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Donald Trump não é protecionista, o TPP sim

Trump faz a América sair do Acordo de Associação Transpacífico (TPP, em inglês). A verdade é que o TPP é que é protecionista, e não Trump.

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Donald Trump assina acordo para encerrar relações com o Acordo de Associação Transpacífico (TPP).

Muito tem se falado sobre o suposto “protecionismo” de Donald Trump, o que, longe de lançar alguma luz sobre as políticas econômicas do novo presidente americano, revela apenas a inépcia dos nossos analistas políticos. Incapazes de discernir entre a substância de uma política e a retórica utilizada para defendê-la em público, e apáticos demais para ir além do que lêem nos jornais, esses analistas se apegam a palavras e termos vagos, apressando-se para encaixar seu objeto de estudo (e todas as nuances que o compõem) dentro do esquema mental de sua ideologia de preferência. Assim, o uso metonímico do termo “protecionismo” acaba sendo utilizado para definir um presidente que defende a substituição dos (labirínticos e pouco transparentes) acordos multilaterais contemporâneos por acordos bilaterais clássicos — numa demonstração clara de ignorância e confusão sobre o tema.

Este assunto merece um artigo mais detalhado e extenso e eu voltarei a ele em breve. Porém, devido à sua urgência e atualidade, aproveitarei a discussão acerca da saída dos EUA do Acordo de Associação Transpacífico (TPP, na sigla em inglês) para demonstrar o que há de errado com quem utiliza a palavra “protecionista” fora de sua definição objetiva e com a mera finalidade de ofender este ou aquele agente político. O TPP é ideal para ilustrar o que há de errado com essa postura, pois os termos utilizados pela grande mídia para descrevê-lo produzem uma série de reações contrárias ou favoráveis que revelam a propensão dos palpiteiros de plantão a reagir quase que exclusivamente a palavras-gatilho, e jamais à substância das coisas ou aos dados da realidade.

Os defensores do TPP alegam que seu objetivo é aprofundar e melhorar as relações comercias dos EUA com o Japão e outros dez países da Bacia do Pacífico. Diante disso, a maioria dos defensores do livre comércio conclui que se trata de um acordo bom e justo e nem sequer se dá o trabalho de analisar seus termos e estudar suas possíveis consequências — afinal, sabemos que o livre comércio é justo e benéfico pelo menos desde David Ricardo e não temos por que combater quem diz promovê-lo.

No entanto, esse objetivo expressa apenas uma autojustificativa, que serve à promoção do acordo, e não uma definição objetiva, que serviria à sua compreensão. Se aceitamos esta autojustificativa de antemão e sem examiná-la, não é possível compreender e julgar a natureza do acordo e seus prováveis resultados, já que efetivamente nada sabemos sobre ele, restando-nos apenas um conhecimento rudimentar sobre as palavras que são utilizadas para propagandeá-lo — isso se tona ainda mais grave no caso do TPP, uma vez que há um abismo entre seus termos efetivos e as palavras que são utilizadas para descrevê-los.

Digo isso porque, embora seja chamado pela mídia de “acordo de livre comércio”, o Acordo de Associação Transpacífico está longe de ser genuína e efetivamente um acordo de livre comércio. Tive a oportunidade de trabalhar com a documentação do TPP, e certamente estou entre os poucos brasileiros que se debruçaram sobre as milhares de páginas que a compõem, experiência que me levou à conclusão de que não há nada ali que possa empolgar os defensores do livre mercado, da livre iniciativa, do livre comércio e dos direitos de propriedade privada. E o que foi que me levou à essa conclusão? Listo abaixo os três motivos mais importantes:

Em primeiro lugar, o TPP inclui apenas doze países, o que faz dele um acordo de “comércio gerenciado” e não um acordo de “livre comércio” — já se perguntaram por que a Europa não faria parte do TPP, mas sim do TTIP, um acordo à parte?

Em segundo lugar, o TPP não irá reduzir as barreiras tarifárias ou eliminar de modo significativo os obstáculos para o livre comércio entre esses doze países. Na verdade, o comércio entre eles já é bastante livre e o foco do acordo é a harmonização regulatória, criando e estabelecendo regras que determinam até como um copo ou um garfo devem ser produzidos. Notem que não se trata da eliminação de regulações, mas da ampliação do poder regulatório dos governos — por certo, uma medida muito liberal.

Em terceiro lugar, o acordo criaria um aparato de governança supra-estatal sem nenhuma transparência e que feriria de todos os modos possíveis a soberania nacional dos países membros, alienaria os representantes eleitos para legislar, e subjugaria as constituições e as legislações locais a leis e regulações estabelecidas pelo acordo — que, vale lembrar, foi negociado em segredo e possui uma documentação tão ampla e complexa (5 mil páginas) que o torna impenetrável e indecifrável aos agentes econômicos comuns que não disponham de uma assessoria jurídica paga a peso de ouro.

Esses três pontos bastam para mostrar o tamanho da encrenca de que os EUA se livraram hoje e a complexidade do assunto, que jamais poderá ser resolvido com uma dupla de rótulos metonímicos como “protecionista” e “liberal”.

Na prática, o aprofundamento das relações comerciais trazido pelo TPP seria marginal e desprezível, enquanto seu trade-off seria massivo: o acordo criaria e estabeleceria, à margem dos poderes legislativos de seus Estados-partes, uma série de regras ambientais, trabalhistas, fito-sanitárias e de outras ordens regulatórias que diminuiriam a liberdade econômica, multiplicariam os custos de produção, e uniformizariam as economias, eliminando as diferenças e as as vantagens comparativas.

Querem um exemplo do tipo de abominação introduzida pelo acordo? Um dos termos do TPP tornaria obrigatória a adesão dos países que o integram a qualquer acordo ambiental negociado no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC) — comprometendo-os não apenas com as custosas regulações ambientais já existentes, mas também com regulações que ainda nem foram criadas. Como se isso não fosse problemático o bastante, há uma série de termos que cria obrigações similares em praticamente todas as outras áreas: leis trabalhistas, padrões de qualidade, regras fitossanitárias, propriedade intelectual, direitos trabalhistas, segurança alimentar, governança da internet, “direitos humanos” etc. etc. etc.

Diante disso, é fácil entender que as consequências do tal acordo seriam econômica e politicamente nefastas e que, na prática, ele beneficiaria o capitalismo de laços, debilitaria as soberanias nacionais, sacrificaria a democracia representativa, promoveria o aumento do poder dos metacapitalistas e produziria custos bastante elevados para a classe média (sobretudo a americana) — elementos que configuram bem o globalismo que o Presidente Donald Trump se comprometeu a combater.

Há quem argumente que o TPP frearia o avanço da China — outro adversário geopolítico dos EUA —, mas basta lembrar que o acordo nunca esteve fechado para a adesão de Pequim, e que o sucesso do acordo dependia mais do ingresso da China do que o sucesso da China dependia do acordo, para descartar esses argumentos.

Donald Trump é o primeiro presidente americano, em muito tempo, a compreender que a economia é apenas uma das esferas em que os Estados Nacionais competem por vantagens estratégicas e lutam pela sua sobrevivência na arena internacional. Isso não o torna um protecionista, só faz dele uma pessoa infinitamente mais inteligente do que os comentaristas da TV e os ideólogos da internet — um estadista capaz de traçar uma estratégia geopolítica abrangente e avançar os interesses nacionais do país que governa.

Voltaremos a esse assunto nos próximos artigos. Por ora, é suficiente compreender que o fetiche por palavras pouco ajuda na compreensão da economia real e da política que a engloba. Afinal, não é só a riqueza e outros elementos tangíveis que são controlados e destruídos pelos burocratas, a linguagem e os significados das palavras também são vítimas frequentes — e quando você tem sempre as mesmas reações diante das mesmas palavras, você acaba pensando e fazendo apenas o que os donos do vocabulário querem que você pense e faça; até mesmo defender o contrário do que você pensa estar defendendo.

Donald Trump não é protecionista, mas o TPP é. Aprenda a chamar as coisas pelo seu devido nome.

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Assuntos:
Filipe G. Martins

Professor de Política Internacional e analista político, é especialista em forecasting, análise de riscos e segurança internacional.

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