Digite para buscar

Impeachment

Dilma e sua mania de se confundir com “a democracia”

Dilma Rousseff defende-se do impeachment dizendo que sair do poder é um golpe contra a democracia. O desconhecimento do termo é revelador.

Compartilhar
Dilma Rousseff: impeachment sem crime de responsabilidade é golpe

“Democracia” é uma palavra complicada, justamente porque adorada. Como quase todos, na era democrática, se consideram “democráticos”, basta invocar a palavra para poder justificar qualquer coisa. É uma palavra-gatilho, usada como substantivo, adjetivo, verbo, advérbio. Hoje, quase como exclamação. Basta-se ver o discurso de Dilma Rousseff.

Dilma não responde de fato as perguntas colocadas: a respeito de crédito, de fraude fiscal (as “pedaladas”, como pegou o eufemismo), de proximidade com desmando. Sempre responde que apeá-la do poder sem freio é “golpe”. Porque ela foi “democraticamente eleita”.

Sócrates (e Platão) repudiavam a democracia por ser o poder desmedido de muitos, votando por seus próprios interesses sem freios. The mob rules. A ela opunham a politéia, que os latinos traduziram como res publica, o cuidado com a coisa pública. Roma, após o império, se tornou uma república, em que quem determina o permitido não é uma maioria de votos desenfreada, mas sim a letra da lei.

A lei é sempre maior do que a maioria. Por isso Sócrates e Jesus foram mortos democraticamente: uma maioria pode votar por assassinar a minoria, sem nem precisar de motivos. Numa república, em oposição a uma democracia (embora a modernidade tenha misturado os dois termos), há leis eternas que fazem o contrapeso à força da maioria absoluta.

A democracia trata-se de vontades desenfreadas. A república, de ordenamento. Daí que se defenda tanto a tomada do poder com o advérbio “democraticamente” [eleito], e se fale em atuação pouco “republicana” (ou seja, malversação com a coisa pública) quando se tenta limitar o poder desenfreado de alguém que trabalhe visando o bem, ou a representação, de diversas pessoas.

Dilma Rousseff nega tanto os crimes de responsabilidade de que é acusada, apostando na ignorância do povo, que nada entende do que é Pasadena, manipulação de contas numa eleição, um decreto legislativo e muito menos uma fraude fiscal, sempre se escorando na palavra “democracia”.

Ao assumir que ter poder sem precisar responder por manipulações e malversações da coisa pública é “democracia”, e que responder por isso seria “o fim” desta democracia, não sabe que assume exatamente o sentido original de democracia: o poder desmedido, o fim da preocupação com a coisa pública, o poder da maioria sobre a minoria, e não mais uma lei para todos, à qual todos, inclusive governantes, estão submetidos.

Seu vezo em se confundir com a democracia pode acelerar corações de quem foi coagido pela doutrinação e manipulação lingüística do PT nos últimos tempos, e pode irritar quem desconhece a filosofia política e acredita que a democracia é, necessariamente, apenas o rito do Estado de Direito atual do Brasil, sem notar que chamar apenas de “democracia” sistemas tão distintos quanto o Brasil, a América, a Suíça e a Inglaterra não faz o menor sentido.

Não à toa, Dilma afirma que se for julgada e condenada pelo Senado por sua malbaratação, será o equivalente a “eleições indiretas”. Países de sistema político muito mais avançado, como a América, utilizam eleições indiretas justamente para evitar o peso da maioria desenfreada, com colégios eleitorais fazendo o contrapeso do voto popular, com os estados dividindo o número absoluto pelos seus interesses etc.

Em contrapartida, os apoiadores de Dilma, acreditando no apelo popular da palavra entre a vasta maioria que desconhece seu significado, colocam a hashtag #PelaDemocracia em primeiro lugar nos Trending Topics do Twitter, para ter uma palavra vazia, um flatus vocis a ser repetido robotica e irrefletidamente na falta de argumentos.

O ato falho, para quem conhece as definições técnicas, é revelador: o PT quer a democracia apenas como uma forma de se obter o poder. Instalado e confortável no mando de um país e das carteiras do povo, se escora apenas na maioria de votos que obteve (justamente através da manipulação de contas); está ridiculamente desinteressado na prestação de contas.

Contribua para manter o Senso Incomum no ar sendo nosso patrão através do Patreon

Não perca nossas análises culturais e políticas curtindo nossa página no Facebook 

E espalhe novos pensamentos seguindo nosso perfil no Twitter: @sensoinc

Saiba mais:









Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

  • 1
plugins premium WordPress