusive com um banco conjunto entre Dilma e Putin) para aumentar o controle sobre a população. E justamente mostrando riquezas ao povo, que ele só pode obter se praticar a obediência irrestrita ao poder cada vez mais completo de mandantes como Putin e Yanukovych. É algo que a infowar, a guerra de narrativas, trabalha no imaginário coletivo terrivelmente com a internet.
Além do perigo do Estado Islâmico se infiltrando fortemente nas mesquitas da Ucrânia, é uma provocação que o filme poderia fazer para apimentar ainda mais um título que não poderia ser outro: o inverno pegando fogo. Sem conhecer o que pensam os personagens, apenas se pensa que os antagonistas são maus, sem um antídoto para que os ocidentais não defendam o mesmo mal que acabaram de criticar ao assistir o filme.
Por fim, uma semelhança curiosamente diferente do Brasil. O povo ucraniano soube muito bem, em 2013 e 2014, que seu presidente havia traído o povo, que queria liberdade, capitalismo e ideais europeus, apontando para o Ocidente, e preferiu submeter toda uma população enganada a uma potência estrangeira. O Brasil, que com o PT se vergou ao Foro de São Paulo, desconhecido de 99% dos brasileiros, ainda não sabe do planejamento estratégico que envolve o partido que gerou as maiores convoluções do país, tanto para se eleger quanto para ser deposto.
Que nosso país não precise aprender apenas quando os planejadores estrangeiros das ditaduras bolivarianas aliadas ao PT resolvam mostrar sua força.
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