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História

A Primeira Guerra Mundial terminou há 100 anos, mas seus efeitos estão mais vivos do que nunca

Do Estado secular ao feminismo, da democracia ao ateísmo, do globalismo ao Oriente Médio: quase tudo o o que discutimos hoje tem origem na Grande Guerra, tão incompreendida

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Primeira Guerra Mundial

Há 100 anos terminava a Primeira Guerra Mundial, um dos momentos mais trágicos da história do globo e talvez a guerra mais estúpida já enfrentada pela humanidade. E também a mais mal compreendida: se a Segunda Guerra Mundial deixa claro o que devemos pensar, com suásticas de um lado e capitalistas e comunistas se unindo contra o mal absoluto do nazismo do outro, as intenções e desdobramentos da Primeira Guerra são de uma complexidade absurda de entendimento até hoje.

A Primeira Guerra marca os quatro anos em que o mundo mais mudou na história. Apesar do horror absoluto do Terceiro Reich e do Holocausto, foi o cenário de guerra entre 1914 e 1918 que mais modificou a estrutura geopolítica e a mentalidade ideológica a partir de então.

A famosa guerra das trincheiras teve um desfecho tão radical que é difícil explicar o seu começo para quem viveu apenas o mundo depois do seu fim. Era uma Europa monárquica, de impérios poderosos que experimentavam a dor e a delícia da modernidade, que acabou não apenas mandando sua população para o front para lutar uma guerra que eles próprios não entendiam: criou mesmo a primeira “guerra total”, um conflito que foi trazido para dentro das cidades, causando não mais apenas baixas militares, como nas guerras anteriores a 1914, mas centenas de milhares de mortes de civis, incluindo mulheres e crianças. 

Além de monarcas, os grandes atores eram verdadeiramente primos. O Kaiser Wilhelm II, o tsar Nikolas II e o rei George V, que acabaram se opondo, carregavam gerações consangüíneas entre seus ascendentes, um dos motivos pelos quais a Europa havia permanecido em relativa paz entre os países por quase um milênio, descontando-se as revoluções e a Guerra dos 30 Anos. Em telegramas enviados poucos meses antes da eclosão da guerra, Nikolas chamava Wilhelm de “Willy”, sendo tratado por “Nikki” em resposta. 

Quando o herdeiro do trono austro-húngaro é assassinado por um nacionalista sérvio, a população foi lutar por uma guerra que nem poderia compreender. Afinal, por que um austríaco deveria matar um inglês, ou um russo matar um alemão, se pouco antes eram destinos de férias uns dos outros? 

A guerra, aliás, eclodiu exatamente nas férias européias: o arquiduque Franz Ferdinand foi assassinado em 28 de junho, causando a “Crise de Julho”, uma complicação diplomática absurda em que cada país invocava tratados anteriores que exigiam ajuda mútua. Com um detalhe: como os monarcas estavam quase todos de férias, delegaram tal trabalho a seus ministros e burocratas afins. Esta confusão, aliada à inexperiência com um modo de comunicação rápido como o telégrafo, fez com que diplomatas cometessem erros de comunicação que transformaram uma questão delicada, mas ainda de somenos importância para o destino da Europa, em uma guerra absurda e absoluta. Christopher Clark, um dos melhores atores para se entender este conturbado período, nomeia seu livro justamente de “Sonâmbulos”: os diplomatas levando e trazendo mensagens que apenas acirraram os ânimos agiam mesmo como sonâmbulos, enquanto monarcas pensavam em planos para um futuro que nunca chegou a eles.

Foi, também, a grande guerra ideológica do mundo. Se há um clichê de que todas as guerras se dão por território, a Grande Guerra matou pela imposição de idéias políticas. 

Os lados que se uniram tinham bem pouco em comum: a Inglaterra da Revolução Industrial e do capitalismo descentralizado estava unida à Rússia de tsares que ignoravam seu povo e mantinham mujiques arando a terra com tecnologia usada no Império Romano. A Alemanha exigiu a companhia do Império Austro-Húngaro, pelos laços culturais óbvios dos Impérios, mas Friedrich Wilhelm von Hohenzollern II não tinha nem sombra do carisma e apelo de seu pai, do ex-primeiro ministro Otto von Bismarck ou, sobretudo, da família Habsburg de seus vizinhos austríacos, adorados até hoje pela população.

Wilhelm havia demitido Bismarck e ignorou todas as lições de prudência de seu pai ao unificar a Alemanha. Sua visão era da pura pressa: queria uma Alemanha ainda rural se tornando uma potência industrial em questão de uma década, com um Estado dirigente centralizando e determinando os rumos da economia e da nação. 

Um dos maiores estudiosos da Primeira Guerra e suas conseqüências culturais, o canadense Modris Ekstein, escreveu o grande clássico “A Sagração da Primavera” para tentar explicar uma das mudanças radicais do pós-guerra. Se a visão alemã do mundo e da política saiu perdedora no campo de batalha, foi justamente ela que venceu na mentalidade européia – e mundial. O capitalismo, descentralizado e diminuindo o tamanho do Estado e a interferência mesmo de uma monarquia na vida da população, foi demonizado pela história, até mesmo no próprio mundo anglo-saxão, enquanto intelectuais, de diferentes formas, tentam reviver o sonho fracassado de Wilhelm II a qualquer custo.

O fim da guerra, portanto, marca a era do socialismo na Rússia, da ascensão dos fascismos na Europa ocidental, da “social-democracia” como uma alternativa ao horror do capitalismo inglês e americano – justamente os países que lutaram pela liberdade contra os bizarros planos que a Alemanha queria impor ao mundo, aproveitando-se de uma crise diplomática para tentar ser o país dominante da Europa com uma força que não possuía. Começa-se o período que Eric H. Carr chamou de “20 anos de crise”: um longo período de sentimentalismo tóxico entre populações que aprenderam a se odiar na marra, e desastres atrás de desastres entre os líderes europeus que não compreendiam de fato o próprio mundo que dominavam. 

Mesmo sem os exageros, os quatro anos de guerra marcam o fim de uma tradição anterior mesmo à Idade Média: as monarquias, tão bem consolidadas, foram destruídas com ajuda da entrada americana na guerra, numa das mais brutais interferências americanas outremer: Woodrow Wilson, o mais Democrata dos presidentes Democratas, tratou a Primeira Guerra como “A guerra para acabar com todas as guerras”, crendo que a solução para todos os conflitos seria “democratizar” o mundo, impondo governos eleitos na Alemanha e Áustria derrotadas, e mesmo sendo o primeiro líder ocidental a congratular e comemorar a Revolução Bolchevique, que teria se livrado de uma monarquia atrasada para acompanhar o progresso democrático. A ironia dos tempos é um retrato da ignorância que foi a marca dos governantes desde então: da cultura estupenda da aristocracia austríaca até a imbecilidade completa de um Mussolini ou, futuramente, de quase todos os líderes europeus.

Com quatro impérios destruídos, milhões de vidas (incluindo civis) ceifadas, um ódio completo a tudo o que remetesse ao mundo antes da guerra, o mundo passou a procurar explicações e símbolos de entendimento da realidade criados quase ad hoc.

Saímos do mundo dos Estados confessionais, da religião, da monarquia, da tradição, da admiração pelo passado, pelo mundo do Partido-Estado, da política como única explicação, da democracia, da revolução, da secularização forçada absoluta, da criação eterna de novas mentalidades de moda. 

Começamos a guerra ouvindo Tchaikovsky em salas de concerto para terminá-la ouvindo jazz no rádio. A religião foi substituída por Marx, a família por Freud. O trabalho virou a burocracia de Kafka, a angústia romântica virou o desespero niilista de Proust.

Quase todos os problemas contemporâneos, 100 anos depois, acabam remetendo à Primeira Guerra. Foi a tragédia da guerra total que gerou a primeira vitória do feminismo, embora a história do direito ao voto das mulheres inglesas tenha muito mais a ver com a falta de comando nos lares do que com as Suffragettes tão romanceadas. O nacionalismo atual, tão diferente daquele revanchismo europeu que culminou no nazismo, também é combatido com o globalismo: a Liga das Nações, que geraria a ONU, foi uma das conseqüências da guerra, crendo que a paz só aconteceria diminuindo-se a soberania do povo para um conluio entre burocratas determinando leis comuns. O ateísmo, quase inexistente antes da guerra, foi a explicação desesperançada dos expressionistas para os horrores vistos. A política de massas, até dominando as ruas, permanece quase idêntica de 1918 a 2018. Isto para não falar do Oriente Médio ou dos Bálcãs.

Poucos fenômenos no mundo são tão mal compreendidos quanto a Primeira Guerra. Ganharíamos muita clareza sobre o mundo atual se soubéssemos o quanto ela moldou nossos pensamentos atuais.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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